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sexta-feira, 12 de agosto de 2011

CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL,DIREITO DE REGRESSO - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - 06-07-2011

Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
129/08.7TBPTL.G1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: CONDUÇÃO SOB O EFEITO DE ÁLCOOL
DIREITO DE REGRESSO

Data do Acordão: 06-07-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES
DIREITO PROCESSUAL CIVIL - RECURSOS
DIREITO DE SEGUROS - DIREITO DE REGRESSO
Doutrina: - Antunes Varela, Sampaio e Nora e Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., pág.435.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 351.º, 483.º.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 721.º, NºS 2 E 3, 722.º, NºS 1 E 2, 729.º.
DECRETO-LEI N.º 522/85, DE 31-12: - ARTIGO 19.º.
LOFTJ: - ARTIGO 26.º.
DECRETO-LEI N.º291/2007, DE 21.8: - ARTIGO 27.º.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 14/1/1997, CJ, STJ, ANO V, I, 57;
-DE 23/4/2009, PROCESSO N.º 1932/03.0TBACB.C1.S1, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 6/5/2010, PROCESSO N.º 2148/05.6TBLLE.E1.S1, EM WWW.DGSI.PT;
-DE 7/4/2011, PROCESSO N.º 329606.4.TBAGN.C1.S1, EM WWW.DGSI.PT.

ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR N.º 6/2002, D.R., I SÉRIE, DE 18.7.2002.

Sumário :

1. O artigo 27.º do Decreto-Lei n.º291/2007, de 21.8 deve ser interpretado de modo a continuar o entendimento de que o direito de regresso da seguradora, nos casos de condução sob o efeito do álcool, só surge se tiver havido uma relação causal entre a etilização e a produção do evento.
2 . Esta relação causal, na sua vertente naturalística, constitui ainda matéria de facto, a fixar pelas instâncias.
3 . A fixação de tal relação causal não assenta em prova diabólica, porque julgar a matéria de facto não é, por natureza, apenas um acto consistente em espelhar nos factos provados o que passou pela frente do juiz.
4 . A ideia de “julgamento” tem ínsito precisamente o acrescentar da consciência ponderada de que julga ao que por ali passou.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I –
No Tribunal Judicial de Ponte de Lima, AA – Companhia de Seguros, S.A. veio propor contra:
A herança jacente aberta por óbito de BB, representada por CC;
A presente acção declarativa sob a forma ordinária.

Alegou, em síntese, que:
Celebrou com o dito BB um contrato de seguro do ramo automóvel;
Este foi interveniente culpado num acidente por força do qual ela, autora, desembolsou o montante que peticiona;
O mesmo conduzia com uma taxa de 0,94 g/l de sangue.

Pediu, em conformidade:
A condenação da Ré a pagar-lhe € 28.326,28, acrescidos de juros de mora, à taxa legal, desde as datas dos pagamentos efectuados até integral pagamento.

Contestou esta, atribuindo a responsabilidade do sinistro ao condutor do outro veículo, acrescentando que já foi recebida indemnização pelos danos sofridos pelo autor da herança, em função da culpa fixada no processo n.º 504/02, do 2º Juízo do mesmo Tribunal.

II –
A acção prosseguiu e, na altura própria, foi proferida sentença que, julgando-a parcialmente procedente, condenou a ré a pagar à autora a quantia de € 28.326,28, acrescida de juros de mora, à taxa legal aplicável às obrigações civis, desde a citação da Ré até integral pagamento.

III –
Apelou a ré e o Tribunal da Relação de Guimarães, revogando a sentença, absolveu-a do pedido.

IV –
Pede revista a autora, concluindo as alegações do seguinte modo:

1. O Tribunal da Relação de Guimarães alterou parte da matéria fáctica dada como provada em 1.ª instância. Considerando, no entanto, que continuava como factualidade provada, nomeadamente, que o acidente ocorreu na hemi-faixa de rodagem em que o motociclo 00-00-00 circulava, ou seja, na metade esquerda da faixa de rodagem, atento o sentido de marcha do ciclo motor PTL, cujo condutor veio a falecer;
2. Em face da matéria fáctica que o Tribunal da Relação de Guimarães considerou ter sido provada, e ao contrário do doutamente decidido, resulta, na nossa modesta opinião, que o condutor do ciclomotor PTL foi o culpado na produção do acidente viação apreço, dado ter invadido a hemi-faixa de rodagem contrária, no momento em que o motociclo NT aí circulava;
3. Põe-se, no entanto, a questão de saber se resultou ou não provado o nexo de causalidade adequado entre a condução sob a influência de álcool no sangue e a produção do acidente;
4. Ora, o Tribunal da Relação de Guimarães considerou ainda provado, nomeadamente, que "O condutor do PTL" era portador de uma taxa de alcoolemia de 0,94 g/l. Tal taxa diminuía a sua acuidade visual, com estreitamento do campo visual";
5. Atentas as circunstâncias em que ocorreu o sinistro, tal não se pode dissociar da TAS de 0,94 g/litro no sangue de que o condutor falecido - interveniente culposo no acidente -, naquela altura era portador;
6. E tendo presente que o mesmo ocorreu estando o condutor do PTL sob a influência de álcool o sangue e, por isso, tinha as suas capacidades afectadas, não atribuir esta factualidade a qualidade de causa do acidente em questão, é no mínimo um raciocínio irreflectido;
7. O que significa dizer que não existe nenhum acidente que tenha como causa directa e necessária a influência de álcool no sangue;
8. A ingestão de álcool em tão elevado grau é do conhecimento geral que influi na capacidade de concentração e reacção, bem como destreza em especial em actividades como a condução de veículos automóveis que, já por si mesma, é uma actividade de risco.
9. Em primeira-mão o álcool altera o estado psicossomático do condutor e por causa desta alteração é que os acidentes acontecem, é esta a interpretação da ora Recorrente e salvo o devido respeito, por melhor opinião, deveria ter sido este o raciocínio presente no douto acórdão ora em crise;
10. Os factos dados como provados têm de ser apreciados numa perspectiva dinâmica, de forma a serem ligados com a coerência necessária e assim poderem ser subsumidos ao direito aplicável.
11. Perante a factualidade dada como provada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, resulta preenchida a exigência legal da aludida relação de causalidade adequada entre a ingestão desse tipo de bebidas e o eclodir do acidente;
12. Aliás, nem de outra maneira se compreende como o falecido, tripulando um ciclo motor numa via que, embora não muito larga, era mais do que suficiente para os dois veículos em causa se cruzarem, optou por sair da sua hemi-faixa e provocar o acidente na hemi-faixa de rodagem contrária, ou seja, na hemi-faixa por onde o motociclo NT circulava, e em cuja aproximação não podia deixar de ter atentado se o seu estado físico fosse normal, não afectado pela ingestão do álcool;
13. Além do mais, perante toda essa factualidade provada, e como se extraí da leitura do douto acórdão, nenhuma outra causa exterior provocou o comportamento altamente imprudente e irreflectido do condutor falecido, escamotear desta realidade a TAS de que o mesmo era portador, é na realidade fazer letra morta da Lei respeitante a esta matéria;
14. O que a ser assim, pode-se afirmar que não há acidente de viação que tenha como causa a influência do álcool no sangue uma vez que, sistemática e reiteradamente, a distracção, o cansaço ou o descuido aparecem como causas justificativas;
15. A exigência da prova do nexo causal e o comportamento culposo do condutor só poderá ser satisfeita através da consideração de que é altíssima a probabilidade de ocorrência de certos riscos decorrentes da condução sob os efeitos de uma taxa de alcoolémia elevada, como é o caso dos autos para, a partir daí, se presumir a existência daquele nexo casal;
16. De outro modo é de todo impossível essa prova, pois não há maneira de averiguar, factualmente, se o comportamento seria outro caso o condutor estivesse sóbrio.
17. Será de referir que, como a interpretação da expressão "agir sob a influência do álcool" nunca foi de entendimento pacifico, veio o Ac. do S.T.J., de 4 de Novembro de 2004 (Revista n.º03456-04-2), esclarecer que para o cumprimento do dever de provar a causalidade adequada, bastará “…a demonstração de que o álcool, no caso de acidente com culpa do condutor, afectou as suas capacidades de condução". Prova esta, que a aqui Recorrente logrou produzir, tendo ficado, desde logo, assente que a TAS de 0,94 g/l de que o condutor falecido era portador lhe diminuía a acuidade visual, com estreitamento do campo visual;
18. De acordo com o acórdão uniformizador de jurisprudência sobre esta matéria, a Recorrente cumpriu, assim, o ónus de prova que lhe cabia (e que lhe é humanamente possível provar) de que o condutor falecido, portador de uma taxa de alcoolémia de 0,94 g/litro no sangue, à data do acidente, tinhas as suas capacidades para conduzir afectadas e diminuídas;
19. A questão de ser ou não necessária a prova do nexo de causalidade entre a verificação do acidente e a condução sob a influência de álcool no sangue, nunca foi de entendimento pacífico na nossa Jurisprudência, pelo que houve a necessidade e urgência em vir clarificar e interpretar a norma constante do artigo 19°, al. c) do Decreto-Lei n.º522/85, de 31 de Dezembro;
20. Assim, face à redacção da al. c) do n.º1 do art. 27° do actual Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, que revogou o aludido D.L. n.º 522/85, para que a seguradora tenha direito de regresso apenas se exige que o condutor tenha dado causa ao acidente e que conduza com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida.
21. Ora, perante tal norma, que se reputa interpretativa da correspondente norma da al. c) do art. 19° do D.L. n.º 522/85, tem-se por insustentável a doutrina do citado Acórdão Uniformizador 6/2002.
22. Mesmo assim, no caso dos autos, a Recorrente não só logrou provar a culpa do condutor do ciclomotor PTL na produção do acidente e que este conduzia com uma taxa superior à legalmente admitida, como provou, igualmente, o referido nexo de causalidade adequada;
23. Pelo exposto, ao não ter concluído pela existência de fundamento para o exercício do direito de regresso da aqui Recorrente, o Tribunal da Relação não fez a correcta aplicação da Lei aos factos provados nos autos.
Contra-alegou a ré, sustentando a bondade da decisão recorrida.
V –
Ante as conclusões das alegações, as questões a resolver cifram-se em saber se:
Da alínea c) do n.º1 do artigo 27.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21.8, resulta que basta a condução sobre o efeito do álcool e o facto de o condutor ter dado causa ao acidente – ainda que sem estabelecimento da relação causal entre uma realidade e a outra – para integrar o direito de regresso em benefício da seguradora;
Na hipótese afirmativa, deve ser considerada como norma interpretativa em ordem a ser aplicada retroactivamente, abrangendo o presente acidente;
Mesmo apenas perante a lei velha, a demonstração de que:
O acidente ocorreu na hemi-faixa esquerda, atento o sentido de marcha do segurado na autora;
Este conduzia com taxa de alcoolémia de 0,94 gr/l de sangue, com inerente diminuição da acuidade visual e estreitamento do campo visual;
É suficiente para se chegar ao pretendido direito de regresso.

VI -
Após a alteração a que procedeu, a Relação fixou a seguinte matéria factual:

- A Autora exerce a actividade seguradora e a sua actual designação resulta da fusão por incorporação da Companhia de Seguros AA, S.A., e DD – Companhia de Seguros, S.A., na Companhia de EE, S.A..
- No exercício da sua actividade, a Autora, então denominada Companhia de EE, S.A., celebrou com BB um contrato de seguro, titulado pela apólice n.º 00000000, mediante a qual este transferiu para aquela a responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do ciclomotor 00000000.
- No dia 29 de Outubro de 2000, pelas 18h45m, ocorreu um embate, em Ponte de Lima, no qual foram intervenientes o ciclomotor 00000000, conduzido por BB, e o motociclo 00-00-00, propriedade de FF, conduzido por GG.
- O motociclo 00-00-00 circulava na rua do Arrabalde, atento o sentido sul – norte, e o ciclomotor 0000000000 circulava na rua do Arrabalde, atento o sentido norte – sul.
- No embate, ficou ferida uma ocupante do motociclo, HH, a qual foi assistida no Hospital Conde de Bertiandos, em Ponte de Lima.
- O condutor do motociclo, GG, sofreu lesões em consequência do embate.
- O motociclo 00-00-00 iniciara a marcha cerca de 250 m antes do local onde veio a ocorrer o embate.
- O local do embate é mal iluminado.
- A via tem 5,70 m de largura.
- O condutor do PTL era portador de uma taxa de alcoolemia de 0,94 g/l.
- Tal taxa diminuía a sua acuidade visual, com estreitamento do campo visual.
- O embate ocorreu na hemi-faixa de rodagem direita, atento o sentido sul-norte.
- O condutor do ciclomotor sofreu lesões que lhe determinaram a morte.
- O motociclo 00-00-00 sofreu danos.
- O valor orçamentado para a reparação do motociclo 00-00-00 excedia o valor de substituição do veículo.
- O motociclo NT foi considerado uma perda total.
- Em consequência do acidente, a Autora indemnizou o proprietário do NT em € 2.493,99, relativos à perda total do veículo.
- O custo da assistência referida em F) importou a quantia de € 232,97.
- A Autora pagou tal quantia ao Hospital Conde de Bertiandos, em Ponte de Lima.
- O condutor do motociclo 00-00-00 foi assistido no Hospital de S. João, no Porto, e nos serviços clínicos da Companhia.
- A assistência prestada no Hospital de S. João importou a quantia de €418,49.
- A assistência que foi prodigalizada nos serviços clínicos da Autora importou na quantia total de € 2.680,83.
- A Autora pagou às entidades clínicas e hospitalares as quantias indicadas.
- Em 2 de Junho de 2006, a Autora pagou a quantia de € 22.500,00 a GG, na sequência de sentença proferida no processo nº1640/03.1TBPTL, do 2º juízo do Tribunal Judicial de Ponte de Lima.
- O condutor do ciclomotor não deixou testamento.

VII –
Ao tempo do acidente vigorava o artigo 19.º do DL n.º 522/85, de 31.12, dispondo, na parte que agora importa:

Satisfeita a indemnização, a seguradora apenas tem direito de regresso:
c) Contra o condutor se este…tiver agido sob a influência do álcool…

Perante esta redacção, algo simplista, foi-se firmando o entendimento, baseado na própria palavra “agido” e, bem assim, nos princípios gerais da responsabilidade civil, logo plasmados no artigo 483.º do Código Civil, de que a influência do álcool só relevaria se tivesse sido causal relativamente ao acidente.
Pode-se ler, efectivamente, no Ac. deste Tribunal de 14.1.1997 (CJ STJ, Ano V, I, 57):
“ Se o direito de regresso da seguradora não existe em relação a todo e qualquer condutor que provoque por culpa sua o acidente, e porque o direito de regresso se situa dentro do campo das sanções civis reparadoras, a lógica jurídica e o equilíbrio do sistema jurídico importam a adopção da conclusão segundo a qual não deve aquele direito ser estendido a consequências que nada têm a ver com as circunstâncias especiais que o motivaram.
Isto quer dizer que o direito de regresso apenas deverá abranger os prejuízos que a seguradora suportou que têm nexo causal com aquelas circunstâncias; não basta que resultem da condução…”
Na verdade, interpretação que desprezasse a relação de causalidade levaria, inaceitavelmente, a um objectivar, em benefício da seguradora, das consequências da condução sob a influência do álcool, assacando ao condutor responsabilidades que nada tinham a ver com a conduta culposa consistente na perturbação etílica.

VIII -
Aquele entendimento deixava, porém, a dúvida sobre o ónus de prova dos factos integrantes da relação de causalidade. Para uns impendia tal ónus sobre a seguradora, para outros, impendia sobre o segurado a demonstração do seu afastamento. O que tinha consequências de monta, porquanto, nos casos, muito frequentes, em que nada se tivesse demonstrado, um modo de ver conduziria ao direito de regresso da seguradora e o outro à sua negação.

IX –
Foi, então, lavrado por este Tribunal, o Acórdão Uniformizador n.º 6/2002, publicado na I Série do Diário da República de 18.7.2002, com o seguinte teor:
“A alínea c) do artigo 19.º do Decreto-Lei n.º 522/85, de 31 de Dezembro, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob a influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente.”

X –
Em 21.8.2007, veio a lume o Decreto-Lei n.º 291/2007, estatuindo, na parte que agora interessa do artigo 27.º, que:
Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida…

Esta redacção suporta duas interpretações:
Uma no sentido de que, circulando o condutor com uma taxa de alcoolémia superior à legalmente admitida, se der causa a um acidente, relacionado ou não com a etilização, a seguradora tem direito de regresso;
Outra com o entendimento de que não basta o condutor etilizado ter dado causa ao acidente, sendo necessário que esta causa tenha emergido da própria etilização.

O condutor etilizado que vê uma pessoa conhecida no passeio ao lado e se distrai a olhar para ela, não reparando que está a entrar numa passadeira por onde passa um peão, que atropela, sem que o seu comportamento tenha algo a ver com a alcoolização, teria contra si o direito da seguradora na primeira das interpretações e não o teria na segunda.

Ainda que mais apegada à letra da lei, a primeira das interpretações tem contra ela os mesmos argumentos que já ficaram referidos em VII. Acrescentados dum de índole histórica, pois, estando firmado o entendimento de que tinha que haver uma relação de causalidade entre a etilização e o evento, se se pretendesse romper com ela, a redacção havia de ser muito mais categórica. A referência “quando tenha dado causa” não encerra um alargar da previsão a todos os casos em que o condutor tenha dado causa ao acidente, mas antes o consagrar, em texto legal, do que faltara ao texto anterior e já vinha sendo entendimento constante.
Perfilhamos, assim, a segunda interpretação.
XI –
Para o nosso caso, a opção entre estas duas interpretações é importante.
É que, só a primeira abre a porta à questão, esgrimida pela seguradora, de entender o texto legal como interpretativo e, consequentemente, de o aplicar retroactivamente, integrado na lei vigente ao tempo do acidente: por esta via, bastava a etilização do segurado e o local do acidente (na hemi-faixa contrária, atento o seu sentido de marcha) para se alcançar o pretendido direito de regresso.
A segunda nada acrescenta ao que já vinha sendo o entendimento anterior e, por isso, arrima para o capítulo da prejudicialidade, a questão da aplicação retroactiva como lei interpretativa.

XII –
Sendo, então, certo que o direito que a seguradora pretende exercer tem como pressuposto, além do mais que agora não interessa, a relação de causalidade entre a etilização e a produção do evento, há que distinguir:
A relação de causalidade naturalística;
A sua adequação em abstracto para produzir este.

Além está matéria de facto, situada fora dos limites de conhecimento impostos a este Tribunal, em geral, pelo artigo 26.º da LOFTJ e, concretamente no que respeita ao recurso de revista, pelos artigos 721.º, n.ºs 2 e 3, 722.º, n.ºs 1 e 2 e 729.º, todos do Código de Processo Civil.
Aqui está matéria de direito, essa, sim, ao nosso alcance de conhecimento.

Sobre esta matéria tem sido abundante e constante a jurisprudência deste Tribunal, podendo ver-se, especificamente no domínio do direito de regresso como o que aqui se discute, os Ac.s de 23.4.2009, proc.º n.º 1932/03.0TBACB.C1.S1, de 6.5.2010, proc.º n.º 2148/05.6TBLLE.E1.S1 e de 7.4.2011, proc.º n.º 329606.4.TBAGN.C1.S1, todos disponíveis em www.dgsi.pt.

XIII –
No julgamento da matéria de facto, hão-de, pois, as instâncias tomar posição.
E nem nos parece que assim se está a remeter o direito de regresso a um regime de prova diabólica, com base na ideia de que, por via de regra, o condutor sóbrio também pode ter acidentes com o “desenho” característico do estado de embriaguês e, consequentemente o juiz nunca, ou quase nunca, terá elementos para “imputar o que aconteceu ao álcool”.
Julgar a matéria de facto não é, por natureza, apenas um acto consistente em espelhar nos factos provados ou não provados o que passou pela frente do juiz. A ideia de “julgamento” tem ínsito precisamente o acrescentar da consciência ponderada de quem julga ao que por ali passou (Cfr-se, a este propósito, A. Varela, Sampaio e Nora e Miguel Bezerra, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., 435). Muito do que se dá ou pode dar como provado não foi objecto de produção de prova que imediatamente o revele. Basta pensar nos factos do foro íntimo, nos factos hipotéticos, nos factos de percepção extremamente rara e aí por diante.

Para além deste inerente ponderar, sempre mais ou menos intenso, estão ao alcance do juiz de facto as presunções naturais, que podem ser extraídas nos termos do artigo 351.º do Código Civil, desde que o respectivo conteúdo não haja sido recusado em resposta negativa a matéria perguntada na BI (e, no nosso caso, cfr-se a resposta ao ponto 23.º c) da BI).

XIV –
A este Tribunal resta, pois, a apreciação em abstracto sobre se a relação de causalidade nos casos em que for estabelecida é adequada a produzir o evento, como o produziu.
Nos casos em que não for naturalisticamente estabelecida ficam, por natureza, vazios de sentido tais poderes.
Não havendo vícios formais a apontar a esta decisão negatória, nada há a censurar.

XV –
Por isso, o facto de o acidente se ter dado na hemifaixa esquerda atento o sentido de marcha do segurado da autora, conjugado com a taxa de alcoolémia a que ele seguia, com inerente diminuição da acuidade visual e estreitamento do campo visual, sem que da Relação nos chegue qualquer relação causal entre um facto e outro, é insuficiente para se considerar integrado o pretendido direito de regresso.

XVI –
Termos em que se nega a revista.
Custas pela recorrente.

Lisboa, 6 de Julho de 2011

João Bernardo (Relator)
Oliveira Vasconcelos
Serra Baptista

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/d5486b4ecbfbbfdd802578c6004908b1?OpenDocument

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