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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL CONDIÇÃO DE PUNIBILIDADE NOTIFICAÇÃO PARA PAGAMENTO - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - 28-09-2011


Acórdãos TRC
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
123/09.0IDSTR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ EDUARDO MARTINS
Descritores: ABUSO DE CONFIANÇA FISCAL
CONDIÇÃO DE PUNIBILIDADE
NOTIFICAÇÃO PARA PAGAMENTO

Data do Acordão: 28-09-2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE OURÉM - 1º JUÍZO
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGAÇÃO PARCIAL
Legislação Nacional: ART.º 105º, N.º 4, AL. B), DO R.G.I.T. (REGIME GERAL DAS INFRACÇÕES TRIBUTÁRIAS)

Sumário: Com a declaração de insolvência é o administrador que passa a representar o devedor.
Mas esta representação circunscreve-se aos aspectos de carácter patrimonial que interessem à insolvência, ou seja, tudo o que extravase os aspectos patrimoniais relativos à insolvência não cabe nos poderes de administração do administrador
Ora, um dos aspectos que extravasa o âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência são todas aquelas relativas a processos-crime e, assim, em todas estas questões, a representação da sociedade caberá, portanto, ao respectivo gerente. O art.º 105º, n.º 4, al. b), do R.G.I.T., introduziu uma nova condição de punibilidade relativamente aos crimes de abuso de confiança fiscal, ao determinar que o crime só ocorrerá depois de efectuada a notificação do devedor para pagar as quantias em dívida. Tratando-se, manifestamente, de uma questão de âmbito criminal, nada tem a ver com a insolvência, mas antes com outros aspectos da vida da sociedade e, por tal motivo, deve aquela notificação ser feita na pessoa do respectivo gerente..

Decisão Texto Integral: I.RELATÓRIO:
No âmbito do processo comum (tribunal singular) n.º 123/09.0IDSTR que corre termos no Tribunal Judicial de Ourém, 1º Juízo, a fim de serem julgados em processo comum, com intervenção do tribunal singular, o Ministério Público acusou os arguidos A..., B... de . e “WW..., Lda.”, imputando-lhes a prática de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. p. pelo artigo 105.º, n.ºs 1, 2 e 4, do RGIT, aprovado pela Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, na redacção actual (Lei n.º 64-A/2008, de 31/12), por referência ao disposto no artigo 7.º, do mesmo diploma legal, com referência aos artigos 27.º, n.º 1, 28.º e 41.º, n.º 1, al. b), do Código de Imposto Sobre o Valor acrescentado (CIVA) e artigo 30.º, n.º 2, do C. Penal. Por despacho proferido a fls. 292, dói declarado extinto o procedimento criminal contra o arguido A... ., nos termos do disposto nos artigos 1.º, 11.º, 127.º, n.º 1 e 128.º, n.º 1, do C. Penal. Após realização da audiência de julgamento, foi proferida, em 24/2/2011, a sentença constante dos autos a fls. 389/412, constando do seu Dispositivo o seguinte, relativamente ao crime acima mencionado:
. arguido B.... – condenação na pena de 160 dias de multa, à taxa diária de sete euros, o que perfaz o montante total de mil cento e vinte euros;

. arguida “WW..., Lda.” – condenação na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de sete euros, o que perfaz o montante global de dois mil e cem euros.

****

Inconformados com a decisão, dela interpuseram recurso os arguidos, em 1/4/2011, defendendo a revogação da sentença recorrida, com a sua consequente absolvição, ou, caso assim não seja entendido, com a redução das penas aplicadas, extraindo da sua motivação as seguintes Conclusões: 1. A arguida “WW..., Lda.”foi declarada insolvente, tendo o respectivo Processo dado entrada em Juízo a 18/4/2009, sendo que a sentença de insolvência foi decretada em 1/6/2009, tendo transitado em julgado em 13/7/2009.

2. A notificação da arguida “WW..., Lda.”, para efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, ocorreu na pessoa dos seus gerentes, em 26/11/2009.

3. Ao invés do que foi considerado pela Meritíssima Juiz a quo, a notificação mencionada na Conclusão anterior não teve qualquer validade jurídica, uma vez que não foi feita na pessoa que representava validamente a Insolvente.

4. A arguida “WW..., Lda.” não foi regularmente notificada para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.

5. Existe erro manifesto na apreciação da prova, pois, tendo em conta a declaração de insolvência da arguida “WW..., Lda.”, só a notificação efectuada à Administradora de Insolvência tem a virtualidade de ser considerada como “notificação regular” para efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.

6. Não se encontra preenchida a condição objectiva de punibilidade a que se alude no artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.

7. A conjugação da prova produzida nos autos, designadamente as Duas Certidões Judiciais retiradas do Processo de Insolvência e o depoimento da Sra. Administradora de Insolvência, impõe que se altere para provada a matéria da alínea F dos Factos Não Provados.

8. Resulta de fls. 5 e 6 da Certidão Judicial que constitui o Doc. N.º 7, junto aos autos por requerimento de 20/1/2011, ter o co-titular da conta da massa insolvente, e Presidente da Comissão de Credores, remetido oportunamente à Sr. Administradora de Insolvência devidamente assinado e passado à ordem de “WWW…, Lda.” um cheque do valor de 219 mil euros a esta destinado.

9. A testemunha C..., Administradora de Insolvência, confirmou ter recebido tal cheque e não o remeteu à “WW..., Lda.”

10. Devem V. Excias, Meritíssimos Juízes Desembargadores, alterar para provada a matéria factual da alínea F, em obediência ao disposto no artigo 412.º, n.º 3, als. a) e b), do CPP. E, em consequência, declarar que não foi por culpa dos arguidos que o pagamento do IVA em falta relativo ao mês de Outubro de 2008 ainda não foi efectuado.

11. Subsidiária e cautelarmente, entendem os arguidos serem as condenações aplicadas excessivamente severas e desproporcionadas em relação aos factos apurados, à culpa, à sua personalidade e às exigências de prevenção.

12. Verifica-se um juízo de prognose favorável em relação ao comportamento futuro dos arguidos, tendo já decorrido mais de dois anos e meio sobre a ocorrência dos factos, sem notícia que os arguidos tenham prevaricado, apesar de se manter o exercício da actividade comercial.

13. Devem ser reduzidas as penas aplicadas para, no máximo, metade dos respectivos valores, o que permitirá sancionar convenientemente as suas condutas, bem como acautelar a defesa da sociedade e a prevenção da criminalidade.

14.A sentença recorrida, embora douta, padece dos alegados vícios e, para além do mais, violou, entre outras, as seguintes disposições legais:

- artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT;

- artigo 81.º, n.º 1, do CIRE;

- artigo 40.º, do C. Penal;

- artigo 410.º, n.º 2, als. b) e c), do CPP.

****

O Ministério Público junto do Tribunal recorrido, em 18/5/2010, apresentou resposta, defendendo a improcedência do recurso e apresentando as seguintes Conclusões: 1. A notificação estabelecida e imposta pelo artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT tem uma dimensão criminal, nomeadamente de extinguir a responsabilidade nesse âmbito.

2. Essa notificação deve, pois, ser dirigida a quem, devido à sua qualidade de sócio-gerente efectivo, originou o substrato fáctico criminalmente relevante, tal como a sociedade em si mesma entidades que serão chamadas a, eventualmente, responder criminalmente impondo-se-lhe diligenciar pela não verificação da condição objectiva de punibilidade constante do aludido preceito legal.

3. No plano de responsabilidade criminal, esta associação dos sócio-gerentes à sociedade arguida em sede da notificação decorrente do artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, surge como natural pelas mesmas razões de responsabilização.

4. Por isso, em sede da notificação em apreço quem deve responder em termos penais não é a massa insolvente nem o Administrador de Insolvência que são realidade e entidade constituídas posteriormente à verificação da situação eventualmente com relevância criminal.

5. Pelo exposto, conclui-se, por conseguinte, que a notificação efectuada no âmbito dos presentes autos à sociedade arguida, na pessoa de um dos seus sócio-gerentes e dos seus sócios-gerentes, nessa qualidade, para efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, foi regularmente efectuada.

6. Não houve qualquer violação do disposto no artigo 81.º, n.º 1, do CIRE.

7. Inexistiu qualquer erro manifesto na apreciação da prova, não estando violado o estabelecido no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP.

8. Mostra-se verificada a condição objectiva de punibilidade, decorrente da notificação regularmente efectuada ao abrigo do estatuído no artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, e do não pagamento imposto por essa notificação, no prazo nela fixado, pelo que se impunha, como sucedeu, a condenação dos arguidos e não a sua absolvição.

9. Não resulta dos elementos de prova disponíveis no sentido de que tenha sido devido a teimosia da Sra. Administradora a disponibilização dos valores para o pagamento da dívida fiscal em apreço nos autos.

10. O que resulta da prova feita é que existe liquidez que virá a permitir também o pagamento da referida dívida fiscal, conforme vertido no ponto 15 dos factos provados.

11. Tal pagamento ainda não havia sido implementado devido à impugnação judicial das contas apresentadas pela Sra. Administradora de Insolvência, estando em curso o processo decorrente dessa impugnação.

12. A pretensão dos arguidos de que na actualidade não foi por culpa dos mesmos que o pagamento do IVA em falta referente ao mês de Outubro de 2008 ainda não foi efectuado, o que corresponde a uma conclusão, parece, de algum modo, poder extrair-se dos factos dados como provados nos pontos 14 e 15 da matéria factual dada como provada.

13. Nada justifica que se dê como provado o teor da matéria da al. f) dos factos não provados.

14. As penas aplicadas aos arguidos não excedem a culpa do arguido – pessoa individual nem a medida de responsabilização admissível da arguida sociedade, sendo justas e adequadas, respeitando as exigências de prevenção geral e especial, não enfermando a sua fixação de qualquer violação ao disposto nos artigos 40.º, 70.º e 71.º, todos do C. Penal.

15. Não violando qualquer disposição legal, deve a sentença recorrida ser mantida.

****

O recurso foi, em 24/5/2011, admitido.

Os autos subiram, em 31/5/2011, a este Tribunal da Relação de Coimbra.

Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, em 2/6/2011, emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.

Cumpriu-se o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do CPP, não tendo sido exercido o respectivo direito de resposta,

Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos, teve lugar conferência, cumprindo apreciar e decidir.


****

II. Decisão Recorrida:
“(…)

1.1. Factos Provados

Da audiência de julgamento resultaram provados os seguintes factos:

- Constantes da acusação pública:

1. A arguida WW..., Lda. no exercício do ano de 2008 desenvolvia actividade de …, na sua sede em …, Ourém. 2. A arguida WW..., Lda. era sujeito passivo de Imposto Sobre o Valor Acrescentado, encontrando-se enquadrada neste imposto no regime normal de tributação, com periodicidade mensal e era tributada peio serviço de finanças de Ourém.

3. O arguido B...., durante o ano de 2008, e actualmente, é o gerente da arguida WW..., Lda. e nessa qualidade, seu representante, agindo em nome e no interesse da mesma, sendo necessária sua assinatura para representar e obrigar a sociedade arguida.

4. Enquanto tal, competia ao arguidos B.... a prática de todos os actos necessários à administração da sociedade arguida, em especial, determinar a afectação dos meios financeiros ao cumprimento das respectivas obrigações correntes, nomeadamente o pagamento de impostos.

5. No exercício da sua actividade, a arguida WW..., Lda., durante os meses de Outubro e Novembro de 2008 através do seu sócio e gerente, o arguido B... de ., prestou os seus serviços a diversos clientes, tendo liquidado o respectivo IVA, cujo diferencial entre este imposto e o suportado estavam obrigados a entregar mensalmente nos cofres do Estado:

Período de Imposto - Termo do prazo de pagamento - IVA Não Entregue

Outubro de 2008 10/12/2008 € 15.066,77

Novembro de 2008 12/01/2009 € 7.446,50

Total: €22.513,27

6. Durante aqueles períodos o arguido B... de . formulou o propósito de não entregar o IVA liquidado aos seus clientes.

7. Os arguidos procederam à entrega das competentes declarações periódicas nos prazos legais, mas não as fizeram acompanhar dos respectivos meios de pagamento.

8. Os arguidos não procederam à entrega das quantias referidas supra no prazo legal, nem nos noventa dias seguintes, nem em momento posterior.

9. Os arguidos foram regularmente notificados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.°, n.° 4, al. b) do RGIT, para no prazo de 30 dias efectuarem o pagamento das quantias em dívida e acima descriminadas, acrescidas de juros respectivos, todavia não procederam a tal pagamento.

10. O arguido B... de . logrou fazer suas, e em benefício da sociedade arguida, as referidas quantias, que integraram todas no património da arguida WW..., Lda., num total de 22.513,27, fazendo-as suas.

11. O arguido B.... por si e em representação da sociedade arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, no mesmo quadro de solicitação exterior, em conjugação de esforços e intentos, com intenção de obter para si e para a sociedade WW..., Lda. um benefício que sabia indevido, à custa da defraudação da Fazenda Nacional, sendo certo que sabia que estava obrigado a entregar os montantes referidos supra que haviam liquidado e recebido nos aludidos montantes e correspondentes períodos.

12. Os arguidos sabiam que a sua conduta referente ao período de Outubro de 2008 era proibidas e punidas pela lei penal.

- Constantes da contestação, para além dos factos provados constantes da acusação pública:

13. A firma WW..., Lda. possui actualmente ao seu serviço treze trabalhadores.

14. Foi decretada a insolvência da “WW..., Lda. nos autos que correm seus termos sob o n.° 572/09.4 TBVNO, no 2.º Juízo desse Tribunal.

15. Foi apresentado pela firma “WW..., Lda.”, aprovado por unanimidade e homologado por sentença já transitada em julgado, um plano de insolvência que prevê a continuação da actividade com pagamento integral de todos os créditos, incluindo os períodos de IVA em falta nestes autos.

- Quanto aos antecedentes criminais dos arguidos provou-se que:

16. Os arguidos não têm antecedentes criminais.

- Quanto à situação económica, familiar, social e profissional do arguido B.... provou-se que:

17. O arguido aufere €1000; vive em casa própria, com a esposa, que aufere €500 mensais, e com o filho com 23 anos de idade; o arguido estudou até ao 9.º ano.

Mais se provou:

18. A sociedade arguida tem atravessado dificuldades financeiras desde 2008 a esta parte, tendo o valor de IVA mencionado no ponto 5. sido utilizado para pagamento a fornecedores e trabalhadores da sociedade arguida.

1.2. Factos Não Provados

- Constantes da acusação pública:

A. No exercício da sua actividade, a arguida WW..., Lda., durante os meses de Outubro e Novembro de 2008 através do seu sócio e gerente, o arguido B... de ., prestou os seus serviços a diversos clientes, tendo liquidado o respectivo IVA, cujo diferencial entre este imposto e o suportado estavam obrigados a entregar mensalmente nos cofres do Estado:

Período de Imposto IVA Não Entregue

Outubro de 2008 € 16.392,94

Novembro de 2008 € 8.936,74

Total: €25.329,68

B. Os arguidos sabiam que a sua conduta referente ao período de Novembro de 2008 era proibida e punida pela lei penal.

- Constantes da contestação, para além dos factos não provados constantes da acusação pública:

C. Todos os trabalhadores da sociedade arguido têm vários anos de casa, alguns com mais vinte anos e não têm o pagamento de salários ou de quaisquer outros direitos em atraso.

D. A sociedade arguida não tem pagamentos em atraso aos bancos ou aos demais fornecedores designadamente de electricidade, agua, matérias-primas e demais equipamentos e utensílios essenciais para a sua laboração.

E. A firma WW..., Lda. tem vindo atravessar dificuldades decorrentes do aumento dos créditos incobráveis cujo valor actual se cifra em 400.000 € e da diminuição acentuada do Volume de Negócios a partir de 2008.

F. Os pagamentos previstos no Plano de insolvência aprovado, onde se incluem os períodos de IVA em falta, só ainda não foram realizados porque a Sra. Administradora de Insolvência teima em não disponibilizar os valores para o efeito.

1.3. Motivação da Decisão de Facto

A convicção do Tribunal para dar tais factos como provados alicerçou-se na ponderação e análise crítica da prova produzida em audiência de julgamento, tendo por base, as declarações do arguido B...., que no essencial esclareceu o Tribunal que efectivamente não entregou o montante de IVA em questão às Finanças sabendo que o mesmo lhe era devidos, atentas a algumas dificuldades financeiras que sociedade atravessava, tendo utilizado tais valores para proceder ao pagamento de fornecedores e trabalhadores, não se vislumbrando motivos para não fazer fé no que disse perante a sua postura genuína e até emocionada que manteve em audiência.

Valorou-se, igualmente, o depoimento da testemunha E..., inspector Tributário, que efectuou a inspecção à sociedade arguido e instruiu todo o processo.

Esta testemunha atestou da situação fiscal da sociedade arguida, referindo os valores retidos e não entregues, período a que respeitavam, acrescentando, ainda, que a situação continua por regularizar. Mencionou, ainda, que a sociedade arguida tinha já instauradas contra si execuções fiscais e, após análise do teor dos documentos de fls. 348 a 350, concluiu que efectivamente alguns montantes tinham sido entregues directamente ao Estado por fornecedores na sequência de penhoras e por tal motivo não tinha a arguida podido reter o IVA para o depois entregar ao Estado. Recalculados os valores, apurou-se o valor de IVA constante do ponto 5, conforme documento de fls. 381 e 382.

Teve-se, ainda, em conta o depoimento de F..., que mencionou que fez a contabilidade da sociedade arguida, tendo esclarecido que esta passou por dificuldades de tesouraria.

Valorou-se, igualmente, o depoimento de D..., trabalhadora da sociedade arguida, que esclareceu que as suas funções são atinentes à facturação, correio e secretariado, fazendo mapas mensais de contabilidade que depois envia para o contabilística; esclareceu que a sociedade arguida passou por dificuldades financeiras em 2008 e que o valor do IVA foi utilizado para pagar a fornecedores e trabalhadores; actualmente a empresa tem treze trabalhadores ao serviço.

A testemunha G... ., consultor de gestão e negócios, que esclareceu que tem conhecimento aquando do plano de insolvência da sociedade arguida foi previsto o pagamento integral do IVA em análise nos autos.

Valorou-se, também, o depoimento de C..., administradora de insolvência, que esclareceu que foi aprovado e homologado um plano de insolvência da sociedade arguida, que inclui o pagamento integral da dívida de IVA em análise, contudo ainda não se iniciou tais pagamentos por terem sido impugnadas as contas apresentadas pela Sra. Administradora.

O depoimento desta testemunha mereceu credibilidade ao Tribunal pela forma sincera, genuína e espontânea como depôs.

Quanto ao montante em dívida, data do seu vencimento, a forma do seu apuramento e os seus devedores, relevaram os documentos de fls. 53, 54, 241 a 243 (declarações periódicas), fls. 55, 56, 244 e 245 (liquidações), fls. 57 a 59, 246 a 248 (processo de contra-ordenação), fls. 63 a 67 (síntese cadastral), certidão de fls. 80 a 90, balancete de fls. 95 a 109, extractos de conta corrente de fls. 110 a 174, fls. 188 e 189 (notificações), teor do relatório de fls. 226 a 235, certidão de fls. 312 a 330, teor de fls. 337, 349 a 362, fls. 363 a 366, fls. 375 e 381 e 382.

No que concerne às condições económica, familiar e social do arguido B...., levaram-se em conta as declarações prestadas pelo mesmo, não se vislumbrando motivos para não fazer fé no que disse perante a sua postura em audiência.

Tendo em atenção o disposto no artigo 169º do Código de Processo Penal, quanto aos antecedentes criminais dos arguidos, valorou-se o teor dos CRC junto aos autos a fls. 266 e 329.

Quanto aos factos não provados:

Resultaram da ausência de mobilização probatória susceptível de convencer o tribunal da sua efectiva verificação.

Na verdade, quanto os factos referido em A. e B. a sua resposta negativa decorreu do facto provado ínsito no ponto 5.º, sendo que o valor de Novembro de 2008 é inferior a €7.500 e por isso não punível criminalmente, nos termos do disposto no artigo 105º, n.º 1 do RGIT, sendo que a diferença de valores com os mencionados na acusação pública decorreu do facto de se ter apurado que parte dos valores foram entregues directamente pelos devedores da sociedade arguida à Fazenda Nacional na sequência de penhoras realizadas em execução fiscais conforme fls. de 381 e 382.

Por último, no que concerne aos factos C. a F. resultaram os mesmo não provados por ausência de prova segura no sentido da sua positividade, já que nenhum documento foi junto aos autos que o comprovasse, sendo que o arguido B.... referiu que não recebeu os salários atempadamente, e não recebeu o subsídio de Natal de 2010.

Por seu turno a testemunha C..., administradora de insolvência, que esclareceu que foi aprovada e homologado um plano de insolvência da sociedade arguida, que inclui o pagamento integral da dívida de IVA em análise, contudo ainda não se iniciou tais pagamentos por terem sido impugnadas as contas apresentadas pela Sra. Administradora.

O depoimento desta testemunha mereceu credibilidade ao Tribunal pela forma sincera, genuína e espontânea como depôs.

2. De Direito

2.1. Enquadramento jurídico-penal

Vem cada um dos arguidos acusados da prática em co-autoria material, sob a forma consumada e continuada, da prática de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º, n.º 1, do RGIT (introduzido pela Lei nº 15/2001, de 05 de Junho, com a alteração introduzida pela Lei n.º 53-A/2006, de 29 de Dezembro).

Comete tal crime “quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7 500,00 deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.”.

A incriminação do abuso de confiança fiscal reconduz-se, no essencial, à tutela do erário público e do interesse do Estado na integral obtenção das receitas tributárias (cfr. neste sentido, NUNO LUMBRALES, “O abuso de confiança fiscal no regime geral das infracções tributárias”, Fiscalidade, Janeiro/Abril de 2003, n.º 13/14, pp. 96).

Nesta linha, veja-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 25/11/2002, onde se escreveu que no crime de abuso de confiança fiscal “o que está em causa é a protecção do regular funcionamento do sistema fiscal e, com ele, a necessidade de assegurar finalidades mais profundas para lá da mera tutela do património, como a reparação igualitária da riqueza e dos rendimentos, da diminuição das desigualdades através do desenvolvimento económico e da justiça social” (acessível em www.dgsi.pt).

Daí que, ALFREDO JOSÉ DE SOUSA refira que os bens jurídicos a tutelar nos crimes fiscais são similares aos tutelados em crimes idênticos previstos no Código Penal, integrando um bem jurídico mais amplo: a confiança da Administração Fiscal na verdadeira capacidade contributiva dos contribuintes (Direito Penal Fiscal uma Perspectiva, in “Direito Penal, Económico e Europeu: Textos Doutrinais, AAVV, Vol. II, Coimbra Editora, 1999, p. 170).

Por outro lado, não é de olvidar, neste domínio, a crescente eticização do direito tributário, que tem em vista dotar o sistema fiscal de uma natureza axiológicajurídica equiparável aos restantes ramos de direito penal secundário, pretendendo o legislador garantir a dignidade penal da sua tutela, sublinhando as incumbências constitucionais do imposto, enquanto pressuposto essencial da actividade estadual e instrumento de redistribuição de riqueza (cfr. ANTÓNIO TOLDA PINTO e JORGE REIS BRAVO, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, Coimbra Editora, 2002, pp. 61).

No caso dos autos está em causa a retenção e não entrega ao Estado do IVA, imposto que visa tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo na sua incidência todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, sendo, porém, a base tributável limitada ao valor crescente em cada fase. O sujeito activo deste imposto é o Estado, ao passo que sujeitos passivos serão as pessoas singulares ou colectivas que, com carácter de habitualidade, exerçam transacções de produtos em geral.

A sua orgânica faz intervir na recolha do imposto a generalidade dos operadores económicos, diluindo-se o seu peso por um maior número de operadores, desincentivando assim a evasão e a fraude, tornando eficaz o funcionamento do imposto com taxas relativamente elevadas.

O objectivo deste imposto é tributar todo o consumo em bens materiais e serviços, abrangendo na sua incidência todas as fases do circuito económico, desde a produção ao retalho, repercutindo-se o mesmo no consumidor final.

A base tributável fica limitada ao valor acrescentado em cada fase e determina-se aplicando a taxa ao valor global das transacções da empresa em determinado período, deduzindo o imposto suportado pela empresa nas compras desse mesmo período, revelado nas facturas de aquisição. Daí que, na fase retalhista, este mecanismo represente uma repercussão do imposto para a frente, correspondente a uma taxa tributada e efectuada de uma só vez.

Trata-se, desta forma, de um imposto instantâneo ou de obrigação única, que incide sobre actos ou factos isolados, isto é, sem carácter de continuidade, pelo que terá de ser ainda qualificado como um imposto indirecto1, no sentido de que logo que se verifica o elemento material – a transmissão do bem ou a prestação de serviço – surge o imposto, a obrigação de imposto, certa e exigível.

Esta é a regra que surge plasmada no artigo 7º do Código do IVA (aprovado pelo Decreto-Lei n.º 394-B/84, de 26 de Dezembro), quando refere que o imposto é exigível e torna-se devido no momento em que os bens ou serviços objecto de operações tributáveis entram na disponibilidade do seu adquirente ou destinatário.

Como se vê, tal momento coincide, nas transmissões de bens, com o momento em que os bens são postos à disposição dos seus adquirentes, que corresponde, regra geral, ao momento da sua entrega.

Vale isto por dizer que, realizado determinado negócio jurídico, por certo preço e conhecida a taxa de imposto, a liquidação tributária opera-se por força da lei, donde resulta que não assume qualquer relevância, para efeitos de incriminação legal, o facto de operador económico que procede à liquidação do imposto não chegar a receber o montante devido pelo operador com quem negoceia, uma vez que a simples entrega dos produtos comercializados faz emergir a obrigação tributária (cfr.,1 A doutrina tem apresentado diversos critérios, de natureza económica ou de natureza jurídica para distinguir entre impostos directos e impostos indirectos. Para os efeitos do art. 736º, n.º 1, do Código Civil, a doutrina maioritária tem acentuado o carácter periódico dos impostos directos que atingem factos, situações ou actividades que se prolongam no tempo e, por isso, a obrigação renova-se automaticamente todos os anos. Quanto aos impostos indirectos, estes incidem sobre actos ou factos isolados, sem qualquer carácter de continuidade, sendo a matéria colectável intermitente, com carácter transitório e acidental (vd., a este propósito, Francisco Rodrigues Pardal, “Os Privilégios Creditórios Fiscais segundo o Novo Código Civil”, Ciência e Técnica Fiscal, n.º 102, pp. 11, e Nuno de Sá Gomes, Manual de Direito Fiscal, Volume I, 1996, pp. 122). neste sentido, DIOGO LEITE CAMPOS, Separata da Revista da Ordem dos Advogados, Ano 55 – II, Julho de 1995, pp. 550).

Ademais, de acordo com o disposto nos artigos 26º e 40º do CIVA, o sujeito passivo da relação jurídica deve proceder à entrega das declarações periódicas de liquidações de IVA a que proceda, bem como entregar o montante de imposto exigível.

Pode afirmar-se, então, que o sujeito fica na situação de fiel depositário2 desses valores, que assim passa a pertencer ao respectivo credor tributário, perante quem se constituem na obrigação legal de os entregar, nos prazos e nos locais previstos na lei.

Atento o mecanismo de liquidação e cobrança de IVA, os valores referentes a esse imposto nunca pertencem ao sujeito passivo, nem integram o seu património, não obstante, contabilisticamente, ele dar entrada nos seus cofres.

Trata-se, porém, de uma mera operação contabilística e matemática, sendo o contribuinte desse imposto como que um fiel depositário dessas quantias, desde o momento em que elas lhe são entregues (incluídas no pagamento da factura), até ao momento em que, posteriormente, as há-de entregar ao verdadeiro dono: o Estado.

Definido que está o bem jurídico do tipo legal de crime em apreço, e introduzidos traço largo o esquema de operação em que assenta cada um dos impostos, resta afrontar a matéria de facto com o direito aplicável.

- O arguido B.... –

Como se disse, o IVA é um imposto indirecto incidente sobre a despesa, em que o sujeito passivo da relação tributária, em virtude do fenómeno da repercussão, não é, na maioria dos casos, quem economicamente suporta o imposto. Ver, com particular interesse, SIMAS SANTOS e LOPES DE SOUSA, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, Colecção Direito, Áreas Editora, 2001, pp. 588.

De acordo com o disposto nos artigos 26º e 40º do Código do IVA, os arguidos supra referidos estavam obrigados a proceder à entrega nos Cofres do Estado dos montantes liquidados a título de IVA, “in casu”, o montante de € €22.513,27.

Provou-se, ainda, que o arguido procedeu à liquidação e cobrança daquele montante e à retenção deste, mas, contrariamente ao que devia, não procedeu à sua entrega nos cofres do Estado, assim desrespeitando a obrigação de entrega que sobre si impendia.

Contudo, apenas a prestação tributária não entregue referente ao mês de Outubro de 2008 é de valor superior a € 7.500,00, sendo a do mês de Novembro de 2008 no valor de € 7.446,50 e, por isso, não punível criminalmente, nos termos do disposto no artigo 105º, n.º 1 do RGIT.

Mostram-se preenchidos, pois, os elementos objectivos do tipo pelo qual vem o arguido acusado no que tange à conduta de Outubro de 2008.

Mais se demonstrou em julgamento que o arguido agiu de modo livre, voluntário e consciente, e que tinha perfeito conhecimento do seu dever de entregar à Administração Fiscal a quantia que tinham liquidado e retido, que também sabia não serem pertença sua ou da sociedade que geria, antes sendo delas mero depositário.

Assim, mostram-se preenchidos também os elementos subjectivos do tipo, tendo o arguido agido com dolo directo [cfr. artigo 14º, nº 1, do Código Penal, “ex vi” do art.º 3.º, alínea a), do RGIT].

Ademais, esta situação de incumprimento perante o credor tributário subsistiu (e subsiste) para além para além dos 90 dias a que alude artigo 105º, nº 4, al. a), do RGIT, assim se preenchendo a condição objectiva de punibilidade ínsita no preceito.

Acresce que também se mostra preenchida a condição objectiva de punibilidade prevista no artigo 105º, nº 4, al. b), do RGIT (introduzida pela Lei nº 53-A/2006, de 29 de Dezembro), uma vez que as prestações em divida não forma pagas e decorreram mais de 30 dias após a notificação para o efeito.

Finalmente, ao actuar do modo descrito, quando podia ter actuado de modo diverso, o arguido é merecedor de um juízo de censura e, por isso, deve ser considerado culpado.

Por fim, não se descortinam causas eximentes ou de desculpação que afastem a ilicitude ou a culpa e, deste jeito, obstem à punibilidade do arguido.

Pelo exposto, devem o arguido B.... ser condenado, uma vez que actuou enquanto órgão da sociedade e no interesse desta, como estipula o artigo 6º, n.º 1 do RGIT.

***

- A arguida “WW..., Ld.ª” -

A responsabilidade jurídico-penal das pessoas colectivas e equiparadas é uma realidade com crescente consagração no ordenamento penal positivo, designadamente, nos domínios da criminalidade económica e social. Tal consagração surgiu como forma de reacção à danosidade social e económica causada por alguns comportamentos ilícitos imputáveis a entes colectivos, frequentemente dotados de forte capacidade económica e para quem as sanções meramente administrativas não constituem um desincentivo suficiente (cfr. FIGUEIREDO DIAS in «Pressupostos da Punição e Causas que Excluem a Ilicitude e a Culpa», “Jornadas de Direito Criminal”, p. 51 e seguintes, C.E.J., 1983).

É com esta finalidade que o artigo 7º, n.º 1, do RGIT, determina que “as pessoas colectivas, sociedades, ainda que irregularmente constituídas, e outras entidades fiscalmente equiparadas são responsáveis pelas infracções previstas na presente lei quando cometidas pelos seus órgãos ou representantes, em seu nome e no interesse colectivo”.

Para que haja responsabilidade da pessoa colectiva ou equiparada, torna-se necessário que o facto seja praticado “por quem actua em termos de exprimir ou vincular a vontade da pessoa colectiva, sociedade ou associação de facto, procurando a satisfação de interesses, embora ilícitos, dessa pessoa colectiva, sociedade ou associação de facto” (ANTÓNIO LOPES ROCHA, in “Direito Penal Económico”, p. 164, C.E.J., 1985).

Tal responsabilidade é concomitante com a dos agentes individuais que, nos termos da previsão da norma, tenham actuado em seu nome e no interesse colectivo, sendo excluída apenas quando estes tenham agido contra ordens expressas de quem de direito, entendendo-se por esta expressão quem possa determinar a vontade da pessoa colectiva ou equiparada em causa, de acordo com o disposto no artigo 7º, nº 3, do RGIT (AUGUSTO TOLDA PINTO e JORGE DOS REIS BRAVO in “Regime Geral das Infracções Tributárias e Regimes Sancionatórios Especiais Anotados”, p. 43 e 44, Coimbra Editora, 2002).

Do exposto se deduz que, actuando as sociedades, juridicamente, através dos seus órgãos ou representantes, se estes violam a lei, cometendo uma infracção fiscal em nome e no interesse da sociedade, a sanção repercute-se na pessoa colectiva em causa.

Assim, este artigo 7º do RGIT consubstancia uma excepção legal ao princípio do carácter pessoal da responsabilidade criminal, previsto no artigo 11º, n.º 1 do Código Penal, ao determinar a responsabilidade das pessoas colectivas pelos crimes cometidos pelos seus órgãos e representantes, em seu nome e no seu interesse (excepções que foram recentemente aumentadas com a entrada em vigor da Lei nº 59/2007, de 04 de Setembro).

Contudo, para alargar a incriminação em apreço às pessoas colectiva arguidas, o julgador deve rodear-se de especiais cautelas, comprovando uma estreita conexão entre o comportamento do agente – pessoa singular – e o ente colectivo, já que aquele deve actuar em representação ou em nome deste e no interesse colectivo.

In casu, a responsabilidade penal afirmada quanto ao arguido B.... estende-se igualmente à sociedade arguida “WW..., Ld.ª”, em conformidade com o disposto no artigo 7º, n.º 1 do RGIT, na medida em que, como ficou provado, o montante ilegitimamente retido foi utilizado no interesse desta e para fazer face às dificuldades financeiras que atravessava.

Por outro lado, não constam do acervo factual elementos donde se extraia que o arguido tenha actuado “contra ordens ou instruções de quem de direito” (cfr. artigo 7º, nº 2, do RGIT).

Mostram-se, assim, preenchidos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de um crime de abuso de confiança fiscal, também em relação à sociedade arguida.

Inexistindo causa de desculpação ou eximentes que importem considerar, praticou também a sociedade “WWW…, Ld.ª” o crime de abuso de confiança fiscal de que vinha acusada.

***

Resultaram provados factos que, a seu jeito, poderiam integrar uma causa justificativa da conduta, na medida em que ao não entregarem as quantias em falta ao Estado, optaram os arguidos por cumprir o dever de pagar os salários que tinham perante os seus trabalhadores e fornecedores, aquando das dificuldades económicas porque passou a sociedade arguida.

Prevê o artigo 36º, n.º 1 do Código Penal que não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito no cumprimento de deveres jurídicos ou de ordens legítimas da autoridade, satisfizer dever ou ordem de valor igual ou superior ao do dever ou ordem que sacrificar.

É duvidoso que a situação em causa configure um verdadeiro conflito de

deveres. Isto porque, para que tal conflito tenha relevância jurídica para afastar a ilicitude, seria necessário, para além do mais, que a opção pela prática do crime tivesse sido determinada pela inexistência de outro meio, menos gravoso, de evitar a lesão do bem jurídico ameaçado.

Ora, da matéria de facto provada não resulta que a prática do crime fosse o único e último meio a que os arguidos poderiam lançar mão para resolverem os problemas dos trabalhadores e da própria empresa.

Com efeito, a obrigação do pagamento dos salários só se põe enquanto se mantiver a obrigação da manutenção dos postos de trabalho e a obrigação da manutenção da empresa em funcionamento só se mantém enquanto esta tiver viabilidade económica. Face à situação deficitária da empresa, os arguidos tinham sempre a possibilidade legal de requerer a sua extinção (v.g. aprestando-se à insolvência), bem como a extinção dos contratos de trabalho do pessoal ao serviço da empresa, dessa forma se desobrigando do pagamento dos salários.

Todavia, não o fizeram.

Além do mais, a obrigação de entregar os impostos é uma obrigação legal, cuja violação, por estar em causa um dos mais relevantes interesses do Estado (o da cobrança de impostos) encontra-se juridico-penalmente tipificada, enquanto que a obrigação de pagar os salários aos trabalhadores é de natureza meramente contratual.

Assim sendo, é manifesto que, na hierarquia de valores em causa, o interesse do Estado está a um nível muito superior ao interesse privado dos arguidos em pagar os salários e viabilizar a manutenção da empresa. Não se pode, pois, considerar que os arguidos, em vez de entregarem as quantias em causa às entidades a quem eram devidas, as tenham utilizado noutras despesas, salvaguardaram um interesse superior.

É que a entrega das quantias à Administração Tributária, para além de constituir um dever legal e, por isso, superior ao dever funcional de manter a actividade laboral da empresa, é muito mais relevante do que este, na medida em que assim ficam acautelados, quer as prestações de assistência médica, quer os subsídios de desemprego, quer ainda a futura reforma dos trabalhadores, não só da arguida, mas de outras empresas do tecido empresarial.

Por conseguinte, tal circunstância não giza a causa de exclusão de ilicitude prevista no artigo 36º, do Código Penal.

***

Importa agora determinar se, no caso concreto, estão verificados os pressupostos legais necessários para a consideração da conduta do arguido como um crime continuado.

O artigo 30º, nº 1, do Código Penal, estipula que “o número de crimes determina-se pelo número de tipos efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”. Segundo EDUARDO CORREIA, o critério de destrinça da unidade e pluralidade de infracções terá de ancorar-se numa teoria jurídica, ou seja, “o número de infracções determinar-se-á pelo número de valorações que, no mundo jurídicocriminal, correspondem a uma certa actividade” (in “Direito Criminal”, II Volume, p. 200, Almedina, 1993).

A fonte de conhecimento da unidade ou pluralidade de valorações jurídicas encontra--se na determinação da ilicitude material, ou seja, nos tipos legais de crime. Neste sentido, o preenchimento de diversos tipos nega, necessariamente, diversos valores criminais, tal como a violação repetida do mesmo tipo legal.

Diferentemente, se só um tipo legal é realizado, a actividade do agente apenas nega um valor jurídico.

Por seu turno, a figura do crime continuado, consagrada no nº 2, do artigo 30º do Código Penal, está dependente da verificação cumulativa de determinados pressupostos:

a) realização plúrima do mesmo tipo de crime (ou de vários tipos que protejam fundamentalmente o mesmo bem jurídico);

b) homogeneidade da forma de execução (unidade do injusto objectivo da acção);

c) unidade do dolo (unidade do injusto pessoal da acção) em que as diversas resoluções devem conservar-se dentro de uma "linha psicológica continuada;

d) lesão do mesmo bem jurídico (unidade do injusto do resultado);

e) persistência de uma situação exterior que facilite a execução e que diminua consideravelmente a culpa do agente (cfr. acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 18 de Abril de 2001, disponível em www.dgsi.pt).

Ora, da análise dos pressupostos do crime continuado resulta que, na vertente objectiva, se exige uma homogeneidade de comportamento total e, na vertente subjectiva, se exige uma pluralidade de resoluções criminosas, de tal forma que a nova resolução renove a anterior, “de modo que todas elas se conservem dentro de uma «linha psicológica continuada” (cfr. JORGE FIGUEIREDO DIAS in “Direito Penal – Sumários e notas das Lições do Professor Figueiredo Dias ao 1.º Ano do Curso Complementar de Ciências Jurídicas da Faculdade de Direito de 1975-1976”, p. 127, Coimbra Editora, 1976). EDUARDO CORREIA refere, a este propósito, não haver dúvidas “de que no crime continuado, às diversas condutas correspondem diversas resoluções.

Simplesmente, estas resoluções não são entre si autónomas, mas, pelo contrário, estão numa dependência tal que, nunca se pode considerar uma delas, sem necessariamente se ter de tomar em conta a anterior” (Eduardo Correia in “Unidade e Pluralidade de Infracções”, p. 277, Almedina, 1996).

Por sua vez, MAIA GONÇALVES entende que, nos casos do crime continuado, existe um só crime, porque, não obstante se verificar uma violação repetida do mesmo tipo legal de crime (ou a violação plúrima de vários tipos legais de crime), a culpa está de tal forma diminuída, que só é possível formular um juízo de censura ao agente, e não vários. Essa diminuição acentuada da culpa radica em solicitações de uma mesma situação exterior que arrasta o agente para o crime (in “Código Penal Português Anotado e Comentado”, p. 146, 16.ª Edição, Almedina, 2004).

No caso em apreço, apenas temos uma conduta punível como crime, a relativas à não entrega do IVA de Outubro de 2008, pelo que inverificados estão os pressupostos da punição do crime continuado.

***

Da Escolha e Determinação da Medida Concreta da Pena

Em relação ao arguido B....

O crime de abuso de confiança fiscal é punido, em alternativa, com pena de prisão (até três anos) ou pena multa (até 360 dias).

Nos termos do artigo 70º do Código Penal, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena de prisão e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realize de forma adequada e suficiente às finalidades de punição

São finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, e não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena não privativa da liberdade.

Por seu turno, de acordo com o artigo 40º, nº 1, do mesmo diploma “A aplicação das penas …visa a protecção dos bens jurídicos e a reintegração do agente da sociedade”, acrescentando o seu nº 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Isto significa que a pena, enquanto instrumento político-criminal de protecção de bens jurídicos, tem, ao fim e ao cabo, uma função de paz jurídica, típica da prevenção geral, cuja graduação deve ser proporcional à culpa (cfr. CLAUS ROXIN, em “Culpabilidad y Prevencion en Derecho Penal”, p. 181).

Com efeito, tal como expressa o Acórdão da Relação do Porto proferido no processo 0610027, já citado, “…a pena, enquanto instrumento politico criminal de protecção de bens jurídicos, tem ao fim e ao cabo, uma função de paz jurídica, típica da prevenção geral, cuja graduação deve ser proporcional à culpa….o bem jurídico aqui em causa prende-se com a necessidade de proteger a confiança do Fisco em relação a quem tem a obrigação de deduzir e entregar a prestação tributária”.

Ora, nos crimes fiscais, o bem jurídico aqui em causa prende-se com a necessidade de proteger a confiança do Fisco em relação a quem tem a obrigação de deduzir e entregar a prestação tributária. Ademais, deve enfatizar-se, que é “através da cobrança de impostos que o estado realiza em grande parte os objectivos de justiça social que a sua dimensão democrática lhe impõe”, conforme acertadamente referiu ANABELA RODRIGUES (cfr. “Contributo para a fundamentação de um discurso punitivo em matéria penal fiscal”, “Direito Penal Económico e Europeu”, Vol. II

(1999), p. 481.

Pese embora todo o circunstancialismo que rodeou a actividade em que o arguido se apropriou das referidas prestações tributárias, tendo em conta o valor que não foram entregues pelo arguido, há que considerar-se o facto de o arguido não ter antecedentes criminais, encontrar-se social e profissionalmente inseridos.

Pelo que se entende que a pena de multa é adequada a assegurar as finalidades da punição, pelo que se opta por esta.

Quanto à medida concreta da pena, cumpre atender aos critérios do art.

71.º do Código Penal. Esta deve ser concretizada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente.

A culpa é assim fundamento para a concretização da pena, devendo terse em conta os efeitos da pena na vida futura dos arguidos na sociedade, bem como da necessidade desta se defender dos mesmos e obstar a condutas semelhantes, mantendo a confiança da comunidade na tutela da correspondente norma jurídica que foi violada.

Ora, os crimes fiscais, são cada vez mais frequentes colocando em causa os objectivos de justiça social do Estado, como refere Anabela Rodrigues in op. citada supra, pelo que são bastante elevadas as exigências de prevenção geral.

No que se refere ás exigências de prevenção especial, temos as seguintes circunstâncias:

- A ausência de antecedentes criminais;

- Estar social, profissional e familiarmente inserido;

Por sua vez, como circunstâncias desfavoráveis, temos:

- O grau de ilicitude da conduta que aqui apreciamos é médio atento o valor que o arguido liquidou e não entregou ao Estado;

- O dolo, que é directo;

Por tudo isto, julgamos adequado a aplicação de uma pena de 160 dias (cento e sessenta) de multa.

Aqui chegados importa apurar qual o quantitativo diário a aplicar aos arguidos por cada dia de multa.

Dispõe o art.º 15.º do RGIT que tratando-se de pessoas singulares o quantitativo diário varia entre 1,00€ e 500,00€.

Apurou-se que arguido aufere €1000; vive em casa própria, com a esposa, que aufere €500 mensais, e com o filho com 23 anos de idade; o arguido estudou até ao 9.º ano.

Face ao exposto, de igual modo, há que recorrer a critérios médios para apurar a sua situação económica, pelo que se considera justo fixar ao arguido o quantitativo diário de 7,00€ (sete euros) totalizando o montante de 1.120,00 €

(mil cento e vinte euros) de pena de multa.

- “WW..., Lda.”

Relativamente à sociedade arguida, deve à mesma ser aplicada uma pena de multa, sendo que os critérios para a determinação da medida concreta da pena são os supra referidos, excepto, obviamente, naquela parte em que não sejam aplicáveis às pessoas colectivas.

A moldura abstracta da pena de multa aplicável ao crime de abuso de confiança fiscal vai de 20 até 720 dias, de acordo com o estabelecido nos artigos 12º, n.ºs 2 e 3 e 105.º, n.º 1, ambos do RGIT.

A cada dia de multa corresponde uma quantia entre 5,00 € e 5.000,00 €, tratando-se de pessoas colectivas ou entidades equiparadas, que o Tribunal fixa em função da situação económica e financeira do condenado e dos seus encargos (artigo 15º, nº 1, do RGIT).

Ora, ponderando os factos considerados como assentes no presente processo, nomeadamente, sopesando o número e o montante global da prestação que a arguida não entregou, bem como o facto da sociedade arguida atravessar dificuldades económicas, estando insolvente e com um plano de insolvência para cumprir, entendemos ser adequado fixar a pena de multa em 300 (trezentos) dias, à taxa diária de 7,00 € (sete euros), totalizando o montante de 2.100,00 € (dois mil e cem euros).”

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III. Apreciação do Recurso:

De harmonia com o disposto no n.º1, do artigo 412.º, do C.P.P., e conforme jurisprudência pacífica e constante (designadamente, do S.T.J. – Ac. de 13/5/1998, B.M.J. 477/263, Ac. de 25/6/1998, B.M.J. 478/242, Ac. de 3/2/1999, B.M.J. 477/271), o âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, só sendo lícito ao tribunal ad quem apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer, oficiosamente por obstativas da apreciação do seu mérito, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410.º, n.º 2, do mesmo diploma, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (Ac. do Plenário das Secções do S.T.J., de 19/10/1995, D.R. I – A Série, de 28/12/1995).

São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respectiva motivação, que o tribunal ad quem tem de apreciar – artigo 403.º, n.º 1 e 412.º, n.º1 e n.º2, ambos do C.P.P. A este respeito, e no mesmo sentido, ensina Germano Marques da Silva, “Curso de Processo Penal”, Vol. III, 2ª edição, 2000, fls. 335, «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões».

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões extraídas da correspondente motivação (artigos 403.º, n.º 1 e 412º, nº 1 do Código de Processo Penal), as questões que vêm colocadas pelos recorrentes são as seguintes:

1) Saber se a notificação feita nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, foi regularmente efectuada;

2) Saber se deve haver alteração da matéria de facto, no que diz respeito à alínea F);

3) Saber se as penas devem ser reduzidas a metade dos valores fixados.

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1) Da regularidade da notificação feita nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT:

Os recorrentes colocam em causa a validade da notificação ora em análise (conclusões – n.º 1 a n.º 6).

Em síntese, defendem que, tendo em conta a data da sentença de insolvência da arguida “WW..., Lda.” e subsequente trânsito em julgado (respectivamente, 1/6/2009 e 13/7/2009), só a notificação efectuada na pessoa da respectiva Administradora teria a virtualidade de ser considerada como notificação regular para efeitos do disposto no artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, o que não aconteceu, na medida em que a referida sociedade acabou por ser notificada, em 26/11/2009, na pessoa dos seus gerentes, tanto mais que o artigo 81.º, n.º 1, do CIRE prescreve que a declaração de insolvência “priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador de insolvência”.

Pois bem, nesta matéria, acompanhamos a posição defendida pelo Ministério Público nos autos.

Na verdade, a notificação imposta pelo artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT, assume uma dimensão criminal, visando, até, extinguir a respectiva responsabilidade.

Por outro lado, a figura do Administrador de Insolvência tem alcance ao nível da questão patrimonial da empresa, como decorre do artigo 81.º, do CIRE.

Tenhamos presente que, “se é certo que na empresa declarada insolvente ocorrem algumas limitações quanto às suas regras de funcionamento, a mesma continua a ter existência até ao encerramento da sua liquidação”, conforme sublinhado no parecer do Exmo. Procurador-Geral Adjunto (fls. 451), no qual, a seguir, também é salientado o seguinte:

“Acresce que o artigo 7.º, do RGIT, que prevê a responsabilização das pessoas colectivas e equiparadas, nos seus n.ºs 1 e 2, confere também responsabilização penal a entidades que designa de pessoas colectivas e sociedades ainda que irregularmente constituídas e outras entidades equiparadas. Também o artigo 11.º, n.º 11, do CP, prevê a possibilidade de serem aplicadas multas ou indemnizações a entidades equiparadas a pessoas colectivas mesmo que sem personalidade jurídica. Tudo para dizer que não se verifica aqui uma real coincidência ou paralelismo entre a noção de pessoa colectiva juridicamente constituída e a existência de pessoa singular para efeitos de aplicação das normas penais com vista à existência ou à extinção de responsabilidade penal.

(…)

De forma ainda mais clara, Paulo P. de Albuquerque interpreta esta questão da seguinte forma:

«A extinção da pessoa colectiva não implica a extinção da respectiva responsabilidade criminal. A extinção do procedimento criminal contra a pessoa colectiva só se verifica com o registo do encerramento da sua liquidação, porquanto as penas pecuniárias devem ser levadas em conta no momento da sua liquidação. Isto é, a declaração de falência da sociedade não pode ser equiparada à morte para efeitos da extinção do procedimento criminal (acórdão STJ, de 12.10.2006, in CJ, Acs. do STJ, XIV, 3, 207, acórdãos do TRP de 10.3.2004, in CJ XXIX, 2, 201; de 29.6.2005, in CJ XXX, 3, 219 e de 9.5.2007, in CJ XXXII, 3, 205).»

Por tudo o exposto, verificamos que no caso a sociedade comercial recorrente, tendo sido declarada falida, no momento em que se processa a notificação na pessoa dos seus sócios (os co-arguidos) e no momento em que é condenada pela prática do crime, continuava a manter intacta a responsabilidade criminal de pessoa colectiva, até porque a mesma continua a ter actividade, tendo sido aprovado e homologado um plano que prevê o pagamento integral de todos os créditos, sendo, assim, seguro não se ter ainda verificado o registo do encerramento da sua liquidação.

A ser assim, e estando delimitadas as funções do administrador de insolvência para a área patrimonial, por igualdade de motivos, ou até por maioria de razão, tendo a área penal um carácter de responsabilidade pessoal dos seus agentes, também se nos afiguram correctas as notificações feitas nos termos do artigo 105.º, n.º 4, al. b), do RGIT.”

Não se vislumbra como discordar desta orientação, sendo certo que a mesma vai ao encontro do que foi decidido por recente Acórdão do TRP, de 22/6/2011, Processo n.º 17716/09.9, relatado pela Exma. Desembargadora Olga Maurício, acessível em www.dgsi.pt, no qual pode ler-se o seguinte:

“Vejamos, então. Na realidade, tal como o arguido defende, o art. 81º do CIRE (Código da Insolvência e Recuperação de Empresas) dispõe, no nº 1, que «a declaração de insolvência priva imediatamente o insolvente, por si ou pelos seus administradores, dos poderes de administração e de disposição dos bens integrantes da massa insolvente, os quais passam a competir ao administrador da insolvência». Para além disso, decorre da lei que uma das causas de extinção da sociedade é a declaração da sua insolvência - art. 141º, nº 1, al. e), do diploma. Esgotada que seja a sua função social, a sociedade é dissolvida. Então, se a declaração de insolvência dissolve a sociedade e priva os administradores dos poderes de administração, será que o arguido tem razão nas suas objecções? Não tem. Primeiro, a sociedade dissolvida não se extingue de imediato. A sociedade, dissolvida pela declaração de insolvência, entra em liquidação, não se extingue - art. 146º do CSC. A extinção só acontece mais tarde, com o registo do encerramento da liquidação, conforme determina o nº 2 do art. 160º do CSC, ao dizer que «a sociedade considera-se extinta … pelo registo do encerramento da liquidação». A dissolução, por exemplo decorrente da declaração de insolvência, abre uma nova fase na vida da sociedade: a fase de liquidação e partilha. Mas a sociedade em liquidação não passa a ser uma nova sociedade. A sociedade é a mesma mantendo, nomeadamente, a personalidade de que gozava antes de dissolvida - nº 2 do art. 146º do CSC. Só com o registo da liquidação, como se viu, é que a sociedade se extingue. E se só com o registo da liquidação é que a extinção ocorre, então até lá tudo decorre com a normalidade possível, embora com as limitações impostas pela lei.
Portanto, a dissolução não determina a extinção da responsabilidade penal. Quanto à representação da sociedade após o trânsito da declaração de insolvência. Como se viu, o trânsito em julgado da declaração de insolvência da sociedade aconteceu em 14-7-2008. Um dos efeitos desta declaração é a assunção, pelo administrador da insolvência, da representação do devedor para todos os efeitos de carácter patrimonial que interessem à insolvência – art. 81º, nº 4, do CIRE. No entanto foi o arguido que em 12-8-2009 foi notificado nos termos e para os efeitos do art. 105º, nº 4, al. b), do RGIT. Nos termos do art. 252º, nº 1, do Código das Sociedades Comerciais, a sociedade é representada pelo gerente. Por outro lado, com a declaração de insolvência é o administrador que passa a representar o devedor. Mas esta representação, di-lo a lei, circunscreve-se aos aspectos de carácter patrimonial que interessem à insolvência. Ou seja, tudo o que extravase os aspectos patrimoniais relativos à insolvência não cabe nos poderes de administração do administrador. Já se viu que não é a declaração de insolvência que extingue a sociedade. Portanto, ainda há um período na vida útil da sociedade em que coexistirão duas entidades que validamente a representam, embora cada uma no seu campo de intervenção específico que não se sobrepõem. Ora, um dos aspectos que extravasa o âmbito das questões patrimoniais relativas à insolvência são todas aquelas relativas a processos-crime. Assim, em todas estas questões a representação da sociedade caberá, portanto, ao respectivo gerente [3]. O art. 105º, nº 4, al. b), do RGIT introduziu uma nova condição de punibilidade aos crimes de abuso de confiança fiscal e abuso de confiança contra a segurança social, ao determinar que o crime só ocorrerá depois de efectuada a notificação do devedor para pagar as quantias em dívida. Tratando-se, manifestamente, de uma questão de âmbito criminal, nada tem a ver com a insolvência, mas antes com outros aspectos da vida da sociedade. Por tal motivo deveria aquela notificação ter sido feita na pessoa do gerente, no caso o arguido, tal como foi.” – (os sublinhados são nossos, ressalvando-se, ainda, que referência feita como (3) remete para G... Carvalho Fernandes/João Labareda, Código dos Processos especiais de Recuperação de Empresas e de Falência anotado, 1999, pág. 392).

Pelo exposto, é de improceder, nesta matéria, o recurso.

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2) Da alteração da matéria de facto:

Os recorrentes defendem que as duas certidões judiciais retiradas do Processo de Insolvência e o depoimento da Sra. Administradora de Insolvência impõem que se altere para provada a matéria da alínea “F” dos “Factos Não Provados” (conclusões – n.º 7 a n.º 10).

Vejamos.

Em sede de impugnação da matéria de facto, o recorrente pode invocar vícios oficiosos do artigo 410.º, do CPP (insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova), ou pode visar a reapreciação da matéria dada como provada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3, do CPP. Não há que confundir estas duas formas de impugnação da matéria factual – por um lado, a invocação dos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, alíneas a). b) e c), e, por outro, os requisitos da impugnação – mais ampla - da matéria de facto a que se refere o artigo 412º, n.º 3, alíneas a), b) e c), todos do CPP. **** Estabelece o art. 410.º, n.º 2, do CPP, que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente. A “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), ocorrerá quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal não investigou toda a matéria de facto com interesse para a decisão – diga-se, contudo, que este vício se reporta à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito. A “contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão”, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insusceptível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Tal ocorre quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação conduz a uma decisão contrária àquela que foi tomada. Finalmente, o “erro notório na apreciação da prova”, a que se reporta a alínea c) do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente percebe que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios. O erro notório também se verifica quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das legis artis (sobre estes vícios de conhecimento oficioso, Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em processo penal, 5.ª edição, pp.61 e seguintes). Esse vício do erro notório na apreciação da prova existe quando o tribunal valoriza a prova contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum ou, talvez melhor dito, ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente (cf. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341). Trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido (cf. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª Ed., 74). Não se verifica tal erro se a discordância resulta da forma como o tribunal teria apreciado a prova produzida – o simples facto de a versão do recorrente sobre a matéria de facto não coincidir com a versão acolhida pelo tribunal não leva ao ora analisado vício.

**** Por sua vez, o erro de julgamento, consagrado no artigo 412º, nº 3, do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado. Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância. Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos n.º 3 e 4 do art. 412.º do CPP. Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente. E é exactamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deverá expressamente indicar, é que se impõe a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º3, do C.P.Penal: «3.Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: a)- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b)-As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c)-As provas que devem ser renovadas». A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.

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Pois bem, posto isto, necessário é concluir que os recorrentes visam a apreciação de um erro de julgamento, já que, expressamente, apontam para a reapreciação da matéria gravada (depoimento de uma testemunha), em conjugação com certa prova documental (certidões judiciais), o que significa que a censura manifestada em relação à sentença recorrida não se situa ao nível da existência de vícios previsto no artigo 410.º, n.º 2, do CPP. A crítica não se dirige ao teor da decisão em si, mas situa-se no âmbito de elementos exteriores à decisão (depoimento e documentos).

Assente que a circunstância da recorrente discordar da valoração da prova feita pelo tribunal recorrido pertence ao domínio da impugnação da convicção do tribunal a quo, a questão deve, pois, ser analisada de acordo com o disposto nos termos do artigo 412.º, n.º 3 e n.º 4, do CPP.

Como vem sendo entendido pela jurisprudência dos nossos tribunais superiores – ver, nesse sentido, o Ac. do S.T.J. de 11/1/2001, proferido no Processo n.º 2191/00, 5ª Secção -, “impugnando no seu recurso a matéria de facto, impondo-se, consequentemente, a confrontação entre a prova produzida e o alegado na motivação, mas não satisfazendo o recorrente essa exigência não pode apreciar-se o thema decidendum, por ser impossível a dissecação ideológico-anatómica da prova”.

Tenhamos presente, ainda, nesse sentido, o Ac. do S.T.J. de 24/10/2002, proferido no Processo n.º 2124/02, em que pode ser lido o seguinte: “(…) o labor do tribunal de 2.ª Instância num recurso de matéria de facto não é uma indiscriminada expedição destinada a repetir toda a prova (por leitura e/ou audição), mas sim um trabalho de reexame da apreciação da prova (e eventualmente a partir dos) nos pontos incorrectamente julgados, segundo o recorrente, e a partir das provas que, no mesmo entender, impõem decisão diversa da recorrida – art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b) do C.P.P. e levam à transcrição (n.º 4 do art.º 412.º do C.P.P.).

Se o recorrente não cumpre esses deveres, não é exigível ao Tribunal Superior que se lhe substitua e tudo reexamine, quando o que lhe é pedido é que sindique erros de julgamento que lhe sejam devidamente apontados com referência à prova e respectivos suportes”.

No caso dos autos, os recorrentes não indicam expressamente as passagens da gravação que, na sua perspectiva, impõem uma alteração da matéria de facto. Tal poderia levar a concluir que não cumpriram o que está previsto na lei, ou seja, não respeitaram o respectivo ónus de especificação.

Todavia, uma vez que sempre defendemos que uma decisão judicial não se deve nortear pelo excessivo formalismo, próprio de um academismo dispensável quando está em jogo a verdade material, podemos considerar que os recorrentes, ainda que de uma forma menos correcta, acabam por deixar claro qual a passagem do depoimento que consideram relevante, ou seja, orientam a sua crítica para o depoimento da testemunha, na parte em que a mesma confirmou ter recebido o cheque em causa sem o ter, em seguida, remetido à sociedade arguida.

Por isso mesmo, há que apreciar a pretensão dos recorrentes.

Nesta matéria, há que ter sempre em consideração um princípio básico. Como se observa no Acórdão do S.T.J. de 26/1/2000, publicado na Base de Dados da DGSI (www.dgsi.pt) sob o n.º SJ200001260007483: “Não são os sujeitos processuais (nem os respectivos advogados) quem fixa a matéria de facto, mas unicamente o Tribunal que apura os factos com base na prova produzida e conforme o princípio da livre convicção (artigo 127.º, do Código de Processo Penal), aplicando, depois, o direito aos mesmos factos, com independência e imparcialidade”.

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Antes de entrarmos na análise concreta do caso em apreço, importa reter algo de importante.

Ao alegarem o que consta da sua motivação, os recorrentes, em resumo, estão a impugnar a convicção adquirida pelo tribunal a quo sobre determinados factos, em contraposição com a que sobre os mesmos aqueles adquiriram em julgamento, esquecendo-se da regra da livre apreciação da prova inserida no artigo 127.º, do C.P.P.

O citado artigo 127.º dispõe que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.

Prova livre não significa prova arbitrária ou caprichosa, antes quer dizer prova apreciada pelo julgador segundo a sua experiência e a sua prudência, sem subordinação a regras ou critérios formais preestabelecidos. Se o tribunal decidisse como lhe apetecesse não apreciaria livremente as provas, antes estaria a desprezá-las…

Ora, do texto da decisão recorrida, não se extrai que o tribunal tenha procedido a um julgamento arbitrário da prova produzida. E a valoração por este feita não tem que coincidir com aquela que o recorrente pretende ver operada.

A livre apreciação da prova significa, em resumo, que esta deve ser feita de acordo com a convicção íntima do juiz. Aliás, já Chiovenda o afirmava, citando o imperador Adriano, conforme pode ler-se no Digesto 3, 2, De testibus, 22, 5…

À valoração do tribunal preside um juízo atípico, porque fundando-se nas regras da experiência, isto é em critérios generalizadores e tipificados, índices corrigíveis, critérios definidores de conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas sempre tendo presente a individualidade histórica do caso concreto, tal como ela foi adquirida representativamente no processo, pelas alegações, respostas, inquirições e outros meios de prova disponibilizados[1].

E se é certo que o princípio da livre apreciação da prova não pode ser confundido como uma apreciação judicial arbitrária - ou, na expressiva fórmula de Paolo Tonini “o conflito entre a acusação e a defesa não pode ser resolvido com base num acto de fé[2] -, e que a livre convicção do juiz não pode ser meramente subjectiva, emocional e, portanto, imotivável[3], certo é, também, que a “verdade material que se busca em processo penal, não é o conhecimento ou apreensão absolutos de um conhecimento, que todos sabem escapar à capacidade de conhecimento humano; tanto mais que aqui intervêm, irremediavelmente, inúmeras fontes de possível erro, quer porque se trata do conhecimento de acontecimentos passados, quer porque o juiz terá as mais das vezes de lançar mão de meios de prova que, por sua natureza - e é o que se passa sobretudo com a prova testemunhal -, se revelam particularmente fiáveis».[4]

E assim, como ensina o insigne Professor, “a convicção judicial será suficientemente objectivável e motivável quando o tribunal tenha logrado convencer-se da verdade dos factos, para além de toda a dúvida razoável. Não se tratará, pois, na “convicção”, de uma mera opção “voluntarista” pela certeza de um facto e contra toda a dúvida, ou operada em virtude da alta verosimilhança ou probabilidade do facto, mas sim de um processo que só se completará quando o tribunal, por uma via racionalizável pelo menos a posteriori, tenha logrado afastar qualquer dúvida para a qual pudessem ser dadas razões, por pouco verosímil ou provável que ela se apresentasse».

Consabidamente, a verdade que o direito encerra é a «processualmente demonstrada por recurso às provas carreadas para os autos, sujeita a todos os limites que, por definição, tem o espírito humano na tentativa de conhecer e compreender o real. O conhecimento da verdade (correspondente ao “pedaço de vida” acontecido) «na maioria das situações pressuporia uma impossível incursão na mente humana, empreitada essa, de patente que é, não necessita de ser sublinhada».[5]

Intimamente ligados ao princípio da livre apreciação da prova estão os princípios da continuidade da audiência, ou da concentração, oralidade e imediação da prova.

Quanto aos dois últimos, constituem a um tempo decorrência lógica do princípio da livre apreciação da prova e “conditio sine qua non” para a respectiva admissibilidade. Com efeito, apenas quem tenha assistido à produção da prova e às disposições assumidas pela acusação e pela defesa poderá estar capaz, no fim da discussão, de se considerar convicto de uma determinada verdade, podendo proceder ao julgamento. Paralelamente, a oralidade permite com muito maior probabilidade aceder a um discurso directo, espontâneo, não ensaiado e vivo, o que obviamente contribui para um aumento das possibilidades de descoberta da verdade e de formação de uma correcta convicção.

Quando a atribuição de credibilidade a uma dada fonte de prova se baseia numa opção do julgador assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só pode exercer censura crítica se ficar demonstrado que o caminho de convicção trilhado ofende patentemente as regras da experiência comum.

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Com efeito, perante uma sentença devidamente fundamentada, como é a do caso presente, para que seja a mesma alterada em sede de matéria de facto, impõe-se que sejam rebatidos, com base em razões materiais minimamente persuasivas, os seus fundamentos materiais, o mesmo é dizer, ou a legalidade dos meios de prova utilizados, ou conteúdo das declarações ou de outros meios de prova valorados pela sentença, ou a inconsistência, á luz dos princípios legais atinentes, da análise crítica e da apreciação em que repousa a decisão. Em termos de critérios de valoração da prova, a prova documental e a prova pericial estão sujeitas a critérios legais de apreciação vinculada - cfr., respectivamente, os artigos 169º e 163º do CPP. Já os depoimentos prestados oralmente em audiência (únicos meios de prova cuja valoração, em bom rigor, é questionada, no caso) estão sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, nos termos previstos pelo artigo 127º do CPP. A gravação dos depoimentos prestados oralmente em audiência permite, justamente, o controlo, pelo tribunal superior, da conformidade da decisão com as afirmações produzidas em audiência. Mas não substitui a plenitude da comunicação que se estabelece na audiência pública com a discussão cruzada dos meios de prova, a oralidade e imediação, no confronto dialéctico dos depoentes por parte dos vários sujeitos processuais, no exercício vivo do contraditório, na discussão cruzada levada a cabo na plenitude da audiência, pública, de discussão e julgamento. E só os princípios da oralidade e da imediação permitem avaliar o mais correctamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Só eles permitem, por último, uma plena audiência desses mesmos participantes, possibilitando-lhes da melhor forma que tomem posição perante o material de facto recolhido e comparticipem na declaração do direito do caso” – Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, p. 233-234. Daí que os julgadores do tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, perante duas versões dos factos, só podem afastar-se do juízo efectuado pelo julgador da 1ª instância, naquilo que não tiver origem naqueles dois princípios, ou seja quando a convicção não se tiver operado em consonância com as regras da lógica e da experiência comum – cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, p. 126 e 127, que por sua vez cita o Prof. Figueiredo Dias e Acórdão deste TRC, de 06.03.2002, publicado na CJ, ano 2002, II, 44. ****

No nosso caso, a decisão recorrida encontra-se bem fundamentada, oferecendo um raciocínio linear, lógico e perceptível, não sendo vislumbrada qualquer incorrecta apreciação da prova, nomeadamente quanto à medida e extensão da credibilidade que mereceram (ou não) os depoimentos prestados durante o julgamento, em conjugação com todos os outros elementos de prova.

Na realidade, foi dada credibilidade a determinadas fontes de prova, sendo certo que a opção do tribunal recorrido assentou na imediação e na oralidade, não tendo resultado que a mesma seja inadmissível perante as regras da experiência comum.

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Vejamos, agora, o caso concreto.

Os recorrentes afirmam que se encontra incorrectamente julgada a alínea “F” dos “Factos Não Provados”.

Na realidade, pode ser lido na Motivação o seguinte:

“(…)

Resulta de fls. 5 e 6 da Certidão Judicial que constitui o Doc. N.º 7, junto aos autos por requerimento de 20 JAN. 2011 e que aqui se dá por reproduzida, ter o co-titular da conta da massa insolvente e Presidente da Comissão de Credores remetido, oportunamente, à Sra. Administradora de Insolvência devidamente assinado e passado à ordem de “WW..., Lda.” um cheque no valor de 219.000 euros a esta destinado.

No decorrer da inquirição da testemunha C..., administradora de insolvência, efectuada no dia 28 de Janeiro de 2011, e cujo depoimento se encontra gravado no sistema integrado de gravação digital disponível na aplicação informática do Tribunal recorrido, confirmou a mesma ter recebido tal cheque e só não o remeteu à “WWW…, Lda.”por, alegadamente, o Meritíssimo Juiz titular do Processo de Insolvência o não ter autorizado.

Ora, é por demais evidente que tal justificação não colhe, pois é consabido que a conta da massa insolvente só em casos excepcionais, que não o presente, não carece de autorização judicial para ser movimentada, como, de resto, afirmou tal testemunha em Julgamento.

Deste modo, consideram os arguidos e ora recorrentes que, tendo por base a citada Certidão Judicial conjugada com o depoimento da testemunha C..., devem V. Excias., Meritíssimos Juízes Desembargadores, alterar para provada a matéria factual da alínea “F”, em obediência ao disposto no artigo 412.º, 3, als. a) e b), do CPP. E, em consequência, declarar que não foi por culpa dos arguidos que o pagamento do IVA em falta, relativo ao mês de Outubro de 2008, ainda não foi efectuado.”

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Analisemos, então, se os factores apontados impõem uma alteração da matéria de facto.

Em primeiro lugar, no que tange à certidão judicial, consta de fls. 361, numa carta registada c/a.r., enviada pelo Sr. Presidente da Comissão de Credores à Sra. Administradora de Insolvência, o seguinte:

“Na qualidade de Presidente da Comissão de Credores, venho acusar a recepção da sua carta de 22/04/2010, que agradeço.

Considerando que V. Excia., por conta de despesas e remunerações, já recebeu adiantadamente da Massa Insolvente a quantia de 16.909,57 euros e que as Contas que apresentou no Tribunal foram objecto de contestação e ainda não estão decididas por sentença, só farei o envio do cheque relativo à remuneração variável e respectivo IVA, após deliberação favorável da Comissão de Credores a convocar e assentimento do Meritíssimo Juiz.

Deste modo, anexo à presente devidamente assinado o cheque n.º 8547785835 à ordem WW..., Lda, no valor de 219.000 euros, ficando na conta da Massa o valor restante até posteriores desenvolvimentos.” Por sua vez, a fls. 362, surge o aludido cheque (sem data). Em segundo lugar, a testemunha C..., no depoimento prestado ao longo de 17 minutos e 39 segundos, após ter admitido que existe dinheiro na massa insolvente que permite pagar as dívida do IVA em causa nos autos (5:40 a 5.15), reconheceu estar na posse do mencionado cheque (fls. 362) e disse que só não o tinha entregado à sociedade arguida, em virtude de terem surgido, nos autos de insolvência, vários incidentes processuais, alguns dos quais criados pela própria “WW..., Lda.”, encontrando-se à espera de autorização judicial nesse sentido (7:54 a 10:45).

Rejeitou, ainda, de modo absoluto, qualquer responsabilização pela falta de entrega do aludido cheque á sociedade arguida (13.45 a 14. 30).

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Há, então, motivo para alterar a matéria de facto?

Entendemos que não.

Não há dúvidas de que o cheque foi recebido pela testemunha, sendo certo que esta o não fez chegar à “WW..., Lda.”, alegando, para tanto, a existência de incidentes processuais que esperam decisão.

Acontece que o teor da alínea “F” vai além disso e assume natureza conclusiva. Na verdade, o seu núcleo contempla “…porque a Sra. Administradora de Insolvência teima em não disponibilizar os valores para o efeito.”. Estamos face a um verdadeiro juízo de valor, o que vale por dizer que não é um facto a ser considerado.

Mas, mesmo que se entenda estarmos na presença de um facto, o que não se concede, sempre há que ser considerado que, dos elementos de prova disponíveis, nada garante existir teimosia da Sra. Administradora quanto à disponibilização dos valores para o pagamento da dívida fiscal em apreço nos autos.

Aceita-se que seja essa a conclusão dos recorrentes, na medida em que, a partir do momento em que existe um cheque assinado pelo Presidente da Comissão de Credores à ordem da “WW...”, tudo parece indicar que nenhum obstáculo impede que a arguida faça uso dele. Isso é evidente.

No entanto, há um outro elemento a considerar e que coloca em crise o que acabou de ser referido.

A testemunha C... veio dizer aos autos que não entregou o cheque, porque surgiram diversos incidentes processuais, pelo que está à espera da devida autorização judicial para o fazer.

Ora, não consta qualquer certidão judicial dos autos que coloque em crise o depoimento da testemunha, ou seja, não há documento que demonstre a inexistência dos aludidos incidentes.

Eventualmente, se ele existisse, e partindo do pressuposto que estamos na presença de um facto, seria possível concluir pela alegada teimosia.

Como isso não acontece, não é de acolher a pretensão dos recorrentes.

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3) Da medida da pena:

Por último, os recorrentes dizem que as penas aplicadas são severas e desproporcionadas (conclusões – n.º 11 a n.º 13).

Em síntese, apresentam várias circunstâncias atenuantes (Motivação – fls. 427 e 428) que, no seu entender, devem dar origem a penas de menor dimensão, a saber:

“a) Os recorrentes serem rigorosamente primários;

b) os arguidos terem confessado os factos;

c) a firma “WW..., Lda.” ter apresentado, conseguido a aprovação unânime dum plano de insolvência que prevê a continuação da actividade com pagamento integral de todos os créditos, incluindo os períodos de IVA dos autos, plano que foi homologado por douta sentença transitada em julgado;

d) o valor do IVA não entregue ter sido usado para pagamento a fornecedores e trabalhadores da firma arguida;

e) Os arguidos estarem sócio e profissionalmente inseridos, mantendo a “WW..., Lda.” 13 trabalhadores ao seu serviço e sendo, por conseguinte, elementos válidos e empreendedores;

f) os arguidos terem bom comportamento anterior e posterior à prática dos factos;

g) Os arguidos preverem realizar o pagamento do IVA em falta logo que lhes sejam disponibilizadas verbas já existentes na conta da Massa Insolvente, o que ainda não sucedeu por razões que não dependem da respectiva vontade.”

Deixando de lado a última alínea, por não constar dos factos provados, podem levar as restantes a uma diminuição das penas fixadas na sentença recorrida? O art. 71.º, n.º1, do C.P, estabelece o critério geral segundo o qual “A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”. Critério que é precisado no n.º2: “Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuseram a favor do agente ou contra ele”. Tais circunstâncias são exemplificadas (“nomeadamente”) nas várias alíneas do citado n.º2 e reconduzem-se a três grupos ou núcleos fundamentais: factores relativos à execução do facto {alíneas a), b) e c) – grau de ilicitude do facto, modo de execução, grau de violação dos deveres impostos ao agente, intensidade da culpam sentimentos manifestados e fins determinantes da conduta}; factores relativos à personalidade do agente {alíneas d) e f) – condições pessoais do agente e sua condição económica, falta de preparação para manter uma conduta lícita manifestada no facto}; e factores relativos à conduta do agente anterior e posterior a facto {alínea e)}. Por sua vez o art. 40.º, do C. Penal (redacção introduzida pela Reforma de 95), estabelece que: 1.A aplicação da pena... visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. 2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa. Os princípios jurídico-penais da indispensabilidade da tutela penal e da proporcionalidade impedem que a pena seja colocada ao serviço exclusivo da eficácia pela eficácia. O Estado de Direito, fundado no consenso dos cidadãos, traduz as convicções jurídicas fundamentais da colectividade, colocando a pena ao serviço desse sentimento jurídico comum. De onde resulta que ela não pode ser aplicada apenas para intimidar os potenciais delinquentes mas, acima de tudo, deve dar satisfação às exigências da consciência jurídica geral, estabilizando as suas expectativas na validade da norma violada. Subordinando a função intimidatória à outra função socialmente integradora. A intimidação é limitada ao necessário para restabelecer a confiança geral na ordem jurídica, conforme ao sentimento jurídico comum. A moldura penal aplicável ao caso concreto define-se entre o mínimo imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias e o máximo que a culpa do agente consente, situando-se, entre esses limites, o espaço possível de resposta às necessidades da reintegração social.

É sabido que o não pagamento de impostos continua a ser visto no nosso país (embora cada vez menos) como uma “infracção menor”, sendo até, por vezes, socialmente bem considerados os que utilizam “estratagemas” de fuga aos impostos. Só quando se chega, por vezes, ao momento em que a execução de uma pena de prisão fica suspensa com a condição do pagamento das quantias em dívida, é que se toma a verdadeira consciência da gravidade dos factos praticados. O certo é, porém, que há que distinguir os diferentes casos e adequar o tipo de pena a cada um deles.

No que concerne ao crime em causa, as exigências de prevenção geral não podem ser escamoteadas, ponderando que a evasão fiscal configura um fenómeno generalizado e responsável por flagrantes injustiças de ordem social. Esta conjuntura conduz precisamente o Estado a rodear de especiais garantias os créditos de natureza fiscal.

Com efeito, a confiança da Administração Fiscal na real capacidade contributiva dos cidadãos, configura um bem jurídico com assento Constitucional (art.º 103.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) e reclama que seja garantido o seu respeito de forma efectiva.

Por via da conduta dos arguidos, viu-se frustrada a satisfação do crédito do Estado, repercutindo-se essa situação na satisfação das necessidades sociais dos demais cidadãos que cumprem as suas obrigações fiscais e contribuem para o bem-estar sócio-económico da restante comunidade, o que não pode nem deve ser minimizado.

Porém, mostram-se reduzidas as exigências de prevenção especial, em face das circunstâncias supra descritas, nas alíneas a) a f).

Em particular, há um factor bem favorável aos arguidos.

Numa época em que muitas empresas deixam de existir, sendo desconhecido o paradeiro dos respectivos gerentes, é de salientar que a sociedade arguida continua em actividade, tendo sido aprovado um plano de insolvência que contempla o pagamento de todos os créditos existentes, cuja execução não está posta em causa.

Isso só pode significar que o arguido B...de . interiorizou o desvalor da sua conduta.

Acresce que os factos descritos nos autos se reportam a um curto período que ocorreu há cerca de três anos, nada constando em desabono dos arguidos, desde então.

Em resumo, tendo em linha de conta as finalidades das penas, sem esquecer o art.º 13.º, do R.G.I.T., segundo o qual «na determinação da medida da pena atende-se, sempre que possível, ao prejuízo causado pelo crime.», é de acompanhar, nesta parte, os recorrentes, devendo ser reduzidas as sanções aplicadas.

Nesta confluência e ponderando quanto acima ficou exposto, julga-se proporcional e adequada a pena de oitenta dias de multa, no que toca ao recorrente B...., e de cento e cinquenta dias de multa, no que diz respeito à sociedade recorrente, sendo de manter a taxa diária de sete euros.

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IV. Decisão:

Nestes termos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em julgar parcialmente procedente o recurso, indo, por consequência, os recorrentes condenados, nos termos constantes da sentença recorrida, do seguinte modo: 1) arguida “WW..., Lda.” – pena de 150 (cento e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de sete euros, o que perfaz o montante global de € 1050,00 (mil e cinquenta euros);

2) arguido B.... – pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de sete euros, o que perfaz o montante global de € 560,00 (quinhentos e sessenta euros).

Sem custas.

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(elaborado e revisto pelo relator, antes de assinado)

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Coimbra, 21 de Setembro de 2011
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(José Eduardo Martins)

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(Maria José Nogueira)

[1] - cfr. Prof. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1967/1968, n.º 4 - Os Princípios de Processo Penal.
[2] La Prova Penale, pág. 9 e segs.
[3] “A liberdade de apreciação da prova não pode estar mais longe das meras conjecturas e das impressões sensitivas injustificáveis e não objectiváveis” - Paulo Saragoça da Mata, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade de Direito de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, Coordenação Científica de Maria Fernanda Palma, Almedina, pág. 231.
[4] Cfr. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Lições coligidas por Maria João Antunes, secção de textos da FDUC, 1988-9, págs. 140.
[5] Paulo Saragoça da Mata, ob. cit., pág. 251.

http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/3579bc2187de89da8025792c0035f925?OpenDocument

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