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quinta-feira, 30 de junho de 2011

MAUS TRATOS A MENORES - Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa - 24/05/2011

Acórdãos TRL
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
309/09.8PEOER.L1-5
Relator: JOSÉ ADRIANO
Descritores: MAUS TRATOS A MENORES
CONCURSO APARENTE DE INFRACÇÕES
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA

Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 24-05-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO

Sumário: Iº Em matéria de apreciação da prova intervém sempre uma componente subjectiva, nomeadamente quanto à credibilidade da prova pessoal, o que implica a imediação da produção da prova, componente essa que não é, pelo menos em grande parte, sindicável pelo recurso, onde falta a imediação;
IIº Na circunstância de umas testemunhas dizerem num sentido e outras dizerem precisamente no sentido contrário, não tem o tribunal, necessariamente, de optar pela versão do arguido, fazendo de imediato aplicação do princípio in dubio pro reo. Um só depoimento pode bastar - desde que convença o tribunal - para declarar determinado facto como provado, mesmo havendo outro ou outros depoimentos em sentido contrário daquele. O importante é que o julgador, na fundamentação da decisão, convença todos aqueles que, com base nela, tentem reconstruir o processo lógico dessa decisão, das razões da sua opção;
IIIº Entre os bens jurídicos protegidos pelo crime de maus tratos, p.p., pelo art.152A, do Código Penal, está a integridade física e psíquica de pessoa menor de 18 anos;
IVº Trata-se de um crime específico que, no caso de maus tratos físicos, não passa de um crime de ofensas à integridade física autonomizado em função da particular relação existente entre o agente e a vítima, havendo uma relação de concurso aparente entre os dois tipos de ilícito;
Vº Para efeitos daquele crime de maus tratos, deve entender-se que tem a menor ao seu cuidado, à sua guarda, à responsabilidade da sua direcção ou educação, o pai que no exercício de um direito previsto no âmbito da regulação do poder paternal, se preparava para a levar consigo da casa da mãe durante certo período, apesar da mesma estar entregue a guarda da mãe, no âmbito daquela regulação;
Decisão Texto Parcial:

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção (Criminal) da Relação de Lisboa:

I - Relatório:
1. Em processo comum que correu termos no 3.º Juízo Criminal do Tribunal de Oeiras, sob acusação do Ministério Público foi submetido a julgamento, perante tribunal singular, o arguido A..., tendo, a final, sido condenado[1], como autor material de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152.°-A, n.º 1 a), do Cód. Penal[2], na pena de um ano e meio de prisão, suspensa por igual período.
O arguido havia ainda sido acusado da prática de um crime de violência doméstica, p. p. pelo art. 152.º, n.º 1 al. a) e c) e 2, do CP, do qual foi absolvido.
*
2. Inconformado, recorreu o arguido, concluindo da seguinte forma:
1- O depoimento do Arguido foi apenas impreciso devido ao nervosismo de estar pela primeira vez em tribunal.
2- O depoimento das testemunhas de defesa, á excepção de AG..., todas elas disseram apenas o que sabiam directamente ou o que lhe contaram com imparcialidade.
3- As testemunhas de acusação se mostraram pré preparadas, com a lição bem estudada, com a intenção de incriminarem o Arguido, com mais ou menos subtileza.
- A mãe (queria) ver o Arguido preso, mas ainda disse que a queda se tinha devido a ela puxar de um lado e o Arguido do outro, que ela é que escorregou e caiu com a filha, logo ela é que materialmente deu origem à queda, sendo este facto do conhecimento publico, e a ser um crime o MP tem o dever de actuar.
4- A Menor respondeu sem medo na presença do pai na sala, o que não é normal numa menor, e respondeu com muita maturidade para a idade, palavras do Senhor Doutor Juiz. Disse a menor que a queda tinha sido causada por o pai (Arguido) e a mãe puxarem uma para cada lado, mas as dores não foram causadas, não pela queda com traumatismo craniano, mas pelo puxão de cabelos do pai, o que conjuntamente a ter dito que tinha cabelos fortes e não tinha deixado cair cabelos no local da queda a quando do puxão dos cabelos, em contradição com o depoimento da mãe que afirmou que os cabelos da filha eram fracos, digo eu pelo que teriam que ficar cabelos no local do puxão com força, pelo que o depoimento da menor foi parcial, foi mentiroso.
5- CS... apesar de estar de relações cortadas com o Arguido disse algumas verdades não valoradas na sentença, nomeadamente que arguido e mãe se encontravam a discutir e chamar palavrões em simultâneo um ao outro.
6- SS..., filha de CS..., disse que não viu nada, mas habilmente lá foi respondendo com curtas palavras, às múltiplas e dirigidas perguntas do senhor Doutor Juiz, fazendo-se passar por pessoa isenta, mas incriminando sempre o arguido, todo o depoimento foi assente no dizer o que a menor lhe havia dito.
7- Apenas se provou que no dia dos factos chovia torrencialmente, os factos se passaram depois das 8 da manhã, só estiveram presentes o Arguido, MS... (mãe) e a Menor C..., as restantes testemunhas foi um disse que disse.
8- A discussão foi à porta de casa da mãe e a queda foram a cerca de 20 metros numas escadas de 4 a 7 degraus estreitos e escorregadios em pedra, debaixo de muita chuva, mais ou menos se apurou que mãe puxou de um lado e Arguido do outro, mãe largou filha por falta de força ou por ter escorregado por estar de chinelos, uma delas mãe ou filha caiu por cima da outra, as versões são contraditórias, caíram a pique, houve várias lesões, ida ao hospital.
9- A Menor alega que as dores que sentiu foram dos dois lados da cabeça (puxões) apesar do traumatismo craniano ser só sobre o lado esquerdo, sendo devido aos (puxões) de cabelo feitos pelo pai (arguido) muito mais dolosos nas suas palavras do que o embate a pique no chão da estrada.
10- Pelo acima exposto quanto à matéria de direito é de total justiça se concluir que não existiu de forma alguma dolo do Arguido no supra referido crime de maus tratos, os elementos objectivos e subjectivos do tipo não se encontram preenchidos, sendo o crime de maus tratos um crime especifico que exige o Dolo, não houve dolo, logo não houve crime, pelo que se pede a absolvição total do Arguido do crime de que vinha condenado (crime de maus tratos), se for entendimento que deve ser o Arguido condenado o mesmo deve o ser em pena inferior à da Sentença, atendendo aos factos em concreto.

3. Respondeu o Ministério Público, defendendo a improcedência do recurso e consequente manutenção da decisão recorrida.
4. Admitido o recurso e subidos os autos, neste Tribunal a Exmª Procuradora-Geral Adjunta apôs “visto”.
5. Efectuado o exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência, cumprindo decidir.
***
II. Fundamentação:
1. Conforme Jurisprudência uniforme nos Tribunais Superiores, são as conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respectiva motivação que delimitam e fixam o objecto do recurso, sem prejuízo da apreciação das demais questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer.
No caso sub judice, teve lugar a gravação áudio das declarações oralmente prestadas em audiência, nos termos dos arts. 363.º e 364.º, do CPP[3], sendo por isso possível o recurso em matéria de facto, com reapreciação da prova gravada.
O arguido limitou o seu recurso – como era seu direito – às seguintes questões:
- impugnação da matéria de facto;
- qualificação jurídica dos factos provados;
- medida da pena.
***
2. Mas vejamos, em primeiro lugar, o teor da decisão recorrida quanto a matéria de facto:
2.1 É a seguinte a factualidade considerada provada (transcrição):
“1. MS… viveu com o arguido, como se de marido e mulher se tratassem, cerca de 5 anos.
2. Deste relacionamento nasceu, em 2 de Setembro de 2000, a filha de ambos, C....
3. Por sentença de 2 de Janeiro de 2007, proferida pelo Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Cascais, 1º Juízo de Família e menores, foi regulado o exercício do poder paternal da menor, tendo esta ficado confiada à mãe.
4. No dia 18 de Abril de 2009, MS… vivia com a sua filha no Pátio dos …., em …, numa vivenda térrea geminada, em frente à qual existe um pátio interior comum às demais vivendas, ao qual se ascende por umas pequenas escadas em pedra, com cerca de 6 degraus.
5. Nesse dia, pelas 8h10m, MS… encontrava-se naquela sua residência, quando o arguido aí se deslocou para levar a sua filha consigo, de fim de semana.
6. Após breve troca de palavras com MS… sobre o desempenho escolar da menor, o arguido agarrou a sua filha C... e puxou-a para que esta o acompanhasse, tendo a menor começado a chorar e a gritar.
7. Para que C... o acompanhasse, e porque MS… puxou pelo capuz da menor, o arguido agarrou, com uma mão, a menor pelos cabelos, puxando-a para a frente.
8. O arguido, enquanto assim procedia, chamava a sua ex-companheira de “puta”, “porca” e “ordinária”.
9. Junto às escadas, a menor desequilibrou-se e caiu pelas escadas abaixo, seguida por MS…, que se desequilibrou conjuntamente com a sua filha.
10. MS… agarrou a filha na queda, rolando, ambas, pelas escadas abaixo, caindo a primeira sobre a segunda, enquanto a segurava nos braços.
11. Como consequência directa e necessária da queda e do puxão de cabelos, a menor C... sofreu traumatismo craniano sem perda de conhecimento, com cefaleia parieto-occipital esquerda, com eritema do couro cabeludo, com hematoma epicraniano de partes moles, lesões que lhe determinaram 7 dias sem incapacidade para as actividades escolares.
12. A menor teve que ser assistida no Hospital de São Francisco Xavier.
13. Ao cair no chão, MS… sofreu escoriações do cotovelo direito e do terceiro dedo da mão direita, lesões que lhe determinaram 5 dias sem incapacidade para o trabalho e que foram assistidas no Hospital de São Francisco Xavier.
14. A menor C... tem dificuldades de aprendizagem.
15. E é asmática.
16. O arguido actuou deliberada, livre e conscientemente, querendo puxar a sua filha pelos cabelos, apesar de representar que a sua conduta era proibida por lei.
17. O arguido, quando ia buscar a filha a casa de MS…, o que, naquela data, fazia de 15 em 15 dias, costumava epitetá-la com expressões como as referidas em 8, no que era correspondido pela sua ex-companheira, que o chamava de “paneleiro”.
18. Naquelas ocasiões, o arguido dizia, por vezes, que lhe ia tirar a “filha”.
19. A menor sofre com estes factos.
20. O arguido, até ao fim de 2009, era apoiado pela mãe.
21. A partir desta data, passou a receber uma pensão de invalidez de cerca de € 600,00.
22. O arguido vive sozinho.
23. O arguido entrega € 75,00 por mês a título de alimentos devidos à menor C....
24. O arguido é tido, no seu meio social, como uma pessoa pacata.
25. O arguido não tem averbada no seu registo criminal qualquer condenação em processo penal.”
*
2.2 Factos não provados.
– Que o arguido puxasse a menor em direcção ao solo.
– Que o arguido não esteja a cumprir o pagamento da pensão de alimentos fixada na decisão do Tribunal de Família e menores.
– Que o arguido prive a sua filha de ter acesso a um apoio escolar especial.
– Que o arguido não trate a sua filha com respeito e carinho.
– Que, para além da acção descrita em 7, o arguido queira molestar fisica e psicologicamente a sua filha.
*
2.3 Em sede de fundamentação da convicção do tribunal, escreveu-se na sentença recorrida (transcrição):
«O Tribunal ao fixar a matéria de facto supra descrita, fundou a sua convicção na apreciação conjunta e crítica das declarações do arguido, confrontadas com os depoimentos das testemunhas MS…, C..., CS, SS…, E…, M…, AG… e MP…, com a documentação clínica de fls 10, 11, 37 a 41 e 176, com a certidão de assento de nascimento de fls 158 e com os autos de exames pericial de fls 16 a 18, 21 a 23, 72 a 75.
O arguido admite os factos assentes em 1 a 5, 9, 14 e 15, corroborados, além do mais, pela certidão de fls 158 e pelo relatório de fls 176.
O arguido nega, no entanto, que tenha epitetado com as expressões referidas em 8, a sua ex companheira e nega que tenha puxado os cabelos da sua filha, projectando a sua queda para a frente e pelas escadas abaixo. E nega que tenha querido, por qualquer modo, derrubar MS….
No entanto, o arguido produz sempre declarações atabalhoadas que se associam não apenas ao seu modo de ser e ao seu espírito nervoso, mas também à absoluta incapacidade para explicar a dinâmica da queda da sua filha e da sua companheira e, sobretudo, da causa que a motivou.
E, assim, as declarações do arguido são tidas por pouco credíveis, contrariando as regras de experiência comum e os depoimentos esclarecidos de MS…, CS… e SS….
O arguido revela que se apresentou pelas 8 horas, em casa de MS… para levar a sua filha consigo, conforme regime de visitas estipulado pelo 1º Juízo de Família e menores do Tribunal de Cascais.
E, nessa altura, MS… começou, exaltada, a exibir-lhe cadernos da sua filha, mas sem deixar ler o que quer que fosse.
O arguido revela que, então, no fim da conversa, virou-se e levou a sua filha pela mão, que não lhe resistiu e que o acompanhou de bom grado.
Ouviu, uns passos atrás de si e verifica que a sua ex-companheira puxara pelo capuz do casaco da filha, despregando-o e que se agarrara, entretanto, aos cabelos da filha, com as duas mãos.
Então, a sua filha caiu das escadas de pedra, com 6 ou 7 degraus, e MS… caiu em cima da filha.
Depois, levantaram-se as duas e foram para casa, retirando-se o arguido de volta ao …, onde vivia.
Ali regressado de transportes públicos, soube ao chegar, por um terceiro seu amigo, que a sua filha e a sua esposa tinham ido para o Hospital mas, no entanto, não entrou em contacto com elas.
Ora, a explicação de que ficou sem reacção perante este episódio não faz qualquer sentido. Caso a menor tivesse sido derrubada pela acção da mãe, não faz sentido que o arguido nada fizesse, não procurasse saber quais as reais consequências de tão aparatosa queda e se limitasse a voltar ao … donde saíra tão cedo, de transportes.
Nem faz sentido que não procurasse saber qual o estado da menor, já para não falar da sua ex companheira, ao saber que ambas estavam no Hospital.
E também não faz inteiro sentido que uma menor de tão tenra idade, sendo disputada naquela circunstância por ambos os pais, se dirigisse tão naturalmente para casa com o progenitor que tinha produzido tão assustadora queda.
Pelo contrário, a própria menor explica credivelmente e num depoimento seguro que reflecte maturidade para a idade, que foi o pai quem lhe puxara os cabelos, produzindo a sua queda.
Num depoimento que não indicia ter sido produzido sobre sugestão, C... explica que o seu pai, o aqui arguido, lhe puxou pelos cabelos, aleijando-a. A sua mãe puxou pelo capuz e acabou por escorregar nas escadas, caindo ambas pela escadaria.
Ora, as lesões apresentadas pela menor e que estão descritas no exame pericial de fls 21 e 73, são compatíveis, em termos médico legais, com um puxão de cabelos e posterior queda.
A menor explica que as dores de que se queixara, mesmo após a queda, se deveram aos cabelos arrepelados.
E o descontrolo emocional que é transversal à atitude do arguido em audiência pode justificar esta actuação do arguido.
O depoimento de MS… é igualmente credível e escorreito.
Esta testemunha explica os factos da mesma forma, explicando que a sua filha estava a hesitar em andar, com se não tivesse decidido que queria ir com o pai e este puxou-lhe pelos cabelos.
A testemunha explica, de forma credível, que o arguido não teria a intenção de atirar a filha das escadas a baixo, mas apenas de a encaminhar em direcção a essas escadas.
No entanto, uma vez que MS… tentou agarrar o capuz da filha, desequilibrou-se, precipitando-se para as escadas com a filha, logrando agarrá-la e amortizar a queda desta.
MS… revela que a filha estava, essencialmente, queixosa por causa do puxão de cabelos e chorava copiosamente, o que fez com que a testemunha afirmasse que o arguido já não ia levar a filha.
Confirma, ainda, que o arguido não lhes deu qualquer satisfação, nem procurou saber do estado de saúde de ambas.
A testemunha assevera, se forma segura, que o arguido chamou-a, naquela ocasião e à semelhança de outras, de “puta”, ordinária” e “porca”, mas assume que também costuma responder com palavras menos próprias.
Os depoimentos de SS…, perfeitamente isento, e de CS…, menos objectivo e pouco distanciado, reforçam a força probatória dos dois primeiros depoimentos.
Na verdade, ainda que não tenham assistido aos factos, ambas as testemunhas acabam por confirmar que a primeira reacção da criança perante a queda, instantes depois desta ter ocorrido, foi reconhecer àquelas suas vizinhas que o pai lhe puxara os cabelos. Como ambas afirmam, a menor queixava-se de dores causadas pelo puxão de cabelos, descrevendo a dor que sentia.
CS… ouviu, noutras ocasiões, o arguido a chamar MS… de “puta” e “ordinária”, mas ouvia que esta ripostava, chamando o arguido de “paneleiro”.
Estas duas testemunhas visionaram que a criança tinha dois hematomas na cabeça.
As demais testemunhas, arroladas pelo arguido, não têm conhecimento directo dos factos, pelo que não permitem dilucidar qualquer facto, nem esbater a convicção que o Tribunal foi formando relativamente à matéria levada à acusação.
E…, amiga do arguido, ainda que demonstre um conhecimento limitado sobre a vida deste, acaba por ter um depoimento muito abonatório da sua personalidade.
M.. também tem um depoimento abonatório, acrescentando que o arguido queixava-se dos diferendos que tinha com a sua ex companheira, relativos às visitas da sua filha.
AG…, irmã do arguido, refere que o arguido chegou a casa muito abatido e contou-lhe o episódio. E assevera que o arguido, nesse dia 17/04/2009, tinha-lhe assegurado que não tinha puxado os cabelos da criança. Ora, segundo o arguido, após a queda nas escadas não houve grande troca de palavras, não tendo a sua ex companheira dito nada sobre puxões de cabelos, pelo que aqui se regista uma contradição enorme entre as declarações do arguido e o depoimento da sua irmã.
Para mais, esta refere que o arguido não lhe disse que a C... tinha ido para o Hospital, o que permite concluir que este conhecimento indirecto dos factos é contrário ao afirmado pelo arguido e demonstra não ser, sequer, completo.
O depoimento da outra irmã do arguido, MP…, também apresenta esta contradição com as declarações do arguido, na medida em que afirma que o arguido não lhe dissera que a menor tinha ido para o Hospital.
Deste modo, os depoimentos das testemunhas da acusação não puderam, de forma nenhuma, ser abalados pelos depoimentos das testemunhas de defesa.
A falta de antecedentes criminais resulta assente com base no Certificado de Registo Criminal de fls 126.
No que diz respeito aos demais elementos sócio económicos do arguido, estes foram assentes com base nas declarações do próprio.
Os factos não provados resultam, além do que se disse, da falta de elementos probatórios que sobre eles recaíssem.
Na verdade, ainda que MS… explicasse que o arguido não pagou inteiramente as prestações de alimentos a que estava obrigado, não consegue precisar quais.
Ainda que o arguido tenha um depoimento não esclarecedor quanto ao pagamento das prestações de alimentos, afirma que tem pago os € 75,00 mensais.
Por outro lado, MS… acaba por reconhecer que ainda que tenha dificuldades financeiras, não tem deixado de ser prestado apoio médico e psicológico à sua filha.
Deste modo, não se pode considerar provado que o arguido não tem cumprido a prestação de alimentos e que, por causa disso, C... não esteja a receber o apoio que precisa.
Também não se apurou que o arguido tenha, noutras ocasiões, querido molestar física ou psicologicamente a sua filha.»

***
3. Analisemos, pois, as questões formuladas pelo recorrente:
3.1. A impugnação da matéria de facto:
As relações conhecem de facto e de direito (art. 428.º, do CPP).
«…
3 - Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4 - Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art. 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação» (art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do mesmo Código).

Convém, todavia, frisar, desde já, que o recurso em matéria de facto não visa a obtenção de um segundo julgamento sobre aquela matéria, sendo antes e apenas uma oportunidade para remediar eventuais males ou erros cometidos pelo tribunal recorrido. Como refere o Prof. Germano Marques da Silva[4], «o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida»[5].
Quer isto significar que, face ao princípio da livre apreciação da prova - «a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente» (art. 127.º) - compete fundamentalmente ao tribunal de recurso aferir da legalidade e da bondade do caminho percorrido pelo tribunal recorrido para formar a sua convicção e alcançar o resultado que se traduziu na respectiva decisão em sede de matéria de facto.
Deverá ainda ter-se presente que em matéria de apreciação da prova intervém sempre uma componente subjectiva, nomeadamente quanto à credibilidade da prova pessoal, e que os próprios depoimentos em audiência são frequentemente condicionados pelo modo como são recebidos. Tal componente «implica a imediação da produção da prova e a decisão pelos próprios juízes que constituíram o tribunal na audiência e essa componente não é, pelo menos em grande parte, sindicável pelo recurso, onde falta a imediação»[6].
O recorrente, aceitando expressamente a maioria dos factos provados, pretende impugnar os identificados sob os números 6, 7, 8, 9 (embora quanto a este o inclua igualmente entre os factos que aceita como correspondendo à verdade – cfr. ponto 3.º, da motivação), 10, 11, 12, 17, 18 e 19.
Para o efeito, invoca a existência de contradições entre os vários depoimentos e entre estes e as próprias declarações do arguido.
Porém, da análise da prova que se mostra junta aos autos, confrontada com a análise que dela é feita pelo tribunal recorrido, nenhum erro é perceptível, nenhuma divergência é de assinalar, relativamente à leitura que o tribunal fez de cada um dos depoimentos e que reflectiu na respectiva motivação da decisão de facto, quando confrontada esta com o que efectivamente resulta de cada um desses depoimentos. Nem o recorrente invoca existir tal erro ou divergência.
Bem vistas as coisas, a crítica do recorrente patenteia apenas a sua discordância com a opção do tribunal, ao dar maior crédito a uns depoimentos em detrimento de outros. Mas essa é uma outra questão, que respeita exclusivamente à livre convicção, à livre apreciação da prova (art. 127.º, do CPP) e à motivação das decisões judiciais.
Na circunstância de umas testemunhas dizerem num sentido e outras dizerem precisamente no sentido contrário, não tem o tribunal, necessariamente, de optar pela versão do arguido, fazendo de imediato aplicação, nomeadamente, do princípio in dubio pro reo. Um só depoimento pode bastar - desde que convença o tribunal - para declarar determinado facto como provado, mesmo havendo outro ou outros depoimentos em sentido contrário daquele. O importante é que o julgador, na respectiva fundamentação da decisão, convença todos aqueles que, com base nela, tentem reconstruir o processo lógico dessa decisão, das razões da sua opção. Por isso exige a lei que a fundamentação da sentença obedeça a determinados requisitos, enunciados no art. 374.º, n.º, 2, do CPP.
Ao realizar o julgamento, o juiz de 1.ª instância tem, em virtude da oralidade e da imediação, «uma percepção própria do material probatório que nós indiscutivelmente não temos. O juiz do julgamento tem contacto vivo e imediato com o arguido, com o ofendido, com as testemunhas, assiste e não raro intervém nos seus interrogatórios pelos diversos sujeitos processuais, recolhe um sem número de impressões … que não ficam registadas na acta, apenas na sua mente …Essa fase ao vivo, do directo, é irrepetível»[7].
Na fase de recurso, praticamente dominada pela escrita em vez da oralidade (apesar de os depoimentos estarem gravados e, por isso, poderem ser ouvidos), é quase impossível avaliar, com correcção, da credibilidade de cada depoimento, dizer se um é mais credível do que o outro prestado em sentido diverso é tarefa difícil. Perante dois conjuntos de depoimentos, cada um deles testemunhando em sentido contrário ao outro, por qual deles optar? Acompanhando, mais uma vez, o acórdão atrás citado, «essa é, em princípio, uma decisão do juiz do julgamento. Uma decisão pessoal possibilitada pela sua actividade cognitiva, mas também por elementos racionalmente não explicáveis e mesmo puramente emocionais». Como a propósito refere Damião da Cunha[8], os princípios do processo penal, a imediação e a oralidade, implicam que deve ser dada prevalência às decisões da primeira instância. Em recurso, pouco mais haverá a fazer do que controlar e sindicar a razoabilidade da sua opção, o bom uso ou abuso do princípio da livre convicção, com base na motivação da sua escolha[9].
«Aquilo que o tribunal de recurso pode essencialmente censurar é a violação de todo um conjunto de princípios que estão subtraídos à livre apreciação da prova (que limitam o “arbítrio” na sua apreciação), exactamente: as regras de experiência comum, o princípio in dubio pro reo, o princípio de presunção de inocência e, em especial, aquele que está directamente ligado à afirmação de uma culpabilidade pelo facto, isenta de qualquer referência a características pessoais do arguido»[10].

Conforme refere expressamente o juiz recorrido:
- “as declarações do arguido são tidas por pouco credíveis, contrariando as regras da experiência comum e os depoimentos esclarecidos de MS…, C..., CS… e SS...”;
- “… a menor explica credivelmente e num depoimento seguro …”;
- “O depoimento da MS… é igualmente credível e escorreito”;
- “ … ainda que não tenham assistido aos factos, ambas as testemunhas (S... e C...) acabam por confirmar a primeira reacção da criança perante a queda, instantes depois desta ter ocorrido …”;
- “As demais testemunhas, arroladas pelo arguido, não têm conhecimento directo dos factos, pelo que não permitem dilucidar qualquer facto, nem esbater a convicção que o tribunal foi formando relativamente à matéria levada à acusação”;
- E mais adiante: “… os depoimentos das testemunhas da acusação não puderam, de forma nenhuma, ser abalados pelos depoimentos das testemunhas de defesa”.

Relativamente ao que aconteceu, temos, na verdade, apenas a versão do arguido, completamente isolada, sem que haja qualquer outro meio de prova que a corrobore, em confronto com a versão da acusação, confirmada por duas pessoas – a menor ofendida, filha do arguido, e a mãe desta – que viveram os acontecimentos relatados e cujos depoimentos são, no fundamental, coincidentes, e são, ainda que parcialmente, corroborados pelos depoimentos das testemunhas de acusação relativamente ao que constataram logo a seguir aos factos, ao comparecerem de imediato no local destes, bem como pelo que ouviram, logo no momento, à ofendida e mãe, relativamente ao que se havia passado.
A questão controvertida, face ao alegado pelo arguido, é apenas a que respeita ao motivo pelo qual a menor caiu pelas escadas - uma vez que não há dúvidas de que caiu e das sequelas resultantes dessa queda -, rejeitando responsabilidades próprias nessa matéria, enquanto que, para o tribunal, sustentado nos depoimentos da menor C... e da mãe desta, a menor caiu porque foi puxada pelos cabelos, pelo arguido.
Independentemente das reservas que o recorrente possa colocar relativamente à veracidade do conteúdo de tais depoimentos, nomeadamente da menor C..., o certo é que este tribunal não dispõe de quaisquer outros meios de prova que, com maior credibilidade, permitam sustentar a falta de razoabilidade da posição assumida pelo tribunal recorrido, antes pelo contrário, do conjunto da prova produzida diríamos que a conclusão a que chegou o tribunal a quo é a mais razoável, está suficientemente sustentada na prova produzida, apresentando-se a respectiva fundamentação lógica, racional e convincente.
Dito de outro modo: para que o tribunal de recurso proceda à alteração da matéria de facto, exige a lei que as provas indicadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
Todavia, perante os elementos de prova disponíveis – declarações do arguido, depoimentos das testemunhas e documentos juntos aos autos (em especial, os autos de exame médico) -, não se colhem razões para censurar a opção do tribunal, por inexistir qualquer violação das regras ou princípios relativos à prova, não sendo possível concluir, face à prova indicada, que os factos impugnados não ocorreram tal como descrito na sentença recorrida.
Dir-se-á, pois, sem necessidade de maiores delongas, que o recurso improcede no que concerne à impugnação da matéria de facto.

3.2. Quanto à qualificação jurídica dos factos provados:
Alega o arguido que não actuou com dolo, pelo que não se encontram preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de crime de maus tratos.
Escreveu-se na decisão recorrida, a tal propósito, o seguinte:
“…
O crime de maus tratos pressupõe que o seu agente se encontre numa determinada relação para com a vítima.
O sujeito passivo do crime em apreço só pode ser a pessoa que se encontra para com o agente na relação pressuposta no preceito incriminador.
Assim, encontra-se nessa posição, o menor entregue em guarda a qualquer pessoa, ou, no caso, o menor em relação ao progenitor a quem não está entregue a sua guarda mas que tem, como pai não inibido do poder paternal, o poder dever de promover a protecção e educação da sua filha. E, está nesta posição o pai de um menor que o tenha consigo no cumprimento do respectivo regime de visitas.
O crime de maus tratos não pressupõe, já, uma reiteração das condutas, contentando-se o tipo, para se subsumir ao tipo criminal, uma só conduta “ agressora “ que, pela sua gravidade, mereça esta especial tutela e punição.
Quanto ao elemento subjectivo do tipo de crime em análise, o mesmo exige o dolo em qualquer das suas modalidades, previstas no artº 14º do Código Penal.
No entanto, como o crime em causa tanto pode ser um crime de resultado (como acontece no caso dos maus tratos físicos ) como de perigo ( casos descritos nas als. b) e c) do nº 1 e no nº 4 do artº 152º ), o conteúdo do dolo é variável em função do tipo de conduta do agente, dividindo-se, conforme os casos, em dolo de resultado ou mero dolo de perigo.
É imputado ao arguido o preenchimento da conduta típica prevista no nº 1 a).
Assim, o dolo deve abranger o próprio resultado danoso da integridade física ou da saúde, ou da honra e consideração da vítima, bem como, o conhecimento da relação de, no que no caso nos interessa, da guarda de menores.
Enquanto progenitor da vítima, o arguido encontrava-se especialmente obrigado a respeitá-la, e a zelar pela sua educação, crescimento harmonioso e bem estar.
Tais imposições decorrem dos mais básicos imperativos de ordem moral.
Ora, ficou provado que o arguido puxou os cabelos da sua filha, com força, provocando-lhe dores e hematomas. E ficou ainda provado que, ao actuar assim, o arguido produziu, ainda que não o desejasse, a queda da menor. E que fez acompanhar esta conduta de ofensas verbais à progenitora da menor, a quem chamava de “puta”, “porca” e “ordinária”.
O arguido não prestou qualquer assistência, nesta situação, à menor.
Deste modo, considero preenchidos todos os elementos objectivos do tipo de crime pelo qual o arguido acusado.
Quanto aos elementos subjectivos estes também se mostram preenchidos, sendo que o arguido actuou de forma dolosa e com dolo directo, com plena consciência de todos os elementos objectivos do tipo em análise e com vontade de maltratar a ofendida.
Pelo exposto, inexistindo quaisquer causas de exclusão da culpa ou da ilicitude, o arguido não pode deixar de ser condenado, pela prática, em autoria material, de um crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 a) do Código Penal.”

A norma legal correcta que está aqui em causa é actualmente a do art. 152.º-A, do CP[11], do seguinte teor:
“Maus tratos

1 — Quem, tendo ao seu cuidado, à sua guarda, sob a responsabilidade da sua direcção ou educação ou a trabalhar ao seu serviço, pessoa menor ou particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez, e:
a) Lhe infligir, de modo reiterado ou não, maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, ou a tratar cruelmente;
b) A empregar em actividades perigosas, desumanas ou proibidas; ou
c) A sobrecarregar com trabalhos excessivos;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

2 — Se dos factos previstos no número anterior resultar:
a) Ofensa à integridade física grave, o agente é punido com pena de prisão de dois a oito anos;
b) A morte, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos.”

Entre os bens jurídicos protegidos pela norma está a integridade física e psíquica de pessoa menor de 18 anos.
O tipo objectivo consiste, pois, na prática de maus tratos físicos ou psíquicos à pessoa menor, levados a cabo por quem tem esta à sua guarda, ou sob a responsabilidade da sua direcção ou educação.
Trata-se de um crime específico que, no caso de maus tratos físicos, não passa de um crime de ofensas à integridade física autonomizado em função daquela particular relação existente entre o agente e a vítima, havendo uma relação de concurso aparente entre os dois tipos de ilícito.
Dúvidas não há de que no presente caso houve agressão física à menor por parte do pai, consubstanciada tal agressão no puxão de cabelos da menor, ao ponto de a fazer cair, resultando de tal acção as sequelas descritas no respectivo exame médico. Mesmo que a menor não tivesse caído pelas escadas, bastaria aquele acto do arguido para integrar o aludido conceito de “agressão física”, sendo por si suficiente para preencher a previsão normativa relativamente a este requisito do tipo objectivo.
Por outro lado, apesar de a guarda da menor ter sido entregue à mãe no âmbito da regulação do poder paternal face à ausência de vida em comum de ambos os progenitores, o pai não foi totalmente excluído do exercício daquele poder, tinha direito de visitas da menor e a levá-la com ele durante determinados períodos, preparando-se, no dia dos factos, para levar a menor mais uma vez consigo, para com ela passar o fim-de-semana.
Consequentemente, o pai da menor estava ali nessa qualidade, no exercício dos seus direitos como pai, incumbindo-lhe os correspondentes deveres decorrentes da paternidade, passando a estar a menor ao seu cuidado, sob a responsabilidade da sua direcção e educação, enquanto com ele se mantivesse.
Estão, por isso, preenchidos os elementos objectivos do tipo.
No que concerne ao tipo subjectivo, exige-se efectivamente que o agente aja com dolo. Este pode assumir qualquer uma das suas modalidades: directo, necessário e eventual. Sendo essencial para a conformação do dolo a correcta informação do agente sobre a qualidade da vítima e da relação existente entre ambos, não oferece quaisquer dúvidas que, no presente caso, o arguido sabia que estava perante a sua filha e que estava ali para a tomar a seu cargo. Também não oferece dúvidas de que quis puxar a menor pelos cabelos (facto provado n.º 16, que nem sequer foi impugnado), tendo agido de forma deliberada, livre e consciente, sabendo tal conduta proibida. Tanto basta para que se conclua pela verificação de dolo directo, conforme assinalado na decisão recorrida.
É certo que da matéria da facto provada não resulta que o arguido quis o resultado verificado – queda da menor pelas escadas – ou mesmo que previu ou devia ter previsto tal consequência da sua conduta. Todavia, tal previsibilidade só assumiria relevância para efeitos de integração da sua conduta no crime preterintencional previsto no n.º 2 do art. 152.º-A, do CP, cujo resultado teria de ser imputado ao agente pelo menos a título de negligência, na ausência de dolo de resultado.
Todavia, na ausência de factualidade que permita integrar a conduta do arguido em tal previsão normativa, pelo facto de as ofensas à integridade física não chegarem a atingir o grau de gravidade pressuposto na alínea a) do n.º 2 da citada norma, a ofensa à integridade física simples pressuposta no n.º 1, al. a), do mesmo normativo legal, foi seguramente levada a cabo pelo arguido, de forma dolosa.
Concluindo-se, pois, pela verificação de todos os pressupostos, objectivos e subjectivos, do tipo legal em causa e pelo qual foi condenado o arguido.

3.3. Passemos, pois, à questão da medida da pena:
O ilícito cometido é punível com pena de um a cinco anos de prisão.
O tribunal recorrido fundamentou do seguinte modo a escolha feita:
“Em sede de determinação das consequências jurídicas do crime e da reacção criminal adequada, a culpa e a prevenção funcionam como critérios gerais orientadores da medida da pena, tendo esta, sempre, como limite, aquela, que é justamente o seu suporte. Relevante para encontrar a "medida da culpa", são os próprios ilícitos típicos, enquanto apreciados nas suas consequências típicas, que lhe conferem uma certa "imagem" ou sentido social.
Assim, tendo como pressuposto este critério orientador, analisemos então a situação do arguido.
Como se viu, o arguido está comprometido com o crime de maus tratos, p. e p. pelo artigo 152º, nº 1 a) do Código Penal.
O qual é punível com pena de prisão de um a cinco anos.
Este crime não prevê, em alternativa, a aplicação de pena de multa.
Assim, a pena a aplicar é necessariamente a de prisão.
Ora, é necessário, ao nível da culpa do arguido, considerar:
- A intensidade reduzida do dolo.
- A ilicitude um pouco abaixo da mediania dos factos – atentos os meios utilizados pelo arguido, as consequências directas da sua conduta e a falta de reiteração.
- O arguido não revelou ter interiorizado a censurabilidade da sua conduta.
- Tem-se esforçado por desenvolver a sua capacidade de se relacionar com a menor.
- Sopesa-se positivamente a falta de antecedentes criminais do arguido.
Assim, entendo adequada uma pena de um ano e meio de prisão.
O arguido é primário e está integrado socialmente.
O arguido está numa situação de invalidez, pelo que a sua disponibilidade para o trabalho é reduzida.
O arguido não elaborou um juízo de censura em relação aos factos, pelo que a substituição da pena de prisão por trabalho a favor da comunidade, nos termos do artigo 58º, nº 1 do Código Penal, não se mostra adequada a assegurar as finalidades da punição.
Todavia, afigura-se-me que a simples ameaça com a pena de prisão será suficiente para assegurar essas finalidades de punição, garantindo para a recuperação social do arguido.
Deste modo, decido suspender a execução da pena de prisão, por período de ano e meio – cfr. artigo 50º, nº 1 e 5 do Código Penal.”

Dispõe o art.º 40.º, do CP, que “a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1) e que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (n.º 2). Acrescenta o art.º 71.º, n.º 1: «A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção».
Dos citados artigos extrai-se que a medida concreta da pena tem como parâmetros: a) a culpa, cuja função é a de estabelecer o limite máximo e inultrapassável da pena; b) a prevenção geral (de integração), à qual cabe a função de fornecer uma “moldura de prevenção”, cujo limite máximo é dado pela medida óptima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; c) a prevenção especial, à qual caberá a função de encontrar o quantum exacto da pena, dentro da referida “moldura de prevenção”, que melhor sirva as exigências de socialização do delinquente.
Em suma, a culpa e a prevenção constituem os dois termos do binómio que importa ter em conta para encontrar a medida correcta da pena.
Perante a moldura abstracta correspondente, que tem um ano de prisão como mínimo, podendo ir até cinco anos, o circunstancialismo a ponderar in casu, para o efeito – o grau de ilicitude dos factos (abaixo da mediania, segundo a decisão recorrida, atentos os meios utilizados e a não existência de reiteração), as respectivas consequências (fazendo com que a menor tivesse caído e rolado pelas escadas, o que lhe causou traumatismo craniano, com cefaleia parieto-occipital e eritema do couro cabeludo com hematoma epicraniano de partes moles), a reduzida intensidade do dolo, apesar de este se apresentar na forma directa, as condições pessoais e situação económica do arguido, a ausência de antecedentes criminais, sem esquecer as exigências de prevenção -, terá de concluir-se que a pena aplicada ao arguido – de um ano e seis meses de prisão – está muito próxima do limite mínimo, não padecendo, na perspectiva deste tribunal, de qualquer exagero, sendo, por isso, de confirmar, bem como a respectiva suspensão.
Em consequência, é o recurso totalmente improcedente.

***
III. Decisão:
Em conformidade com o exposto, julga-se improcedente o recurso do arguido A..., confirmando-se a decisão recorrida.

Custas a cargo do arguido, com taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC (art. 87.º, n.º 1 al. b) e n.º 3, do CCJ).
Notifique.

Lisboa, 24 de Maio de 2011

(Elaborado em computador e revisto pelo relator, o primeiro signatário - artigo 94.°, n.º 2, do CPP).

Relator: José Adriano
Adjunto: Vieira Lamim
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[1] Por sentença de 28 de Junho de 2010, nessa mesma data depositada.
[2] Na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4.09.
[3] Na redacção da Lei n.º 48/2007, de 29/08.
[4] In “Registo da Prova em Processo Penal – Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues”, pág. 809;
[5] No mesmo sentido, Cunha Rodrigues, Lugares do Direito, Coimbra, 1999 pag. 498; ou ainda o Ac. do STJ de 20/02/2003, Proc. 240/03-5, in “Boletim de Sumários dos Acórdãos do STJ”: «Os recursos, como remédios jurídicos que devem ser, não podem ser utilizados com o único objectivo de alcançar “uma melhor justiça”, já que a pretensa injustiça imputada a um vício de julgamento só releva quando resulte da violação do direito material».
[6] G. Marques da Silva, obra citada, pag. 817.
[7] Recurso. n.º 3321/04, da 2.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto (relator: Des. António Gama).
[8] “A estrutura dos recursos na proposta de revisão do CPP”, RPCC, 8.º, 2.º, pág. 259, citado no Ac. desta Relação proferido no Rec. 3321/04, acima citado.
[9] Figueiredo Dias, “Direito Processual Penal”, lições de 1988/89, pág. 140 e segs.
[10] Damião da Cunha, “O Caso Julgado Parcial”, ed. 2002, pág. 567.
[11] Na redacção introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4/9, vigente à data dos factos.

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/e6e1f17fa82712ff80257583004e3ddc/ead89080644ac26a802578b90038086f?OpenDocument

terça-feira, 28 de junho de 2011

CADUCIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO, REFORMA, INVALIDEZ, TRABALHADOR - Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra - 07/06/2011

Acórdãos TRC
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
263/10.3TTGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA
Descritores: CADUCIDADE DO CONTRATO DE TRABALHO
REFORMA
INVALIDEZ
TRABALHADOR

Data do Acordão: 02-06-2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DA GUARDA
Texto Integral: S

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 343º, AL. C) DO CT/2009; DEC.LEI Nº 187/2007, DE 10/05

Sumário: I – Para efeitos de reforma, a invalidez, tout court, sempre foi o que hoje é a invalidez relativa, ou seja, o que o Dec. Lei nº 187/2007 acrescentou não foi a invalidez relativa, mas a invalidez absoluta.
II – Efectivamente, o que mudou foi a consagração de um regime mais favorável para o que hoje, e como novidade, se chama invalidez absoluta (fixação de um prazo de garantia mais baixo, não aplicação do factor de sustentabilidade, no momento da conversão da pensão por invalidez em velhice e a fixação de uma regra mais favorável nos, assim chamados, mínimos sociais).

III – O artº 343º, al. c) do CT/2009 refere-se a qualquer reforma, por velhice ou (a qualquer reforma) por invalidez e, invocada a reforma, determina a caducidade do contrato.


Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra:

1 – Relatório

1.1 – O processo

A... intentou a presente acção comum e, demandando a sociedade B..., S.A., pediu que seja (a) declarada a ilicitude do despedimento da autora e que a ré não podia considerar cessado o contrato de trabalho por caducidade e que a mesma seja condenada (b) a reintegrar a autora no seu posto de trabalho, sem prejuízo de esta poder vir a optar pela indemnização de antiguidade; (c) a pagar a quantia de €710,33 a título de férias não gozadas; (d) a quantia de €350,30, a título de retribuição proporcional de férias, subsídio de férias e subsídio de Natal pelo trabalho prestado em 2009 e (e) a pagar os juros à taxa legal sobre todas as importâncias reclamadas, desde o seu vencimento e até integral pagamento.


A autora, fundamentando a pretensão, diz que trabalhou para a ré, de 21 de Outubro de 2008 até 11 de Junho de 2010, desempenhando funções correspondentes à categoria de operadora principal, nas caixas existentes na frente de loja e auferindo a retribuição mensal ilíquida de €710,31, acrescida do subsídio de alimentação. Acrescenta que entrou de baixa médica por doença natural em 2.03.2009 e, em 12.03. 2010, na sequência de uma junta médica da Segurança Social, foi reformada por invalidez relativa, embora mantendo embora uma capacidade de trabalho de um terço. A autora defende que tem condições para continuar a desempenhar as suas funções, embora eventualmente com redução parcial do horário, mas, a 11.06.2010, recebeu da ré a carta onde lhe comunicava considerar cessado o contrato de trabalho, por caducidade, com efeitos a 1.06.2010. Diz que, a 23.06.2010, remeteu à ré uma carta a comunicar o facto de se manter com uma capacidade de trabalho de um terço e solicitando a atribuição de funções e horário de trabalho compatíveis com a sua condição, mas a ré nem respondeu. Considera-se, por isso, ilicitamente despedida e deve ser reintegrada, além de ter direito a receber as prestações vencidas desde o despedimento e outros créditos que enumera.


Realizada a audiência de partes, a ré contestou. Diz que a autora, no decurso da baixa médica e atenta a natureza da doença em questão, terá diligenciado por passar à situação de reforma por invalidez, mas desse procedimento a ré apenas tomou conhecimento da decisão de deferimento de pensão de invalidez, por comunicação, datada de 21 de Maio de 2010, do CNP, que informava o deferimento da pensão por invalidez e da data de início reportada a 12.03.2010 e não distinguindo se era invalidez absoluta ou relativa. Acrescenta que, nos termos legais, tendo tido conhecimento de passagem de um trabalhador à situação de aposentado, comunicou à autora a caducidade do contrato de trabalho, ou seja, não a impediu de voltar ao trabalho, porquanto a mesma se encontra em situação de aposentada.


O processo prosseguiu com o saneamento tabelar, a realização da audiência de julgamento e a fixação, sem reclamações, da matéria de facto apurada.


Conclusos os autos, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e decidiu “A) condenar a ré a pagar à autora a quantia de 21,41 € de juros moratórios respeitantes ao subsídio de férias vencido em 2009; B) absolver a ré de tudo o demais pedido”.


1.2 O recurso

Inconformada com o decido, a autora apelou. Termina o seu recurso com a formulação das seguintes Conclusões:

[…]


A recorrida contra-alegou.

[…]


O recurso foi recebido e, nesta Relação, o Ministério Público emitiu Parecer, onde entende que o contrato só caduca se o trabalhador estiver impossibilitado de exercer todas as actividades incluídas na sua categoria profissional e, por isso, acompanha o alegado pela recorrente e defende a procedência da apelação.


A recorrida respondeu ao Parecer, discordando e renovando argumentos anteriores.


Foram dispensados os Vistos e cumpre apreciar o recurso.


1.3 Objecto do recurso

Definido pelas conclusões da recorrente, o objecto da apelação é saber se a interpretação feita pela 1.ª instância se revela correcta, concretamente se a reforma por invalidez, sendo esta relativa, implica, ainda assim, a caducidade do contrato de trabalho. Ou, se quisermos usar a pergunta da recorrente, “a caducidade do contrato de trabalho com fundamento na reforma do trabalhador por invalidez opera independentemente do grau de incapacidade?”



2. Fundamentação

2.1 Fundamentação de facto

Não havendo qualquer oposição à matéria de facto que a 1.ª instância fixou, transcrevemos (para melhor compreensão da decisão) os aludidos factos:

[…]


2.2 Aplicação do direito

Definido o objecto do recurso e enumerados os factos fixados pelo tribunal de 1.ª instância, cumpre apreciar a questão jurídica que motiva esta apelação.


Aplicando o direito, a decisão da 1.ª instância, reflecte do seguinte modo:

“Enunciando princípios gerais quanto ao emprego de trabalhador com capacidade de trabalho reduzida, o nº 1 do artigo 84º do actual Código do Trabalho dispõe que o empregador deve facilitar o emprego a trabalhador com capacidade de trabalho reduzida, proporcionando-lhe adequadas condições de trabalho, nomeadamente a adaptação do posto de trabalho, retribuição e promovendo ou auxiliando acções de formação e aperfeiçoamento profissional apropriadas. Na falta de concretização dos referidos princípios gerais – que, aliás, mais se apresentam como desideratos respeitantes à empregabilidade dos trabalhadores com capacidade reduzida do que à reconversão daqueles que viram diminuída a sua capacidade no decurso da sua prestação de trabalho – não se colhe deste preceito qualquer comando directamente aplicável à situação que nos ocupa. Do também invocado artigo 343º alínea c) do Código do Trabalho – que prevê a caducidade do contrato de trabalho nos casos de reforma do trabalhador por velhice ou invalidez – também não se vislumbra que se possam extrair directamente argumentos no sentido da sindicabilidade da pretensão da autora. Na verdade, uma interpretação literal do preceito conduz-nos no sentido inverso, isto é, se a lei não distingue entre invalidez absoluta e relativa, também o intérprete o não deverá fazer.


Por sua vez, definindo o que deve, para efeitos de atribuição de prestações da Segurança Social, entender-se por invalidez relativa (…) Seja como for, não podemos abstrair-nos de que a Segurança Social atribuiu à trabalhadora ora autora uma pensão por invalidez, sendo certo que, na comunicação feita à entidade patronal pela mesma entidade oficial apenas se referia singelamente “pensão de invalidez”, nada se dizendo sobre a se esta era absoluta ou relativa. Por outro lado, a autora não logrou provar que pudesse continuar a ocupar o mesmo posto de trabalho apenas com redução de horário, como alegou no artigo 9º da sua contestação, provando-se apenas que a demandante tem uma capacidade restante que lhe permite exercer funções em que não seja necessário pegar em pesos ou transportá-los – requisitos que não se verificam relativamente à categoria profissional de operadora principal de caixa, que exercia anteriormente à declaração da situação de invalidez relativa. Acresce que, para os casos de doença natural, como o presente, a lei não impõe às entidades patronais o dever jurídico de proporcionarem aos trabalhadores afectados por incapacidades parciais a respectiva ocupação em funções compatíveis, como o faz no nº 3 do artigo 283º do Código do Trabalho e nos artigos 154º e seguintes da Lei nº 98/2009, de 4 de Setembro. Reconhece-se que, no actual regime, os interesses dos trabalhadores afectados por doença natural parcialmente incapacitante não se encontrarão verdadeiramente assegurados, na medida em que efectivamente exista distinção entre a invalidez absoluta e a invalidez relativa ao nível do cálculo da pensão de invalidez.


Porém, a imposição de eventuais deveres às entidades patronais a este nível depende de opção legislativa que, tanto quanto conseguimos vislumbrar, não foi assumida, ficando-se o legislador, quando muito, pelos meros princípios gerais sem directa cogência para o caso concreto (suposto que o “dever de facilitar” previsto no nº 1 do artigo 84º do Código do Trabalho se não restrinja à fase de acesso ao trabalho). Deste modo, não se verifica que a ré tenha despedido ilicitamente a autora, tendo a cessação do contrato de trabalho “sub judice” ocorrido por caducidade, como alegado pela ré.”


Comecemos por adiantar que a decisão da 1.ª instância apreciou e aprofundou todas as razões que podiam fundar o direito invocado pela ora recorrente e, salvo melhor saber, conclui com acerto, denegando a pretensão.


A questão, como já se disse, liga-se à interpretação do disposto na alínea c) do artigo 343.º, do Código do Trabalho de 2009 (CT/2009), o qual, reproduzindo o artigo 387.º do Código anterior, nos diz que “O contrato de trabalho caduca nos termos gerais, nomeadamente: Com a reforma do trabalhador, por velhice ou invalidez”.


Partindo da dicotomia entre invalidez absoluta e invalidez relativa, ambas previstas no Decreto-Lei n.º 187/2007, de 10 de Maio, o entendimento da recorrente é que passa a ser exigível a invalidez absoluta para a caducidade do contrato de trabalho. E, podendo cair-se em interpretação semelhante, vários autores referem que “no artigo 348.º do CT/2009 só se autonomizou a reforma por idade, pois a reforma por invalidez constitui uma impossibilidade superveniente, absoluta e definitiva de o trabalhador prestar o seu trabalho” (Pedro Romano Martinez, Código do Trabalho Anotado, Almedina, 7.ª edição, 2009, pág. 777).


Não é assim, porém. Melhor dito, percebe-se que não é correcta a interpretação da recorrente, mesmo estando correcta a citação antes feita. A questão fica melhor elucidada com a leitura do preâmbulo do Decreto-lei n.º 187/2007 e com a compreensão do regime anterior: a invalidez, tout court, sempre foi o que hoje é a invalidez relativa, ou seja, o que aquele decreto-lei acrescentou não foi a invalidez relativa, mas a absoluta.


Daí que os comentários que versam sobre a caducidade prevista no Código do Trabalho – e prevista em moldes semelhantes na legislação laboral anterior - tenham em mente uma situação de invalidez, apenas, mas que é, suficientemente, a invalidez relativa.


Diz o preâmbulo: “O presente decreto-lei traz uma outra importante novidade ao nosso ordenamento jurídico. Vem introduzir uma distinção no regime da protecção social[1] na invalidez, entre a invalidez relativa, até aqui objecto de regulamentação anterior, e a invalidez absoluta, situação a merecer pela primeira vez atenção e tratamento especiais”.


A invalidez que agora – por contraposição – se chama relativa, era a invalidez, quando só um conceito havia, e mantém a presunção de permanente, a referência ao terço da remuneração e ao prazo de garantia que já existia (Ilídio das Neves, Dicionário Técnico e Jurídico de Protecção Social, Coimbra Editora, 2001, págs. 418/419); o que mudou foi a consagração de um regime mais favorável para o que hoje, e como novidade, se chama invalidez absoluta (fixação de um prazo de garantia mais baixo, não aplicação do factor de sustentabilidade, no momento da conversão da pensão por invalidez em velhice e a fixação de uma regra mais favorável nos, assim chamados, mínimos sociais).


A pensão de invalidez “normal”, ou seja, a pensão de invalidez relativa não é calculada de forma diferente da (nova) pensão por invalidez “absoluta”, questão que, lateralmente, se equaciona na sentença: pode haver maior compensação do mínimo social (cf. artigos 44.º e 45.º do DL 187/2007) mas, uma e outra, ponderam o tempo contributivo relevante. Porque, repete-se, a pensão de invalidez que existia e consequente reforma por invalidez refere-se à invalidez relativa: a novidade é a absoluta.


A compreensão do que acaba de ser dito afasta, salvo melhor entendimento, a interpretação, feita pela recorrente, da alínea c) do artigo 343.º do CT/2009. As situações de impossibilidade superveniente estão previstas na alínea b), as situações de reforma na alínea c). Dentro das situações de reforma há as por velhice e as por invalidez, mas qualquer que seja a invalidez, desde que, a que o é, em invalidez em concreto, conceda a reforma.


Nem fazia sentido, parece-nos, que a lei repetisse na alínea c) as mesmas exigências que faz na alínea b) do mesmo preceito.


Mas a recorrente vinca que a invalidez relativa (que, contrariamente ao que parece resultar da sentença, se afere por uma capacidade ou incapacidade remuneratória e não por uma incapacidade ou capacidade médica) lhe permite continuar a trabalhar.


Assim é, mas a questão, salvo o devido respeito, é apenas uma questão de prestação social e não de contrato de trabalho; na pensão por invalidez absoluta o pensionista não pode cumular rendimentos de trabalho nem pensões do seguro social voluntário, subsídio de doença ou subsídio de desemprego; na pensão por invalidez relativa já pode acumular, diferentemente, rendimentos do trabalho, seja eles provenientes da profissão que vinha exercendo até então, seja de profissão ou de actividades diferentes daquela.


Já se disse que a questão é de acumulação de rendimentos, não é de manutenção do contrato de trabalho: em lado algum o diploma que atribui as pensões (e que fomos citando) o refere ou consente, salvo o devido respeito, a interpretação defendida. Diploma esse que, acrescente-se é anterior ao Código do Trabalho de 2009 e neste não se reflectiu qualquer modificação no regime da caducidade do contrato de trabalho.


Por isso, o artigo 343.º, alínea c) refere-se a qualquer reforma, por velhice ou (qualquer reforma) por invalidez e, invocada esta, conduz à caducidade do contrato.



A finalizar, acrescentamos que a jurisprudência em que a recorrente se funda não infirma o que aqui se conclui, porquanto respeita a caso diferente, ou seja, a um caso de incapacidade e não de reforma, e a interpretação por nós feita (distinguindo prestação social e cumulação de rendimentos da manutenção daquele contrato de trabalho) não enferma de qualquer inconstitucionalidade.


Acresce que do montante da prestação social, mesmo que inferior ao salário mínimo nacional, não resulta igualmente qualquer violação à Constituição.


Assim, resolvida a única questão que era objecto do presente recurso, concluímos pela improcedência deste.


3. Sumário

1 – Para efeitos de reforma, a invalidez, tout court, sempre foi o que hoje é a invalidez relativa, ou seja, o que o Decreto-Lei n.º 187/2007 acrescentou não foi a invalidez relativa, mas a invalidez absoluta.

2 – Efectivamente, o que mudou foi a consagração de um regime mais favorável para o que hoje, e como novidade, se chama invalidez absoluta (fixação de um prazo de garantia mais baixo, não aplicação do factor de sustentabilidade, no momento da conversão da pensão por invalidez em velhice e a fixação de uma regra mais favorável nos, assim chamados, mínimos sociais).

3 – O artigo 343.º, alínea c) do CT/2009 refere-se a qualquer reforma, por velhice ou (a qualquer reforma) por invalidez e, invocada a reforma, determina a caducidade do contrato.




4. Decisão

Pelas razões ditas, acorda-se na Secção Social do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar improcedente a presente apelação, interposta por A... contra B..., SA, assim confirmando o decidido em 1.ª instância.


Custas pela recorrente


José Eusébio Almeida (Relator)
Manuela Fialho
Azevedo Mendes


[1] E que a distinção é apenas para o regime da protecção prevista no diploma resulta claro do seu artigo 13.º.

http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/5a726b00ae3925e9802578b5004f65ff?OpenDocument

segunda-feira, 27 de junho de 2011

INFANTICÍDIO, INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA, NULIDADE DE SENTENÇA, IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO - Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa - 29/03/2011

Acórdãos TRL
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
288/09.1GBMTJ.L1-5
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: INFANTICÍDIO
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
NULIDADE DE SENTENÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
REENVIO

Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 29-03-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO

Sumário: Iº A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410º, nº2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412º, nºs3, 4 e 6, do mesmo diploma;
IIº No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do nº2 do referido artigo 410º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento. No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs3 e 4 do art. 412º do C.P. Penal;
IIIº A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º];
IVº A circunstância de a arguida ter procurado manter em segredo a sua gravidez, usando roupas largas para, deste modo, esconder o volume do seu ventre que, natural e progressivamente, ia aumentando, não tendo recorrido a quaisquer serviços médicos no decurso da gravidez e respondendo sempre negativamente quando colegas a questionavam sobre se estaria ou não grávida, não impõe, forçosamente, que se tenha de concluir que, desde o primeiro momento, ou pelo menos de véspera, havia formulado o propósito de tirar a vida ao recém-nascido;
Vº O vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.410, nº2, al.a, CPP), verifica-se quando o tribunal não tiver considerado provado ou não provado um facto alegado pela acusação ou pela defesa ou de que possa e deva conhecer, nos termos do art.358, nº1, CPP, se esse facto for relevante para a decisão da questão da culpabilidade, ou quando, podendo fazê-lo, não tiver apurado factos que permitam uma fundada determinação da sanção;
VIº Aquele vício distingue-se da nulidade da sentença, prevista na al.c, do nº1, do art.379, CPP, uma vez que esta só existe quando o tribunal não se tiver pronunciado sobre “questões que devesse apreciar” ou quando se tiver debruçado sobre “questões de que não podia tomar conhecimento”, sendo que os conceitos de facto e questão não são sobreponíveis;
VIIº Estando a arguida acusada de homicídio qualificado, por ter tirado a vida ao filho, logo após o parto e tendo alegado na contestação, ainda que com alguma imperfeição técnica, que agiu em estado de perturbação sob influência do parto que acabara de ocorrer, impunha-se que o tribunal, em sede de indagação factual, de fixação da factualidade provada e não provada e de discussão jurídica da causa, apreciasse tal matéria que havia sido alegada;
VIIIº Não tendo o tribunal averiguado aqueles factos, em ordem a que se pudesse equacionar a integração (ou não) no crime de infanticídio, verifica-se o vício de insuficiência da matéria de facto, o que determina o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do art.426, nº1, CPP.
Decisão Texto Parcial:

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório
1. No processo comum com intervenção do tribunal colectivo n.º 288/09.1GBMTJ.L1, do 1.º Juízo do Tribunal Judicial do Montijo, procedeu-se ao julgamento da arguida N..., melhor identificada nos autos, pela imputada prática, em autoria material, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º2, alíneas a) c) e j), e de um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254.º, todos do Código Penal.
Realizado o julgamento, foi proferido acórdão que decidiu nos seguintes termos:
«Por todo o exposto, este Tribunal Colectivo delibera julgar a Acusação do Ministério Público procedente apenas em parte e em consequência:
a) CONDENA a arguida N..., como autora material e na forma consumada de um crime de homicídio simples, previsto e punido no art. 131.º CP, na pena de 8 (oito) anos de prisão.
b) ABSOLVE-A da acusação da prática de um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo art. 254.ºCP.
(…)»

2. Inconformados, a arguida e o Ministério Público recorreram deste acórdão, finalizando as suas motivações com as seguintes conclusões:

2.1. Recurso da arguida (transcrição das conclusões):
1. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Montijo, o qual condenou a recorrente como autora material e na forma consumada de um crime de homicídio simples p. e p. pelos art°s. 131.º do CP, na pena de 8 anos de prisão. Porque,
2. Entende o recorrente, com o devido respeito, que o douto Acórdão ora recorrido enferma do seguinte vício: insuficiência da matéria de facto provada para a decisão.
3.Com efeito, o douto tribunal deu como provada a seguinte matéria:
3.1. Que a ora recorrente no mês de Julho de 2008 teve um relacionamento sexual com um individuo;
3.2. Que no mês seguinte apercebeu-se de que estava grávida, através de um teste que adquiriu numa farmácia do Montijo;
3.3. Que durante os nove meses de gravidez a recorrente nunca consultou qualquer médico da especialidade de obstetrícia ou outra no sentido de acompanhar o desenrolar da gestação, estado que ocultou, vestindo roupas largas;
3.4. Que quando questionada pelas colegas do curso profissional que se encontrava a frequentar se estaria grávida, a recorrente sempre respondeu negativamente, inventando encontrar-se com o útero inchado devido a problemas relacionados com a tiróide, ora referindo sofrer de um tumor na zona da barriga, ora alegando ter uma doença que lhe criava bolsas de água naquela zona;
3.5.Versão que manteve mesmo depois de lhe ter sido oferecida ajuda, no que respeita aos bens de que necessitaria durante a gravidez e após o nascimento da criança e mesmo depois de urna colega lhe referir que caso fosse possível gostaria de adoptar o filho da recorrente após o seu nascimento;
3.6.Na semana anterior à Páscoa do ano de 2009 a recorrente referiu às suas colegas que no dia seguinte, uma quarta-feira, não iria à escola, em virtude de necessitar deslocar-se a uma consulta médica;
3.7.Que de facto, nesse dia foi contactando com a colega M…, informando que estava no médico, em tratamento, e à noite referiu-lhe estar deitada, com algumas dores mas que o tratamento tinha corrido bem e que já não tinha barriga;
3.8.A recorrente na noite de 8 de Abril de 2009, entre as 4H e as 5H começou a sentir fortes dores nos rins, seguidas de fortes dores na barriga, assim se mantendo até depois do almoço, sempre fechada no seu quarto para que nenhum dos seus familiares se apercebesse;
3.9. Que a determinada altura sentiu dores mais fortes, pelo que se dirigiu ao quarto de banho tendo o trabalho de parto seguido o seu curso normal, com o rebentamento do saco amniótico, tendo ocorrido o parto de um feto de termo, do sexo masculino, com 51cm de comprimento, que caiu no interior da sanita, local de onde foi retirado pela recorrente, após o que cortou o cordão umbilical através de força de tracção produzida pelas mãos;
3.10.De seguida, e ainda no interior do quarto de banho, a recorrente apesar de ter constatado que o recém-nascido estava vivo, fez força com as duas mãos no pescoço do recém-nascido apertando-o, para que este desfalecesse, o que não conseguiu, já que se encontrava debilitada pelo esforço de parto e também porque o recém-nascido, cada vez que abrandava a força que produzia com as mãos, fazia força no sentido de inspirar;
3.11. Face a tal situação a recorrente puxou para junto de si um soutien, usando uma das respectivas alças para estrangular o recém-nascido, rodeando o pescoço daquele com tal elástico, após o que deu, pelo menos, um nó cego, firmemente apertado, sempre fazendo força para que o elástico ficasse em pressão, tendo o recém-nascido acabado por desfalecer, assim vindo a ocorrer a sua morte;
3.12.Após, envolveu o recém-nascido numa toalha que colocou dentro de um saco de plástico, colocando no seu interior um outro saco com a placenta e outros objectos que se encontravam embebidos em sangue;
3.13. Levou então o saco que continha o corpo do recém-nascido já sem vida, para o seu quarto, local onde colocou ao lado de uma cómoda e onde permaneceu até ao dia 27 de Maio de 2009, altura em que foi encontrado pela sua irmã;
3.14.No dia seguinte aos acontecimentos atrás descritos, 9 de Abril de 2009, a recorrente compareceu na escola que frequentava;
3.15.A conduta da recorrente foi causa directa, adequada, necessária e exclusiva das lesões sofridas pelo recém-nascido, o qual nasceu de termo, apresentando, nada da autopsia, 1,938Kg de peso e 51 cm de comprimento, sem mal formações externas e internas aparentes, causando-lhe um sulco no pescoço, ao nível da laringe, único e completo, horizontal, com 1 cm de largura, com sinal do nó na face lateral esquerda do pescoço;
3.16.Lesões que lhe vieram a provocar a morte, causada por asfixia por estrangulamento, por acção de natureza contundente no pescoço;
3.17.A recorrente actuou deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de tirar a vida ao seu filho;
3.18. Não obstante saber que o mesmo poderia ter outro destino, que fosse consigo que fosse com terceiros, através de adopção;
3.19. Mais sabia que o recém-nascido, naquelas circunstâncias, estava completamente indefeso, não podendo contar com a ajuda de ninguém para além da mãe, e sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe a morte, como causou;
3.20. Contudo tal facto não a coibiu de actuar da forma descrita, porque queria provocar a morte do recém-nascido, sabendo que a sua conduta era proibida por lei mas, nem por isso deixando de a concretizar;
3.21. A recorrente agiu de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
3.22. A recorrente não praticou anteriormente qualquer facto pelo qual tenha sido criminalmente punida;
3.23. Depois de ter abandonado o sistema de ensino aos 18 anos a recorrente iniciou um período de 4 anos de experiência laboral. Durante esse período a sua mãe faleceu com um A VC;
3.24.A recorrente com o falecimento da mãe desorganizou-se emocionalmente e iniciou uma relação conflituosa com o seu agregado familiar nuclear que perdurou até à descoberta do corpo do recém-nascido dentro do saco de plástico;
3.25.Quando suspeitou que a recorrente estava grávida o pai ameaçou-a que ou ela resolvia o problema ou punha-a fora de casa;
3.26.Durante a gravidez a recorrente, por medo e por vergonha do impacto da sua situação junto da família e amigos, adoptou um mecanismo intelectual segundo o qual negava a si própria que estava grávida;
3.27. Durante a pendência deste processo a recorrente engravidou e teve uma filha;
3.28. Manifesta grande felicidade por esta maternidade, tendo agora apoio da família.
4. O douto tribunal "a quo" fundamenta a sua decisão sobre a matéria de facto com base no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, a saber, confissão da recorrente, testemunhas, no relatório psiquiátrico junto a fls. 586 e ss.
5. O douto tribunal a quo ponderou somente qual o crime, pelo qual, devia condenar a recorrente, se por homicídio qualificado, se por homicídio privilegiado ou se por homicídio simples. Mas,
6. Nunca se pronunciou sobre a possível condenação da recorrente por infanticídio, quando,
7. Está provado que a recorrente - mãe, matou o filho logo após o parto. E,
8. O douto tribunal a quo nem tão pouco equaciona a possibilidade ou não de a recorrente ter morto o filho estando ainda sob a sua influência perturbadora do parto. Ora,
9. Apesar de existir a norma penal que pune o infanticídio nos termos indicados, e pese embora se tenha apurado desde o inicio da investigação policial que a morte do recém-nascido ocorreu de imediato após o parto, o tribunal ignorou em absoluto a possibilidade de se estar perante esse tipo privilegiado de crime, ainda que fosse para o afastar, pois nem sequer se lhe referiu.
10.Com esta omissão ficou criada urna situação de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, o que constitui o vicio da al a) do art°. 410° do CPP. Porque,
11. Este vicio resulta do facto do tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação relativamente ao apuramento da matéria de facto essencial levando a que se não possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição.
12. Não pode deixar de ser tido em consideração que a mãe matou o recém-nascido logo após o parto e que a recorrente negou a sua evidente gravidez até ao último momento.
13. Assim sendo deveria ter sido feita uma avaliação psiquiátrica à recorrente de forma a determinar se o seu comportamento resultou da influência perturbadora do parto. Mas,
14. O relatório junto aos autos é omisso nesta matéria, pelo que,
15. Deverá ser elaborado novo relatório onde seja tida em consideração esta questão, ou,
16. Caso assim não se entenda, a recorrente deveria ter sido condenada por infanticídio porquanto,
17. Como muito bem defende o Prof. Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Torno I, pág. 103, se o tribunal não conseguir obter certezas susceptíveis de considerar verificada, ou de afastar com segurança, aquela influência perturbadora, restar-lhe-á fazer uso do princípio in dubio pro reo, que numa situação destas será considerar verificada a tipicidade do art°. 136° e não punir pelos art°. 131° ou 132°,
18. Devendo a pena aplicada ser suspensa na sua execução atendendo a que a recorrente é primária, está familiar e socialmente inserida, tendo inclusive uma filha que nasceu posteriormente aos factos constantes dos autos.
19. O douto acórdão violou assim o disposto nos art°s. 136° do Código Penal e 410° n.º 2 al. a) do Código de Processo Penal.
Nestes termos e nos mais de direito deve conceder-se integral provimento ao presente recurso, e em consequência ser revogado o douto acórdão do tribunal " a quo" e os autos serem reenviados para novo julgamento relativamente à questão concretamente identificada - saber se o comportamento da recorrente resultou da influência perturbadora do parto, ou caso assim não se entenda ser a recorrente condenada por infanticídio numa pena que deve ser suspensa na sua execução, pois só assim se fará a digna e costumada JUSTIÇA

2.2. Recurso do Ministério Público (transcrição das conclusões):
1.ª Ao condenar a arguida pela prática do crime de homicídio simples, previsto e punido no art. 131.º do Código Penal, na pena de 8 (oito) anos de prisão e ao absolvê-la da acusação da prática de um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo art. 254.º do Código Penal, incorreu o douto acórdão proferido desde logo, no vício de erro notório na apreciação da prova,
2.ª designadamente, no que concerne aos pontos 26. e 28. dos factos provados, bem como, aos pontos 1. e 2. dos factos não provados.
3.ª Com efeito, o mecanismo intelectual que, no entender do Tribunal a arguida adoptou durante a gravidez segundo o qual negava a si própria esse seu estado, por medo e vergonha do impacto da sua situação junto de família e amigos, fundamentando-se quase exclusivamente no depoimento da arguida, no relatório psiquiátrico junto aos autos e no depoimento do Psiquiatra arrolado como testemunha de defesa daquela e fazendo "tábua rasa" da restante prova produzida, mais não traduz do que o branqueamento do seu comportamento.
4.ª Por outro lado, ao referir que a arguida manifesta grande felicidade pela segunda maternidade mostrou o Tribunal não ter valorado devidamente o teor do relatório social para determinação da sanção junto aos autos e por ele solicitado e que revela precisamente que também esta maternidade teria igual desfecho não fosse a atempada intervenção judicial, sendo certo que a criança que entretanto deu à luz foi entregue ao pai por decisão judicial.
5.ªMas e sobretudo, toda a prova produzida impõe a conclusão de que a arguida, que sabia estar grávida, previu o dia do parto avisando as colegas, na véspera dos acontecimentos, que não iria à escola
6.ª e que, pelo menos nesse momento, formulou o propósito de se desfazer do recém-nascido, matando-o após o seu nascimento.
7.ª Tal conclusão é suportada pelo facto de a mesma não se ter dirigido a qualquer instituição hospitalar, de nunca ter efectuado, durante a gravidez, qualquer diligência para eventual adopção da criança, de nunca ter efectuado os preparativos próprios relativos ao nascimento de uma criança, de não se ter deslocado nunca a uma consulta da especialidade tendo em vista o acompanhamento da sua gestação, de ter ocultado a gravidez, vestindo roupas largas.
8.ªDe igual modo, ao conservar no seu quarto o saco de plástico contendo o corpo do seu filho - num local a quem ninguém mais acedia, sem ser a própria -, mais não pretendeu a arguida senão evitar que alguém descobrisse o mesmo.
9.ªAo concluir que a arguida viveu toda a situação sozinha, incorreu ainda o douto acórdão em contradição com os factos provados n.º 4. a 7., uma vez que destes resulta que por diversas vezes foi confrontada pelas colegas sobre o seu estado, a quem mentia, sendo certo que delas recebeu ofertas de apoio, que rejeitou.
10.ª Existe também contradição no facto de o douto acórdão aceitar, à revelia quer da factualidade provada, quer da demais fundamentação, que a morte do recém-nascido não traria benefícios à arguida, já que só o seu desaparecimento lhe permitiria seguir a sua vida como se nada houvesse acontecido.
11.ªMais se vislumbra contradição entre a factualidade apurada inserta nos pontos. 10. e 11. - e que resultou essencialmente do depoimento da arguida e do relatório da autópsia -, dando conta dos esforços levados a cabo pela mesma para tirar a vida ao recém-nascido, usando todos os recursos disponíveis e a conclusão extraída, de que a arguida se encontrava num estado de consciência comprometida.
12.ª Por último,
ao concluir que "não há como duvidar da intenção de matar", considerando que a arguida conseguiu neutralizar o normal e "avassalador" sentimento de amor face ao pequeno ser que tinha nas suas mãos, fazendo sobrepor à força do mesmo a força da sua vontade naquele momento, o Tribunal a quo entrou em flagrante contradição com as afirmações desculpabilizadoras do comportamento daquela constantes da fundamentação, quer da matéria de facto, quer da decisão de a condenar pela prática do crime de homicídio simples.
13.ª Com efeito, entende o Ministério Público que o contexto factual apurado é de tal forma expressivo, revelando inequivocamente especial perversidade e especial censurabilidade, patenteando uma atitude particularmente desvaliosa, que justifica a qualificação do homicídio, nos termos do disposto no artigo 132°, n.º 1 e n.º 2, alíneas a), c) e j), do Código Penal.
14.ª Mais entende o Ministério Público que a arguida incorreu também na prática do crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254° do Código Penal, que lhe era imputado, já que os actos que levou a cabo, de envolver o recém-nascido numa toalha, colocá-lo no interior de dois sacos de plástico e levá-lo para o seu quarto, onde esteve cerca de cinquenta dias, um quarto que não partilhava com ninguém, ao qual mais ninguém ia, sendo certo que apenas o cheiro que dele se exalava alertou a sua irmã e permitiu a descoberta do cadáver, já em adiantado estado de putrefacção foram, conforme a própria refere, com o objectivo de não ser descoberta.
15.ªAcresce que a diversidade de bens jurídicos tutelados pelas respectivas normas incriminadoras e o facto de se tratar de acções ilícitas típicas diferenciadas, embora uma subsequente da outra, permite concluir que entre os crimes de homicídio e de profanação (ocultação, neste caso) de cadáver existe uma relação de concurso real e não, de concurso de normas, mormente, de consumpção.
16.ª No que concerne à dosimetria penal encontrada para a punição da arguida, afigura-se-nos que a mesma viola de forma gritante os critérios constantes das disposições legais nesta matéria.
17.ª Com efeito, ponderando a intensidade elevada do dolo, o modo de execução do crime, particularmente chocante, as condições pessoais da arguida - sendo certo que não se poderá considerar que esta tenha pouca instrução ou que a sua condição económica seja muito modesta -, a sua postura distanciada e desculpabilizadora, patenteando urna fraca interiorização do desvalor da sua conduta, julga-se justificada urna pena de prisão não inferior a quinze anos, pela prática do crime de homicídio qualificado e de dez meses, pela prática do crime de profanação de cadáver
18.ª e em cúmulo jurídico, urna pena única de quinze anos e seis meses, assim se assegurando dentro do limite inultrapassável imposto pela culpa, as finalidades retributivas da pena e as exigências de prevenção geral e especial, acautelando-se deste modo, quer as expectativas comunitárias na defesa dos bens jurídico-penais, quer as finalidades dissuasoras e de ressocialização da arguida.
19.ª Mostram-se pois violadas as disposições vertidas nos artigos 40.º, 71.º, n.º 1 e 2, 132.º, n.º 1 e 2, alíneas a), c) e j) e 254.º, todos do Código Penal e no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Face ao exposto, deverá o presente recurso ser considerado procedente e, em consequência, revogar-se o douto acórdão recorrido, o qual deverá ser substituído por outro, que condene a arguida nos termos mencionados, como acto de inteira e sã JUSTIÇA.

3. O Ministério Público junto da 1.ª instância apresentou resposta ao recurso interposto pela arguida, em que concluiu no sentido de que o mesmo não merece provimento.

4. Admitidos os recursos e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de C.P.P.), emitiu o parecer de fls. 761 e segs, no qual sustentou que o recurso interposto pela arguida não merece provimento.

5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do C.P.P., procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II – Fundamentação
1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do C.P.P., que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido
Constitui entendimento constante e pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª ed. 2000, p. 335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, p. 103; entre muitos, os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242; de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência dos recorrentes com a decisão impugnada, as questões a decidir nos recursos são:
Recurso interposto pela arguida: o invocado vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão; a qualificação jurídica dos factos e a medida da pena.
Recurso interposto pelo Ministério Público: a discordância relativamente à decisão sobre a matéria de facto, com invocação dos vícios do erro notório na apreciação da prova e da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão; a subsunção jurídico-penal, sustentando o recorrente que a arguida cometeu um crime de homicídio qualificado p. e p. pelo artigo 132.º, n.º2, alíneas a), c) e j), do Código Penal, em concurso efectivo com um crime de profanação de cadáver p. e p, pelo artigo 254.º do mesmo diploma; a dosimetria da pena.

2. Do acórdão recorrido
2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:
1. No decurso do mês de Julho de 2008 a arguida teve um relacionamento sexual com um indivíduo, casado, cuja identidade não se apurou.
2. No mês seguinte a arguida apercebeu-se de que estava grávida, através de um teste que adquiriu numa farmácia do Montijo.
3. Durante os nove meses de gravidez a arguida nunca consultou qualquer médico da especialidade de obstetrícia ou outra no sentido de acompanhar o desenrolar da gestação, estado que ocultou, vestindo roupas largas.
4. Quando questionada pelas colegas do curso profissional que se encontrava a frequentar se estaria grávida, a arguida sempre respondeu negativamente, inventando encontrar-se com o útero inchado devido a problemas relacionados com a tiróide, ora referindo sofrer de um tumor na zona da barriga, ora alegando ter uma doença que lhe criava bolsas de água naquela zona.
5. Versão que manteve mesmo depois de lhe ter sido oferecida ajuda, no que respeita aos bens de que necessitaria durante a gravidez e após o nascimento da criança, e mesmo depois de uma colega lhe referir que caso fosse possível, gostaria de adoptar o filho da arguida após o seu nascimento.
6. Na semana anterior à Páscoa do ano de 2009 a arguida referiu às suas colegas que no dia seguinte, uma quarta-feira, não iria à escola, em virtude de necessitar deslocar-se a uma consulta médica.
7. De facto, nesse dia foi contactando com a colega M…, informando que estava no médico, em tratamento, e à noite referiu-lhe estar deitada, com algumas dores mas que o tratamento tinha corrido bem e que já não tinha barriga.
8. A arguida N..., na noite de 8 de Abril de 2009, entre as 04h00 e as 05h00 começou a sentir fortes dores nos rins, seguidas de fortes dores na barriga, assim se mantendo até depois do almoço, sempre fechada no seu quarto para que nenhum dos seus familiares se apercebesse.
9. A determinada altura sentiu dores mais fortes, pelo que se dirigiu ao quarto de banho, tendo o trabalho de parto seguido o seu curso normal, com o rebentamento do saco amniótico, tendo ocorrido o parto de um feto de termo, do sexo masculino, com 51 cm de comprimento, que caiu no interior da sanita, local de onde foi retirado pela arguida, após o que cortou o cordão umbilical através de força de tracção produzida pelas mãos.
10. De seguida, e ainda no interior do quarto de banho, a arguida N..., apesar de ter constatado que o recém-nascido estava vivo, fez força com as duas mãos no pescoço do recém-nascido, apertando-o, para que este desfalecesse, o que não conseguiu, já que se encontrava debilitada pelo esforço de parto e também porque o recém-nascido, cada vez que abrandava a força que produzia com as mãos, fazia força no sentido de inspirar.
11. Face a tal situação, a arguida N... puxou para junto de si um "soutien", usando uma das respectivas alças para estrangular o recém-nascido, rodeando o pescoço daquele com tal elástico, após o que deu, pelo menos, um nó cego, firmemente apertado, sempre fazendo força para que o elástico ficasse em pressão, tendo o recém-nascido acabado por desfalecer, assim vindo a ocorrer a sua morte.
12. Após, envolveu o recém-nascido numa toalha, que colocou dentro de um saco de plástico, colocando no seu interior um outro saco com a placenta e outros objectos que se encontravam embebidos em sangue.
13. Levou então o saco que continha o corpo do recém-nascido já sem vida, para o seu quarto, local onde o colocou ao lado de uma cómoda e onde permaneceu até ao dia 27 de Maio de 2009, altura em que foi encontrado pela sua irmã.
14. No dia seguinte aos acontecimentos atrás descritos, 9 de Abril de 2009, a arguida N... compareceu na escola que frequentava.
15. A conduta da arguida N... foi causa directa, adequada, necessária e exclusiva das lesões sofridas pelo recém-nascido, o qual nasceu de termo, apresentando, na data da autópsia, 1,938 Kg de peso e 51 cm de comprimento, sem malformações externas e internas aparentes, causando-lhe um sulco no pescoço, ao nível da laringe, único e completo, horizontal, com 1 cm de largura, com sinal do nó na face lateral esquerda do pescoço.
16. Lesões que lhe vieram a provocar a morte, causada por asfixia por estrangulamento, por acção de natureza contundente no pescoço.
17. A arguida actuou deliberada, livre e conscientemente, com o propósito de tirar a vida ao seu filho.
18. Não obstante saber que o mesmo poderia ter outro destino, quer fosse consigo quer fosse com terceiros, através da adopção.
19. Mais sabia que o recém-nascido, naquelas circunstâncias, estava completamente indefeso, não podendo contar com a ajuda de ninguém para além da mãe, e sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe a morte, como causou.
20. Contudo, tal facto não a coibiu de actuar da forma descrita, porque queria provocar a morte do recém-nascido, sabendo que a sua conduta era proibida por lei mas, nem por isso deixando de a concretizar.
21. A arguida agiu de forma livre, consciente e voluntária, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
22. A arguida não praticou anteriormente qualquer facto pelo qual tenha sido criminalmente punida.
23. Depois de ter abandonado o sistema de ensino aos 18 anos a arguida iniciou um período de 4 anos de experiência laboral. Durante esse período a sua mãe faleceu com um AVC.
24. Com o falecimento da mãe a arguida desorganizou-se emocionalmente, e iniciou uma relação conflituosa com o seu agregado familiar nuclear, que perdurou até à descoberta do corpo do recém-nascido dentro do saco de plástico.
25. Quando suspeitou que a arguida estava grávida o pai ameaçou-a que ou ela resolvia o problema ou punha-a fora de casa.
26. Durante a gravidez a arguida, por medo e por vergonha do impacto da sua situação junto da família e amigos, adoptou um mecanismo intelectual segundo o qual negava a si própria que estava grávida.
27. Durante a pendência deste processo a arguida engravidou e teve uma filha.
28. Manifesta grande felicidade por esta maternidade, tendo agora apoio da família.
2.2. Quanto a factos não provados ficou consignado no acórdão recorrido (transcrição):
«FACTOS NÃO PROVADOS: com interesse para a decisão, resultaram não provados os seguintes factos:
1. Durante a gravidez, em momento não concretamente apurado a arguida decidiu livrar-se da criança, matando-a após o seu nascimento.
2. Ao esconder o cadáver da forma atrás descrita, a arguida pretendia posteriormente desfazer-se dele, fazendo-o desaparecer e não mais ser encontrado, o que bem sabia não estava autorizada a fazer.»

2.3. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

FUNDAMENTAÇÃO DA DECISÃO SOBRE MATÉRIA DE FACTO:
A convicção do Tribunal formou-se com base no conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, que foi homogénea.
Assim, sobre a materialidade dos comportamentos descritos na acusação a arguida confessou-os integralmente. Ela apenas negou que desde que descobriu que estava grávida tivesse logo formulado o desígnio de tirar a vida ao filho.
O Tribunal ficou convencido que a arguida falou verdade em audiência, quer na confissão que fez, quer ao negar a premeditação. E quando perguntada sobre o porquê do acto que cometeu, não foi capaz de dar uma resposta cabal. Refere que teve medo, e vergonha. Mas depois não consegue explicar como conseguiu fazer o que fez.
Confirmou que viveu toda esta situação sozinha, sem contar nada a ninguém. Quando lhe foi perguntado porque não se livrou do saco contendo o cadáver do seu filho, visto que teve todo o tempo do mundo para o fazer, igualmente não conseguiu dar uma resposta.
As testemunhas ouvidas confirmaram o circunstancialismo que rodeou a arguida neste período. Nomeadamente, as colegas confirmaram que ela sempre tentou esconder a gravidez, embora elas tivessem quase a certeza que era essa a explicação para o seu estado. A testemunha L… confirmou que não podia ter filhos e que por estar convencida que a arguida estava grávida, disse na presença dela, sem se dirigir a ela directamente mas com o objectivo de ser ouvida por ela, que estava disposta a adoptar uma criança. Confirmou que a arguida ouviu mas não teve qualquer reacção nem nunca lhe disse nada.
Sobre o estado de espírito da arguida o Tribunal baseou-se nas declarações da mesma, mas sobretudo no relatório psiquiátrico junto a fls. 586 e seguintes, e no depoimento do Psiquiatra Dr. P…, que acompanhou a arguida durante o período em que ela esteve internada na instituição que dirige (Casa de Saúde de …).
A alegação constante da acusação segundo a qual a arguida tinha muito antes do nascimento já formulado o desígnio de tirar a vida ao seu filho cai totalmente pela base, bastando para o efeito observar os factos com alguma profundidade. Assim, a arguida soube bem cedo que estava grávida. Poderia ter recorrido a qualquer um método abortivo, quer legal, quer clandestino. Porém, não o fez.
Só no momento do nascimento é que ela agiu como ficou descrito, aí sim, com intenção de tirar a vida ao recém-nascido. E porém - e aqui é que está o pormenor quanto a nós significativo -, depois de ter guardado o corpo num saco de plástico, teve todo o tempo do mundo para o esconder, deitando-o em qualquer sítio onde dificilmente fosse encontrado, mas em vez disso não o fez. O que ela fez, e que pode parecer absurdo a posteriori, foi deixar o corpo do seu filho dentro do saco de plástico, no chão do quarto onde dorme. E aí ficou, à vista de qualquer pessoa que entrasse, durante cerca de 50 dias, até que a irmã da arguida entrou no quarto desta, e, atraída pelo cheiro de putrefacção, encontrou o cadáver.
Este facto, mais do que qualquer depoimento ou parecer, é uma janela para a mente da arguida. Mostra-nos que a sua atitude após o nascimento e após a consumação do facto voltou a obedecer aos mesmos padrões da fase anterior. Ou seja, denegação. Durante a gravidez a arguida comportou-se perante terceiros e perante ela própria como se não estivesse grávida. No momento do parto, por razões óbvias tal não foi possível, e ela foi confrontada com a esmagadora realidade do seu filho, vivo, nas suas mãos. Resolveu esse seu "problema", da forma que já vimos. E a partir daí, voltou a seguir a sua rotina diária normal, como se nada se tivesse passado, e com o saco de plástico contendo o cadáver do bebé, a cheirar mal, no chão do seu quarto, ao lado da cómoda.
Está este Tribunal, por isso, inteiramente de acordo com o que se escreve no relatório psiquiátrico, do qual nos permitimos retirar as passagens mais importantes: "a notícia da gravidez constituiu para a N... um choque emocional que funcionou como um factor de stress, uma vez que ela não queria nem se sentia preparada para engravidar, para além de ter ficado com muito medo das reacções do pai, nomeadamente que este a abandonasse, ainda que reconhecesse que aquele medo era excessivo e irracional. A reacção e o comportamento subsequentes (esconder a gravidez e agir como se não estivesse grávida) foram determinados pela actuação dum mecanismo de defesa que entra em acção perante factores de stress que são vivenciados com excessiva intensidade, como acontece quando algumas pessoas recebem a notícia duma doença grave ou da morte de alguém querido. Trata-se de um mecanismo designado por denegação. A denegação é portanto um mecanismo de defesa do Ego (que, por definição é inconsciente) que consiste na negação ou recusa em aceitar a existência de aspectos da realidade. Não é, bem entendido, uma decisão consciente que está em causa mas uma forma de pensar, sentir e agir como se aqueles aspectos de todo não existissem. Ao observarmos uma pessoa que esteja a usar esse mecanismo temos a sensação que está a mentir ou a fingir pois vemo-la negar o óbvio, mas do seu ponto de vista esses aspectos não existem mesmo".
E mais adiante escreve-se: "a N... não apresentava actividade psicótica produtiva, isto é, não estava dominada por ideias delirantes nem por alucinações, nomeadamente por vozes que lhe ordenassem que teria de matar o bebé. É também seguro afirmar que não o fez como expressão duma motivação psicopática, pelo prazer em si ou para conseguir quaisquer benefícios que daí pudessem resultar. Mas também é verdade que durante esse período o seu estado mental não tinha como base uma completude do estado da consciência". Usa-se aqui uma comparação com o que sucede quando "estamos a conduzir um veículo e a dada altura damos por nós a perceber que estivemos a conduzir durante um certo trajecto sem ter tido consciência disso. Durante essa parte do trajecto estivemos conscientes mas conduzindo automaticamente, sem actividade reflexiva. Era este, na minha opinião, o estado de consciência da N... quando tirou a vida ao bebé. Fê-lo num estado de consciência mas sem reflexibilidade sobre o mesmo. Ela estava consciente mas a sua capacidade reflexiva sobre o próprio estado de consciência estava comprometida".
Não há pois dúvidas sobre a imputabilidade da arguida, quer com base no que se escreve no relatório psiquiátrico, quer no que resultou da audiência de julgamento; e da postura da própria.
Também estão excluídas, igualmente com base no depoimento do Psiquiatra P..., certas patologias que causam alucinações e embotamento dos sentimentos, como as doenças do espectro da esquizofrenia e do autismo.
Logo, não há como duvidar da intenção de matar. A intensidade dessa resolução pode ser mais fácil mente compreendida se pensarmos que numa situação "normal", uma mulher que acabou de dar à luz um filho e que o tem a chorar nas suas mãos, não pode deixar de ser, por todos os mecanismos genéticos ou pré-programados pela natureza, dominada por um sentimento de amor avassalador pelo pequeno ser que tem nas mãos. A arguida conseguiu neutralizar esse sentimento e fazer sobrepor à força do mesmo a força da sua vontade naquele momento.
No mais, tiveram-se em conta todos os depoimentos prestados e a prova documental e pericial junta aos autos.

3. Apreciando
Passamos, agora, a apreciar as questões colocadas nos recursos, seguindo uma ordem de precedência lógica que atende ao efeito do conhecimento de umas em relação às outras.
Começaremos pela sindicância da decisão sobre a matéria de facto

3.1. Dispõe o artigo 428.º, n.º 1, do C.P.P., que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito. Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º3 e 431.º do C.P.P., ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
Resulta da análise das motivações que, quer a arguida, quer o Ministério Público junto da 1.ª instância, discordam da matéria de facto dada como provada e não provada.
É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada por duas vias: no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., no que se convencionou chamar de “revista alargada”; ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, n.º3, 4 e 6, do mesmo diploma.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento.
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do C.P. Penal.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados. Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa (sobre estas questões, os Acordãos do S.T.J., de 14 de Março de 2007, Processo 07P21, de 23 de Maio de 2007, Processo 07P1498, de 3 de Julho de 2008, Processo 08P1312, a consultar em www. dgsi.pt).
Precisamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P. Penal:

«3. Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»

A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
Finalmente, a especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1.ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P. e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º do C.P.P.).
Relativamente às duas últimas especificações recai ainda sobre o recorrente uma outra exigência: havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 4 e 6 do artigo 412.º do C.P.P.). É nesta exigência que se justifica, materialmente, o alargamento do prazo de recurso de 20 para 30 dias, nos termos do artigo 411.º, n.º4.
Para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente de especificar quais os pontos de facto que entende terem sido incorrectamente julgados, quais os segmentos dos depoimentos que impõem decisão diversa da recorrida e quais os suportes técnicos em que eles se encontram, com referência às concretas passagens gravadas.
Como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008 (Processo:07P4375, www.dgsi.pt), a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- a que decorre da necessidade de observância pelo recorrente do mencionado ónus de especificação, pelo que a reapreciação é restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, sendo necessário que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso;
- a que tem a ver com o facto de ao tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só ser possível alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º – também neste sentido o Ac. da Relação de Lisboa, de 10.10.2007, proc. 8428/2007-3, disponível para consulta em www.dgsi.pt].

Explicitado o entendimento sobre o sentido e alcance da impugnação da matéria de facto, na vertente da impugnação ampla e da chamada “revista alargada”, passamos a apreciar cada um dos recursos, na parte em que respeitam à decisão sobre a matéria de facto, começando pelo recurso interposto pelo Ministério Público.

3.2. Recurso do Ministério Público (decisão de facto)

3.2.1. Constata-se que o Ministério Público, ao enunciar os fundamentos do seu recurso, logo indica que a decisão recorrida enferma dos vícios da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova.
Estabelece o art. 410.º, n.º 2 do C.P.P. que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
Trata-se de vícios da decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, de conhecimento oficioso, que hão-de derivar do texto da decisão recorrida por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2ª ed., p. 339; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121).
Explicitando: trata-se de vícios decisórios que têm a ver com a perfeição formal da decisão da matéria de facto e cuja verificação há-de necessariamente, como resulta claramente do preceito, ser evidenciada pelo próprio texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo, sendo os referidos vícios intrínsecos à decisão como peça autónoma.
Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos …, 6.ª ed., 2007, p. 69; Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, processo 346/08.0ECLSB.L1-3, em http://www.dgsi.pt).
Como já se assinalou, não se deve confundir este vício decisório com a errada subsunção dos factos (devida e totalmente apurados) ao direito, o que consubstancia um caso de erro de julgamento.
Nem, por outro lado, tal vício se reconduz à discordância sobre a factualidade que o tribunal, apreciando a prova com base nas “regras da experiência” e a sua “livre convicção”, nos termos do artigo 127.º do C.P.P., entendeu dar como provada. A insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão que pertence ao âmbito do princípio de livre apreciação da prova, não é sindicável caso não seja suscitada a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto.
Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada – e assim é porque, como já se disse, todos os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., reportam-se à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., pp. 71 a 73).
Finalmente, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do Acórdão do S.T.J. de 30 de Janeiro de 2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cfr. Simas Santos e Leal-Henriques, ob. cit., p. 74; Acórdão da R. do Porto de 12/11/2003, Processo 0342994, em http://www.dgsi.pt).
Pois bem: o recorrente, ao insurgir-se contra a decisão sobre a matéria de facto com base nos vícios decisórios previstos no n.º2 do artigo 410.º do C.P.P., deveria basear-se, exclusivamente, no teor do próprio acórdão recorrido, que teria de, por si, evidenciar esses vícios.
Ora, aqui e ali, o recorrente foi, claramente, além do seu anunciado propósito, pois não deixou de remeter para a prova produzida, designadamente com referência à gravação de declarações e depoimentos, o que permite inferir que, para além da invocação dos mencionados vícios decisórios – mais concretamente, no que agora importa, o vício do erro notório na apreciação da prova -, o recorrente pretende, afinal, suscitar a reapreciação ampla da prova, cuidando, inclusivamente, de cumprir os já supra referidos ónus de especificação previstos no artigo 412.º, n.º3 e 4, do C.P.P.
Do que se conclui que o recorrente incorre num equívoco, ao misturar vícios decisórios com a impugnação ampla da decisão sobre a matéria de facto, o que, porém, não deve, a nosso ver, constituir obstáculo a que, na análise da substância do recurso, se reaprecie a prova nos precisos limites propostos, apesar da sua equivocada configuração sob a aparência do vício decisório do erro notório.

3.2.2. O recorrente considera serem pontos de facto incorrectamente julgados os pontos 26 e 28 dos factos provados e 1 e 2 dos factos não provados.
Dizem os pontos 26 e 28:
«26. Durante a gravidez a arguida, por medo e por vergonha do impacto da sua situação junto da família e amigos, adoptou um mecanismo intelectual segundo o qual negava a si própria que estava grávida.
28. Manifesta grande felicidade por esta maternidade, tendo agora apoio da família.»
Para melhor compreender o ponto 28, importa lembrar que o ponto de facto que o antecede diz:
«27. Durante a pendência deste processo a arguida engravidou e teve uma filha.»
Por sua vez, os pontos 1 e 2 dos factos não provados têm o seguinte teor:
«1. Durante a gravidez, em momento não concretamente apurado a arguida decidiu livrar-se da criança, matando-a após o seu nascimento.
2. Ao esconder o cadáver da forma atrás descrita, a arguida pretendia posteriormente desfazer-se dele, fazendo-o desaparecer e não mais ser encontrado, o que bem sabia não estava autorizada a fazer.»
No plano de uma reapreciação ampla da prova, invoca o recorrente as declarações da arguida e os depoimentos das testemunhas M…, D… e L….
Colocada a impugnação nesse plano, importa frisar, uma vez mais, que a ausência de imediação determina que o tribunal de 2.ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1.ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem [al. b) do n.º3 do citado artigo 412.º].
Como se diz no Acórdão da Relação de Évora, de 1 de Abril do corrente ano (processo n.º 360/08-1.ª, www.dgsi.pt): «Impor decisão diversa da recorrida não significa admitir uma decisão diversa da recorrida. Tem um alcance muito mais exigente, muito mais impositivo, no sentido de que não basta contrapor à convicção do julgador uma outra convicção diferente, ainda que também possível, para provocar uma modificação na decisão de facto. É necessário que o recorrente desenvolva um quadro argumentativo que demonstre, através da análise das provas por si especificadas, que a convicção formada pelo julgador, relativamente aos pontos de facto impugnados, é impossível ou desprovida de razoabilidade. É inequivocamente este o sentido da referida expressão, que consubstancia um ónus imposto ao recorrente.»
Em sede de apreciação da prova rege o princípio da livre apreciação, expressamente consagrado no artigo 127.º do C.P.P.
Este princípio impõe que a apreciação da prova se faça segundo as regras da experiência comum e em obediência à lógica.
O tribunal recorrido, no cumprimento das exigências legais de fundamentação, procedeu à exposição dos motivos de facto e de direito, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (artigo 374.º, n.º2, do C.P.P.), esforçando-se no sentido de explicitar, de forma tão completa quanto lhe foi possível, as razões da sua convicção.
Será que, por via da prova pessoal gravada, conjugada com a prova documental e pericial, é de concluir que o tribunal apreciou arbitrariamente a prova produzida, ou que incorreu em qualquer erro lógico, com desrespeito das regras da experiência, impondo-se decisão diversa?
Para o Ministério Público / recorrente, a circunstância de a arguida nunca se ter deslocado a uma consulta da especialidade, ter sempre ocultado a gravidez, ter dito às colegas, na véspera dos acontecimentos, que não iria à escola, só permite a conclusão de que a mesma formulou, desde o primeiro momento em que soube estar grávida, ou pelo menos na véspera do parto, o propósito de tirar a vida ao recém-nascido.
Face às declarações gravadas, confirma-se que a arguida sabia estar grávida, mas que, no decurso da gravidez, sempre procurou ocultar o seu estado, nunca se deslocou a qualquer consulta médica da especialidade, nunca adquiriu qualquer peça de enxoval ou fez qualquer diligência para eventual adopção da criança.
Diga-se, desde já, que a circunstância de a arguida ter procurado manter em segredo a sua gravidez, usando roupas largas para, deste modo, esconder o volume do seu ventre que, natural e progressivamente, ia aumentando, não tendo recorrido a quaisquer serviços médicos no decurso da gravidez e respondendo sempre negativamente quando colegas do seu curso profissional a questionavam sobre se estaria ou não grávida, não impõe, forçosamente, que se tenha de concluir que, desde o primeiro momento, ou pelo menos de véspera, havia formulado o propósito de tirar a vida ao recém-nascido.
Trata-se, aliás, de um circunstancialismo que é recorrente em situações similares de ocultação de gravidez, por temor, vergonha ou qualquer outra razão.
Disse, além do mais, o tribunal recorrido, em sede de motivação da decisão de facto:
«O Tribunal ficou convencido que a arguida falou verdade em audiência, quer na confissão que fez, quer ao negar a premeditação. E quando perguntada sobre o porquê do acto que cometeu, não foi capaz de dar uma resposta cabal. Refere que teve medo, e vergonha. Mas depois não consegue explicar como conseguiu fazer o que fez.
Confirmou que viveu toda esta situação sozinha, sem contar nada a ninguém. Quando lhe foi perguntado porque não se livrou do saco contendo o cadáver do seu filho, visto que teve todo o tempo do mundo para o fazer, igualmente não conseguiu dar uma resposta.
As testemunhas ouvidas confirmaram o circunstancialismo que rodeou a arguida neste período. Nomeadamente, as colegas confirmaram que ela sempre tentou esconder a gravidez, embora elas tivessem quase a certeza que era essa a explicação para o seu estado. A testemunha L… confirmou que não podia ter filhos e que por estar convencida que a arguida estava grávida, disse na presença dela, sem se dirigir a ela directamente mas com o objectivo de ser ouvida por ela, que estava disposta a adoptar uma criança. Confirmou que a arguida ouviu mas não teve qualquer reacção nem nunca lhe disse nada.»

E acrescentou:

«Sobre o estado de espírito da arguida o Tribunal baseou-se nas declarações da mesma, mas sobretudo no relatório psiquiátrico junto a fls. 586 e seguintes, e no depoimento do Psiquiatra Dr. P..., que acompanhou a arguida durante o período em que ela esteve internada na instituição que dirige (Casa de Saúde de ...).
A alegação constante da acusação segundo a qual a arguida tinha muito antes do nascimento já formulado o desígnio de tirar a vida ao seu filho cai totalmente pela base, bastando para o efeito observar os factos com alguma profundidade. Assim, a arguida soube bem cedo que estava grávida. Poderia ter recorrido a qualquer um método abortivo, quer legal, quer clandestino. Porém, não o fez.
Só no momento do nascimento é que ela agiu como ficou descrito, aí sim, com intenção de tirar a vida ao recém-nascido. E porém - e aqui é que está o pormenor quanto a nós significativo -, depois de ter guardado o corpo num saco de plástico, teve todo o tempo do mundo para o esconder, deitando-o em qualquer sítio onde dificilmente fosse encontrado, mas em vez disso não o fez. O que ela fez, e que pode parecer absurdo a posteriori, foi deixar o corpo do seu filho dentro do saco de plástico, no chão do quarto onde dorme. E aí ficou, à vista de qualquer pessoa que entrasse, durante cerca de 50 dias, até que a irmã da arguida entrou no quarto desta, e, atraída pelo cheiro de putrefacção, encontrou o cadáver.
Este facto, mais do que qualquer depoimento ou parecer, é uma janela para a mente da arguida. Mostra-nos que a sua atitude após o nascimento e após a consumação do facto voltou a obedecer aos mesmos padrões da fase anterior. Ou seja, denegação. Durante a gravidez a arguida comportou-se perante terceiros e perante ela própria como se não estivesse grávida. No momento do parto, por razões óbvias tal não foi possível, e ela foi confrontada com a esmagadora realidade do seu filho, vivo, nas suas mãos. Resolveu esse seu "problema", da forma que já vimos. E a partir daí, voltou a seguir a sua rotina diária normal, como se nada se tivesse passado, e com o saco de plástico contendo o cadáver do bebé, a cheirar mal, no chão do seu quarto, ao lado da cómoda.»


Diz o recorrente que o tribunal, ao dizer que a arguida teria adoptado um mecanismo intelectual segundo o qual negava a si própria que estava grávida, mais não fez do que branquear o comportamento da mesma.
Porém, não se trata, como é óbvio, de branquear qualquer conduta, mas antes de procurar entender – que não é sinónimo de «justificar» – os mecanismos que lhe estão subjacentes.
Para esse efeito, o tribunal teve em consideração as declarações prestadas pela arguida e os depoimentos das testemunhas, coincidentes no sentido de que a arguida procurou, até ao fim, ocultar a gravidez, negando as evidências e comportando-se como se não estivesse grávida.
Lê-se, a dado passo, no relatório de exame médico-legal psiquiátrico junto aos autos:
«A notícia da gravidez constituiu para a N... um choque emocional que funcionou como um factor de stress, uma vez que ela não queria nem se sentia preparada para engravidar, para além de ter ficado com muito medo da reacção do pai, nomeadamente que este a abandonasse, ainda que reconhecesse que aquele medo era excessivo e irracional.
A reacção e o comportamento subsequentes (esconder a gravidez e agir corno se não estivesse grávida) foram determinados pela actuação dum mecanismo de defesa que entra em acção perante factores de stress que são vivenciados com excessiva intensidade, como acontece quando algumas pessoas recebem a notícia duma doença grave ou da morte de alguém querido. Trata-se de um mecanismo designado por denegação. A denegação é, portanto, um mecanismo de defesa do Ego (que, por definição é inconsciente) que consiste na negação ou recusa em aceitar a existência de aspectos da realidade. Não é, bem entendido, uma decisão consciente que está em causa mas uma forma de pensar, sentir e agir como se àqueles aspectos de todo não existissem.
Ao observarmos uma pessoa que esteja a usar este mecanismo temos a sensação que está a mentir ou a fingir pois vemo-la negar o óbvio, mas do seu ponto de vista esses aspectos não existem mesmo.
São muito variadas as situações em que esse mecanismo acontece. Vemo-lo por exemplo em casos em que a pessoa está gravemente doente e, no entanto, contra todas as evidências, está profundamente convicta de que goza de plena saúde (pode admitir, quando muito, que é uma indisposição passageira), recusando, por via disso, fazer qualquer tratamento.
É o que acontece também quando, em famílias em que o pai abusa da filha e em que a mãe, mesmo perante pistas e sinais óbvios, não percebe o que está a acontecer (nos casos em que a mãe percebe mas finge que não percebe. o que está em causa é uma atitude de fingimento e não o mecanismo de denegação).
Também em certos casos de luto patológico pela morte de um filho, por exemplo, os pais continuam agindo como se o filho fosse um dia voltar, assegurando todas as condições necessárias para o efeito.
Embora o estado de gravidez fosse evidente para as outras pessoas, a N... agia como se não estivesse grávida. Podemos admitir então que ela, "no fundo, sabia" que estava grávida. Mas "no fundo" quer dizer que ela sabia ou que não sabia?
Para o esclarecer, penso ser mais rigoroso afirmar (de acordo com o modelo psicanalítico) que o conhecimento que ela tinha não era plenamente consciente mas antes "pré-consciente". Os conteúdos mentais pré-conscientes são aqueles que, embora não estando presentes claramente no campo da consciência, poderão ser acessíveis ao mesmo. Isto toma-se possível quando a censura entre o consciente e o pré-consciente é atenuada ou afrouxada como acontece quando se faz um esforço de concentração para trazer o conteúdo em causa à consciência ou por um estado de cansaço, ou pela acção do álcool, ou ainda entre o estado de vigília e o sono.
Levando em conta este modelo, podemos afirmar que o mecanismo de denegação impede que certos conteúdos mentais se tomem conscientes.
Na minha opinião este mecanismo esteve actuante ao longo de toda a gravidez.
E quando o bebé nasceu, a gravidez como facto real e concreto impôs-se-lhe e sobrepôs-se à denegação, confrontando-a com a realidade nua e crua, sem barreiras. Foi a isso que ela se referiu quando disse: "só quando o bebé nasceu é que me apercebi do que se estava a passar".»

Trata-se de um relatório pericial, que o tribunal recorrido não podia deixar de valorar, em ordem a estribar a sua convicção, o que fez em conjugação com os demais elementos de prova.
Não está em causa, pois, que a arguida não soubesse estar grávida; o que se afirma é que a arguida, por um mecanismo psicológico de defesa contra algo que era percepcionado como doloroso – a gravidez e suas consequências -, negava, aos outros e a si própria, a realidade dos factos, o que se traduzia no adiamento, até ao limite do possível, do confronto inevitável com essa mesma realidade.
Não vislumbramos que haja, aqui, qualquer juízo destituído de razoabilidade e que contrarie os ditames da experiência comum, para mais estribado num relatório de exame médico-legal psiquiátrico
Invocam-se no recurso os depoimentos das testemunhas M…, D… e L… para contrariar a afirmação, efectuada pela arguida, de que ninguém lhe oferecera ajuda.
Uma vez ouvida a gravação, há que contextualizar declarações e depoimentos.
Em primeiro lugar, a motivação da decisão de facto é clara no sentido de que «as colegas confirmaram que ela sempre tentou esconder a gravidez, embora elas tivessem quase a certeza que era essa a explicação para o seu estado.» Quer isto dizer que, apesar da atitude de denegação permanente da arguida, as suas colegas desconfiavam do seu estado, estando quase certas de que ela estaria grávida.
A testemunha L… confirmou que não podia ter filhos e que por estar convencida de que a arguida estava grávida, disse na presença dela, sem se lhe dirigir directamente, mas com o objectivo de ser ouvida, que estava disposta a adoptar uma criança. Confirmou esta testemunha que a arguida não teve qualquer reacção, nem nunca lhe disse nada.
As testemunhas M… e D…, colegas da arguida no curso de formação profissional que esta frequentava, corroboraram que se comentava entre as colegas que ela estaria grávida e que, quando confrontada, a arguida negava tal facto. A testemunha M… disse que seria a única que acreditava na palavra da arguida, e bem assim ter ouvido comentar que a colega L… teria dito estar disposta a ficar com o bebé. Por sua vez, a testemunha D… relatou que se comentava a situação e que chegou a confrontar directamente a arguida, perguntando-lhe se estava grávida e que se estivesse não havia problema, que a poderia ajudar com roupa de bebé – a testemunha tinha sido mãe há pouco tempo -, mas a arguida continuou sempre a negar a gravidez, dizendo que tinha dois miomas e que estava em tratamento.
Pois bem: esta atitude da arguida não contraria, a nosso ver, o juízo que o tribunal a quo formulou sobre a existência de um mecanismo intelectual segundo o qual a arguida negava a si própria que estava grávida, mesmo que, a posteriori, entre o mais que declarou em audiência, no esforço para se explicar, tenha referido, a dado passo, que ninguém a ajudara. A verdade é que a arguida também disse que negou sempre a gravidez, que não queria que ninguém soubesse, que negava o seu estado a si própria, que não disse a ninguém estar grávida.
O tribunal recorrido não deixou de integrar, entre os factos provados, que quando questionada pelas colegas do curso profissional que se encontrava a frequentar sobre se estaria grávida, «a arguida sempre respondeu negativamente, inventando encontrar-se com o útero inchado devido a problemas relacionados com a tiróide, ora referindo sofrer de um tumor na zona da barriga, ora alegando ter uma doença que lhe criava bolsas de água naquela zona» e que manteve essa versão «mesmo depois de lhe ter sido oferecida ajuda, no que respeita aos bens de que necessitaria durante a gravidez e após o nascimento da criança, e mesmo depois de uma colega lhe referir que caso fosse possível, gostaria de adoptar o filho da arguida após o seu nascimento.»
Ou seja: a rejeição das iniciativas das colegas, que o recorrente diz terem sido «desdenhosamente» recusadas pela arguida, ajusta-se ao referido mecanismo psicológico de defesa de «denegação».
Mecanismo que nada tem a ver com a existência de dificuldades ou limitações ao nível cognitivo, ou seja, com qualquer défice de inteligência que tenha sido detectado.
Durante a pendência deste processo a arguida engravidou e teve uma filha, dizendo-se no acórdão recorrido, no ponto de facto 28, que «manifesta grande felicidade por esta maternidade, tendo agora apoio da família.» Que nem sempre foi assim, é o que se infere do relatório médico-legal psiquiátrico, onde se menciona a «vivência saudável e adequada da nova gravidez», logo se assinalando «que a partir de certa altura deixou de ser condicionada por factores de stress em virtude do pai ter tido conhecimento e ter compreendido a situação». A circunstância de a criança ter sido entregue ao pai, quando é certo que a arguida, na pendência dos presentes autos, se mantinha internada na Casa de Saúde do …, não determina que o referido ponto de facto 28 tivesse que ser decidido de forma diversa e que o tribunal, no quadro da sua livre apreciação, não pudesse atender às declarações da arguida nesse sentido.

3.2.3.Quanto ao destino do corpo, sabe-se que a arguida envolveu o recém-nascido numa toalha, que colocou dentro de um saco de plástico, colocando no seu interior um outro saco com a placenta e outros objectos que se encontravam embebidos em sangue, levando o saco para o seu quarto, onde o colocou ao lado de uma cómoda e onde permaneceu até ao dia 27 de Maio de 2009, altura em que foi encontrado pela sua irmã.
A arguida, que disse não saber explicar a sua conduta, nem o que pensou quando viu o recém-nascido nas suas mãos, declarou que não sabia a razão por que não se tinha desfeito do saco com os despojos, dizendo, também, que não sabia o que fazer, que tinha medo que «eles depois descobrissem» e que «por isso deixei-o sempre ficar no quarto», pensando que «se ele ficasse ali nunca se ia descobrir».
Vivendo a arguida com o pai e os irmãos, mesmo aceitando-se que, tal como declarou, o quarto em causa fosse apenas utilizado por si, não deixa de causar grande estranheza que, durante cerca de 50 dias, a arguida convivesse no seu quarto de dormir com a presença de um saco de plástico, no chão, ao lado da cómoda, contendo os restos do seu filho, sem que tenha feito qualquer diligência, como seria de supor, para se desfazer desse saco, havendo o perigo da sua presença ser denunciada pelo cheiro da putrefacção.
Porém, também não é logicamente congruente a afirmação de que não se provou que a arguida, ao esconder o cadáver da forma atrás descrita, «pretendia posteriormente desfazer-se dele, fazendo-o desaparecer e não mais ser encontrado (…)», com a circunstância, também provada, de a mesma ter envolvido o recém-nascido numa toalha, que colocou dentro de um saco de plástico, colocando no seu interior um outro saco com a placenta e outros objectos que se encontravam embebidos em sangue, saco esse que levou para o seu quarto e colocou ao lado de uma cómoda, onde ficou cerca de 50 dias, até ser encontrado.
Ainda que se veja nessa conduta uma extensão, posteriormente à morte do recém-nascido, do estado de denegação que se mencionou anteriormente, que para a decisão recorrida não obstou à voluntariedade dos factos, tal conduta traduzir-se-á, no mínimo, num escondimento do cadáver, que algum destino haveria de ter posteriormente, o que não poderia escapar à arguida, se era sua vontade – como se inculca que era - que efectivamente não se descobrisse o que havia feito.
Diz-se na motivação da decisão de facto que o saco contendo o cadáver ficou no quarto da arguida, à vista de qualquer pessoa que entrasse, mas ocorre perguntar quem seria de esperar que lá entrasse, para além da arguida. Tendo em vista que também consta da matéria de facto que a arguida mantinha uma relação conflituosa com o seu agregado familiar nuclear, resta saber se a arguida tinha razões para confiar que ninguém da casa teria acesso a esse quarto, se o mesmo estava de alguma forma separado da restante casa, se era mantido ou não permanentemente fechado à chave, quem mais tinha acesso a esse espaço para além da própria e em que condições concretas a irmã da arguida logrou lhe aceder. Só assim poderemos inferir, com segurança, que intencionalidade presidiu à conduta da arguida.
Por conseguinte, quanto a este ponto concreto – traduzido no ponto 2 dos factos não provados -, afigura-se-nos haver erro notório.
Quanto ao mais: por um lado, do ponto de vista das provas concretamente indicadas, não se identificam razões que impusessem uma decisão de facto, quanto aos pontos sindicados 26 e 28 dos factos provados e 1 dos não provados, diversa da que foi tomada pelo tribunal recorrido; por outro, do ponto de vista dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do C.P.P., mais concretamente do erro notório na apreciação da prova, não se vislumbra, em relação aos ditos pontos de facto, a evidência de uma decisão com violação das regras da experiência ou de uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, ou a violação das regras sobre prova vinculada.

3.2.4. No plano do vício decisório da contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão [artigo 410.º, n.º2, alínea b)], invoca o Ministério Público/recorrente a existência de contradição entre alguns pontos de facto provados e a motivação da decisão de facto constante do acórdão.
Não se trata, nesta sede, de respigar frases, descontextualizadas, para identificar contradições, até porque o vício em causa tem de se traduzir numa contradição «insanável».
Não há contradição insanável ao afirmar-se que a arguida disse que «viveu toda esta situação sozinha, sem contar nada a ninguém» e dizer-se, nos factos provados, que a arguida foi questionada pelas colegas do curso profissional que se encontrava a frequentar se estaria grávida, ao que sempre respondeu negativamente. É evidente que a primeira afirmação, reportando-se às declarações da arguida, quer significar que esta não partilhou com ninguém o seu estado de gravidez e, nesse sentido, viveu a situação solitariamente, sem a partilhar, sem a confiar a alguém, mesmos a essas colegas que a chegaram a interpelar e perante as quais manteve a atitude de denegação.
Quanto à alegação de que existe contradição entre o teor do relatório médico-legal e a alegada aceitação da «teoria de que a morte do recém-nascido não lhe traria benefícios», não se percebe o que pretende dizer o recorrente, já que na fundamentação da decisão de facto nada se diz a esse respeito.
Por outro lado, é certo que a sentença recorrida refere não existirem dúvidas sobre a imputabilidade da arguida, «quer com base no que se escreve no relatório psiquiátrico, quer no que resultou da audiência de julgamento; e da postura da própria», estando «excluídas, igualmente com base no depoimento do Psiquiatra P…, certas patologias que causam alucinações e embotamento dos sentimentos, como as doenças do espectro da esquizofrenia e do autismo.»
Isto não significa, porém, que a arguida não estivesse num «estado de consciência comprometida», na expressão retirada do relatório médico-legal, que mitigando a culpa, não a excluísse.
Não tem razão, por conseguinte, o recorrente, ainda que, neste ponto, como se verá mais adiante, a questão dos vícios decisórios deva ser retomada, ainda que com outra configuração.
Em suma: no plano da factualidade, ressalvado o que se disse quanto ao ponto 2 dos factos não provados, não tem razão o recurso interposto pelo Ministério Público.

3.3. Recurso da arguida (decisão de facto)

3.3.1. A 1.ª instância condenou a arguida como autora do crime de homicídio simples, previsto e punido no artigo 131.º do Código Penal.
A arguida tinha sido acusada pela autoria material de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 131.º e 132.º, n.º2, alíneas a) c) e j), e de um crime de profanação de cadáver, previsto e punido pelo artigo 254.º, todos do Código Penal.
Na fundamentação da subsunção jurídico-penal, o tribunal recorrido omite qualquer menção ao crime de infanticídio p. e p. pelo artigo 136.º do Código Penal, muito embora decorra da matéria de facto a verificação de um dos elementos desse tipo legal de crime, que se consubstancia na acção típica de matar ter ocorrido logo após o parto.
Tendo em vista que a discussão da causa «tem por objecto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia» (artigo 339.º, n.º4, do C.P.P.), seria de esperar que o tribunal recorrido tivesse equacionado, ainda que fosse para a afastar, a pertinência do tipo legal de crime de infanticídio.
Tanto mais que a arguida, na sua contestação, colocou essa questão, ainda que de forma tecnicamente pouco apurada, ao dizer que a morte ocorreu «logo após o parto», que «entrou em pânico», que «verificou-se uma reacção aguda de pânico face a uma situação que lhe era intolerável», que «o impulso foi a morte do bebé», o que melhor se esclarece quando a mesma arguida, juntamente com a contestação, requereu a realização de um exame pericial psiquiátrico, indicando, entre os quesitos propostos, dois claramente referentes à questão do infanticídio, ou seja, sobre se a acção de matar teria ocorrido sob a influência perturbadora do parto (fls. 419 a 427).
Por outras palavras: a arguida, ainda que com alguma imperfeição técnica, invocou, em sua defesa, ter agido em estado de perturbação sob a influência do parto que acabara de ocorrer, o que impunha que o tribunal, em sede de indagação factual, de fixação da factualidade provada e não provada e de discussão jurídica da causa, apreciasse tal matéria que havia sido alegada.
O tribunal começou por indeferir a perícia, por entender que as questões em causa só podiam ser aferidas em audiência de julgamento através das declarações da arguida e da prova testemunhal, o que causa estranheza, pois se assim era quanto a alguns dos quesitos propostos, não o seria quanto a todos, designadamente, quanto à matéria da influência perturbadora do parto no momento da acção típica.
Certo é que, contraditoriamente com o que havia sido decidido, teve lugar, efectivamente, uma perícia médico-legal psiquiátrica, por via de despachos posteriores, mas sem que a questão concreta da influência perturbadora do parto haja sido respondida de forma clara, pese embora o relatório médico-legal fale, a dado passo, de uma «obtusão da consciência no acto de tirar a vida ao bebé».
Nos termos do artigo 136.º, do Código Penal, «A mãe que matar o filho durante ou logo após o parto e estando ainda sob a sua influência perturbadora, é punida com pena de prisão de 1 a 5 anos».
Podemos ler no Código Penal Anotado de Leal Henriques e Simas Santos, (ed. 3.ª, 2000, 2º Volume, pág. 173), em comentário ao referido artigo 136.º do C Penal:
«No direito português a infracção é beneficiada pela lei sob a condição de concorrência de duas ordens de circunstâncias, a saber: - uma de carácter temporal – o momento da acção (conduta que teve lugar durante ou logo após o parto); - outra de tipo pessoal – o condicionamento da acção (conduta que teve lugar sob a influência perturbadora do estado puerperal da mãe).
A primeira condição exige que o crime tenha sido consumado durante ou logo após o parto, abrangendo, portanto, a criança que é morta enquanto decorre o parto (nascente) e a que é morta logo que acaba de nascer (neonata).
(…)
E quando é que se deve considerar que se entrou no período logo após o parto?
Parece que esse momento surge, antes mais, quando se derem por terminados os respectivos trabalhos, ou seja, a partir do momento imediatamente a seguir à expulsão da placenta e ao corte do cordão umbilical.
Para os fins da lei, contudo, cuida-se ser de alargar esse momento, de forma a abranger também todo o período que se segue, variável e indeterminado, coberto pelo impacto puerperal.
É que, enquanto a parturiente não haja ingressado no estado de acalmia e sossego que se segue ao trabalho de parto, não se pode assegurar que a mesma esteja já senhora de si própria e capaz de responder pelo seu instinto maternal, portanto de colocar barreiras a ímpetos incontrolados da expulsão fetal.
(…)
A outra circunstância de que depende a aplicação da censura indulgente prevista no artigo é o condicionalismo puerperal, perturbador da conduta da mãe.
O estado puerperal é o estado psicossomático inerente à mulher, imediatamente antes, durante e logo após o parto, susceptível de alterar a capacidade de entendimento ou de auto-inibição.»
Pois bem: estando preenchido o primeiro requisito do crime de infanticídio – o crime foi consumado durante ou logo após o parto -, não podia o tribunal recorrido deixar de ponderar o segundo, ou seja, pronunciar-se sobre se a conduta teve ou não lugar sob a influência perturbadora do estado puerperal da mãe.
Desde logo assim impunha a circunstância de se tratar de matéria alegada pela defesa, como se infere da contestação e do pedido de exame médico-legal psiquiátrico.
Ora, no acórdão recorrido não encontramos uma palavra sequer quanto ao crime de infanticídio, que manifestamente não foi equacionado, como também não foi levada aos factos provados e não provados qualquer matéria factual a esse respeito.
Verifica-se a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando o tribunal não tiver considerado provado ou não provado um facto alegado pela acusação ou pela defesa ou de que possa e deva conhecer, nos termos do n.º 1 do artigo 358.º, se esse facto for relevante para a decisão da questão da culpabilidade, ou quando, podendo fazê-lo, não tiver apurado factos que permitam uma fundada determinação da sanção, partindo-se do entendimento de que este vício distingue-se da nulidade da sentença prevista na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do C.P.P., uma vez que esta só existe quando o tribunal não se tiver pronunciado sobre «questões que devesse apreciar» ou quando se tiver debruçado sobre «questões de que não podia tomar conhecimento», sendo que os conceitos de facto e de questão não são sobreponíveis (ver Acórdão da Relação de Lisboa, de 11.11.2009, Processo: 346/08.0ECLSB.L1-3, disponível em www.dgsi.pt).
O próprio S.T.J. reconhece que os vícios decisórios previstos no artigo 410.º, n.º2, estão «umbilicalmente ligados aos requisitos da sentença previstos no artigo 374 nº2 do Código de Processo Penal, concretamente à exigência de fundamentação que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação das provas que serviram para fundamentar a convicção do Tribunal» (Acórdão de 26.11.2008, Processo: 08P3372, www.dgsi.pt). Parte-se, afinal, do princípio de que na delimitação de toda a matéria de facto contida no objecto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduz à solução legal, compreendem-se os factos alegados pela acusação e pela defesa, o que significará que o vício resulta da própria decisão, integrando esta com a acusação e a contestação, enquanto elementos que moldam o objecto da causa (veja-se, entre outros, Acórdão do S.T.J. de 26.10.2006, Processo: 06P3119; Acórdão do S.T.J., de 21.06.2007, Processo: 07P2268, ambos em www.dgsi.pt).
Diz-se no sumário do referido Acórdão de 21 de Junho de 2007, elaborado pelo Conselheiro Simas Santos, seu relator:
«1 – O ter um acórdão omitido pronúncia quanto a determinados factos alegados pelo arguido em sede de contestação, não os considerando como não provados, nem como provados não determina a nulidade prevista no art. 379.º, n° 1, al. c), 1ª parte do CPP
2 – O que releva é antes a ocorrência de um vício da matéria de facto: insuficiência da matéria de facto [art. 410.º n.º 2, a) do CPP], com o eventual reenvio para novo julgamento, insuficiência que decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão, que constituam o objecto da discussão da causa, ou seja os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, segundo o art. 339.º, n.º 4 do CPP.
3 – Na verdade, o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição e decorre da circunstância do tribunal não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão; daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art. 127.º), que é insindicável em reexame da matéria de direito. (…)»
Disse o S.T.J., em Acórdão de 26 de Fevereiro de 2009 (Processo: 08P3547, in www.dgsi.pt), num caso em que a defesa alegara a existência de crime de infanticídio e as instâncias nada indagaram a esse respeito:
«A verdade é que as instâncias nada investigaram neste âmbito.
E com a omissão de tal investigação, ficou criada uma situação de insuficiência da matéria de facto provada para a decisão, o que constitui o vício da al. a) do nº 1 do art. 410º do Código de Processo Penal. Conforme decidiu este Supremo Tribunal, em acórdão de 19-07-2006 – proc. 1932/06-3, “o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada resulta da circunstância de o tribunal não ter esgotado os seus poderes de indagação relativamente ao apuramento da matéria de facto essencial, ou seja, quando o tribunal, podendo e devendo investigar certos factos, omite esse seu dever, conduzindo a que, no limite, se não possa formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição. Trata-se, pois, de um vício que resulta do incumprimento por parte do tribunal do dever que sobre si impende de produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa – art. 340º nº 1 do CPP”.
Não cabendo ao Supremo Tribunal de Justiça, em recurso de revista conhecer da matéria de facto, especialmente quando já teve lugar recurso para a Relação, o Supremo, conforme lhe permite o art. 434º, pode conhecer oficiosamente dos vícios do art. 410º quando entender que a matéria de facto não é suficiente e adequada para a aplicação do direito. Ora, não pode deixar de ser tido em consideração que, a morte da recém-nascida ocorrera de imediato após o parto, pelo menos com a colaboração passiva da mãe, sabendo-se também, desde o início da investigação policial, que a arguida negara a sua evidente gravidez até ao último momento. Assim sendo, não parece razoável que nunca tenha sido feito uma avaliação psiquiátrica à arguida, de forma a determinar se o seu comportamento resultou da influência perturbadora do parto
Urge, em consequência, determinar o reenvio do processo ao Tribunal da Relação de Lisboa, nos termos e para os efeitos do disposto no nº 2 do art. 426º do Código de Processo Penal. Sem embargo de se reconhecer que o tempo entretanto decorrido pode causar dificuldades insuperáveis numa avaliação pericial destinada a determinar se a arguida agiu, ou não agiu, num estado de perturbação pós-parto. De todo o modo, se o tribunal não conseguir obter certezas susceptíveis de considerar verificada, ou de afastar com segurança, àquela influência perturbadora, restar-lhe-á fazer uso do princípio in dubio pro reo nos termos indicados por Figueiredo Dias (ibidem, p. 103): “o que no caso significa que, verificado que a conduta teve lugar logo após o parto, se o juiz, depois de produzida toda a prova possível, ficar em dúvida insanável sobre se a mãe actuou sob a influência perturbadora daquele, ele deve considerar verificada a tipicidade do art. 136° e não deve, em alternativa, punir pelos arts. 131° ou 132°. Saliente-se, de resto, não ser absolutamente incompatível o dar-se por provado este elemento apesar de simultaneamente se ter provado que a mãe actuou de modo consciente ou mesmo premeditado.”»
Salvo melhor opinião, situação similar ocorre nos presentes autos, em que a matéria invocada pela arguida ora recorrente atinente ao crime de infanticídio (considerando a contestação e o requerimento de exame médico-legal que a acompanhou) não foi considerada em sede de factos provados ou não provados, o que não podia deixar de se fazer.
Em suma: entendemos que a circunstância do tribunal a quo não ter dado como provados ou não provados todos os factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, foram alegados pela defesa, em ordem a que se pudesse equacionar a integração (ou não) no crime de infanticídio, faz incorrer a decisão em causa no vício de insuficiência da matéria de facto.
Nos termos legais, impõe-se o reenvio para novo julgamento, nos termos do artigo 426.º, n.º1, do C.P.P., que deverá incidir sobre essa questão e sobre o supra referido ponto 2. dos factos não provados (ver ponto 3.2.3, deste acórdão), com realização da prova que se achar pertinente, designadamente complementando ou esclarecendo o relatório de perícia médico-legal psiquiátrica (que não se pronuncia, concretamente, sobre essa questão).
Todas as demais questões colocadas nos recursos ficam prejudicadas.

III – Dispositivo
Em face do exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
A) Na procedência do recurso interposto pela arguida, com fundamento em insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito, determinar o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do disposto nos artigos 426.º e 426.ºA, do C.P.P., a fim de se apurar se a arguida agiu sob a influência perturbadora do parto, e bem assim, nos termos sobreditos, por erro notório, sobre a matéria a que se reporta o ponto 2 dos factos não provados, reexaminando-se, depois, a causa, em conformidade;
B) Julgar improcedente o recurso do Ministério Público na parte relativa à decisão sobre a matéria de facto;
A) Considerar prejudicadas todas as demais questões colocadas nos recursos.
Sem tributação.

Lisboa, 29 de Março de 2011

(o presente acórdão, integrado por trinta e sete páginas com os versos em branco, foi elaborado e integralmente revisto pelo relator, seu primeiro signatário – artigo 94.º, n.º2, do C.P.P.)

Jorge Gonçalves
Carlos Espírito Santo

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8128b9801996b3c18025788d003ad395?OpenDocument&Highlight=0,viola%C3%A7%C3%A3o

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