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sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - ACIDENTE DE VIAÇÃO MENOR MORTE DIREITO À VIDA DANO - 08/09/2011


Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2336/04.2TVLSB.L1.S1
Nº Convencional: 2ª SECÇÃO
Relator: OLIVEIRA VASCONCELOS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
MENOR
MORTE
DIREITO À VIDA
DANO

Data do Acordão: 08-09-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA À AUTORA , NEGADA A REVISTA À RÉ
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES - RESPONSABILIDADE CIVIL
Doutrina: - Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral, I 9ª ed. pp. 586º e ss..
- Dário Martins de Almeida “in” Manual dos Acidentes de Viação, 2ª edição, págs. 168 e 170.
- Pires de Lima e Antunes Varela “in” Código Civil Anotado, em enotação ao artigo 496.º.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 4.º, 487.º, N.º2, 494.º, 496.º, N.º3, 497.º, N.º2 E 500.º , N.º3.
CÓDIGO DA ESTRADA(APROVADO PELO DECRETO LEI 114/94, DE 03.05 E REVISTO PELO DECRETO LEI 2/98, DE 03.01): - ARTIGO 35.º.


Sumário : 1. A culpa define-se como o nexo de imputação ético jurídico que liga o facto ilícito à vontade do agente (o lesante, em face das circunstâncias especiais do caso, devia e podia ter agido de outro modo) e deve ser apreciada segundo a diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de dado caso o que significa que se atende, em abstracto, à diligência exigível a um homem normal, colocado no condicionalismo do caso concreto.

2.Tem sido predominantemente entendido, na doutrina e na jurisprudência que a prova de inobservância de leis ou regulamentos faz presumir culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando a correcta comprovação de falta de diligência.

3. Porque se trata de normas legais de protecção de perigo abstracto, a conduta infractora que as infringe, traduzindo a inexistência do necessário cuidado exterior, só não responsabilizará o agente se este demonstrar ter tido o necessário cuidado interior.

4. Assim, em matéria de responsabilidade civil resultante de acidente de viação existe uma presunção "iuris tantum", por negligência, contra o autor de uma contra-ordenação.

5. É intolerável que mesmo perante uma conduta transgressora de um peão seja concedido a um condutor de um veículo o direito de se alhear completamente da situação de perigo assim criada, ainda mais estando em causa a vida de uma pessoa.

6. O motorista de um autocarro devia estar atento aos movimentos de uma menor que se desenvolviam no seu lado direito, pois assim facilmente se aperceberia da queda daquela e pararia o veículo, evitando assim o atropelamento.

7. O referido motorista do autocarro “alienou-se” dos apelos da menor, que se encontrava do lado direito do mesmo, para a deixar entrar no veículo, desconsiderando os mesmos, prosseguindo com a manobra e aproximando o veículo do passeio desse lado, atropelando-a.

8. A vida não só tem um valor de natureza - igual para toda a gente - mas também um valor social, uma vez que o homem é um ser em situação.

9. Não sendo este valor atendível em termos absolutos, temos que o encarar em termos muito relativos, utilizando a equidade e o bom senso, encarando a vida que se perde na função normal que desempenha na família e na sociedade em geral, no papel excepcional que desempenha na sociedade, assinalado por um valor de afeição mais ou menos forte.

10. Encarando o caso concreto em apreço, constata-se que a falecida menor tinha 14 anos de idade, era saudável, inteligente e bem disposta, dedicava-se à poesia, à pintura e ao desporto e era muito ligada à sua mãe.

11. Tendo em conta todas estas circunstâncias e considerando também o valor aquisitivo do dinheiro na actualidade - pensemos quanto custa um automóvel novo e na indemnização a atribuir no caso de o mesmo ser destruído - utilizando a equidade e o senso comum, entendemos ser o valor de 100.000,00 € o mais correcto para compensação da perda do direito à vida da menor.

12. Deve ser indemnizado o dano moral da vitima consistente em pressentir a sua morte.

13. Quanto à sua transmissibilidade, não se vê razão para não a admitir, uma vez que a compensação pecuniária por estes danos não patrimoniais reveste-se de natureza patrimonial e transfere-se aos “herdeiros” da vítima.




Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


Em 04.04.06, na 15ª Vara Cível de Lisboa, AA instaurou a presente acção com processo ordinário, contra a COMPANHIA DE SEGUROS BB, S.A. actualmente denominada de.....BB – COMPANHIA DE SEGUROS, S.A., a COMPANHIA CC DE LISBOA, S.A. e DD pedindo que estes fossem condenados a pagarem-lhe a quantia global de 250.000,00 €, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento

alegando
em resumo, que
- no dia 01.05.28, o réu DD conduzia, no exercício das suas funções ao serviço da ré “CC”, um autocarro pesado de passageiros, de marca Volvo, de matrícula 00-00-00, da carreira nº 32, que se iniciou no Calvário e terminava no Bairro de Caselas, percorrendo a Travessa da Boa-Hora e a Rua Dom Vasco no Bairro da Ajuda;
- por volta das 13,30 horas, a filha mais nova da Autora, EE, saiu de casa e vendo o aludido autocarro no cruzamento entre a Travessa da Boa-Hora e a Rua Dom Vasco, o qual já tinha iniciado a curva para entrar nesta Rua e tentando apanhá-lo, dirigiu-se à passadeira de peões e abeirou-se da porta da frente do autocarro, que circulava em marcha lenta, batendo na porta para que o motorista a abrisse, o que este não fez;
- não obstante a EE continuou a insistir, o autocarro continuou a avançar, até que este lhe bateu, deitando-a ao chão e passando-lhe com o rodado por cima da cabeça, matando-a;
- a autora pretende ser indemnizada por todos os danos sofridos.

Contestando
as rés CC e BB alegaram, aquela a sua ilegitimidade e ambas que a culpa do acidente se devia atribuir exclusivamente à infeliz EE, impugnando também os danos.

Proferido despacho saneador – onde a ré CC e o réu DD foram considerados partes ilegítimas - fixada a matéria assente e elaborada a base instrutória, foi realizada audiência de discussão e julgamento.

Em 10.04.05, foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e condenou a ré a pagar à autora a quantia de 205.000.00 €, acrescida de juros de mora.

A autora e a ré apelaram, com parcial êxito, pois a Relação de Lisboa, por acórdão de 10.12.14, alterou a decisão recorrida, condenando-se a ré apagar à autora a quantia de 97.500,00 €, acrescida de juros de mora.

Novamente inconformadas, a autora e a ré deduziram a presente revista, apresentando as respectivas alegações e conclusões.

A autora contra alegou.

Corridos os vistos legais, cumpre decidir.

As questões

Tendo em conta que

- o objecto dos recursos é delimitado pelas conclusões neles insertas, salvo as questões de conhecimento oficioso - arts. 684º, nº3 e 690º do Código de Processo Civil;

- nos recursos se apreciam questões e não razões;

- os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, sendo o seu âmbito delimitado pelo conteúdo do acto recorrido são os seguintes os temas das questões propostas para resolução:

A) - Nulidades

B) – Acidente

C) – Direito à vida

D) – Danos morais da autora

E) – Danos morais sofridos pela vítima.

Os factos

São os seguintes os factos que foram dados como provados nas instâncias:

A. No processo nº 800/01.4SILSB, que correu termos no 5º Juízo, 1ª Secção, do Tribunal Criminal de Lisboa, foi proferida sentença a 27 de Outubro de 2003, a qual transitou em julgado em 17.11.2003 (alínea M) dos Factos Assentes).

B. Na sentença referida em A), o tribunal considerou provado que:

“1) No dia 28 de Maio de 2001, o arguido era motorista profissional ao serviço da «Companhia CC de Lisboa», e estava incumbido de conduzir, como efectivamente conduzia, o autocarro pesado de matrícula 00-00-00 da carreira nº 32, no percurso entre o Calvário e Caselas, nesta cidade e comarca de Lisboa.

2) Do itinerário respectivo fazia parte a Travessa da Boa-Hora, a que se seguia a Rua Dom Vasco, que com aquela se cruza.

3) Junto ao cruzamento e na Rua Dom Vasco existia uma passagem para peões marcada no pavimento, conforme descreve a fotografia de fls. 162, que aqui se dá por reproduzida.

4) O piso das ruas em causa era constituído por pavimento alcatroado, tinha trilhos destinados a eléctricos, sendo certo que o piso é ligeiramente ondulado, devido à passagem frequente de automóveis pesados, nomeadamente autocarros de transportes públicos.

5) No dia e hora em causa fazia sol e o piso encontrava-se seco.

6) As vias públicas em causa tratam-se de ruas com elevada circulação diurna de pessoas, quer pedestres, quer por automóveis, como é próprio das ruas principais do centro da cidade de Lisboa, sendo certo que, pelas 13h 15m, a circulação humana diminui consideravelmente, devido a ser hora do almoço.

7) No dia e nas condições acima referidas, cerca das 13 horas e 15 minutos, depois de ter percorrido a Travessa da Boa-Hora, o arguido iniciou uma manobra de mudança de direcção para a direita, a fim de circular pela Rua Dom Vasco, no sentido Sul-Norte.

8) A mencionada curva para a direita configurava quase um ângulo recto e a Rua Dom Vasco traduzia um estreitamento significativo da faixa de rodagem relativamente à Travessa da Boa-Hora, uma vez que a sua largura passava de 10 metros para apenas 6, 10 metros.

9) Ao descrever esta curva, devido às características e às dimensões do autocarro, o arguido afastou o veículo do passeio do lado direito da Rua Dom Vasco e invadiu a metade esquerda da respectiva faixa de rodagem, razão por que FF, que conduzia um veículo pesado pela mesma via, em sentido contrário, parou a alguns metros de distância, defronte do autocarro, para permitir que se concretizasse a manobra que o arguido se encontrava a efectuar.

10) Nessa altura, a menor EE, nascida em 19 de Março de 1987, que tinha chegado atrasada à paragem de autocarro colocada na Travessa da Boa-Hora poucos metros antes da curva, aproveitando a circunstância do auto-carro circular a uma velocidade não superior a 10 km/h, em cima da passagem para peões, aproximou-se da porta da frente, do lado direito do autocarro, a correr, e a ela bateu várias vezes, pretendendo entrar no veículo.

11) O arguido alienou-se dos apelos da menor, desconsiderando os mesmos e prosseguiu a manobra, conduzindo para a sua mão de trânsito da direita e voltando a aproximar o autocarro do passeio do mesmo lado, mantendo a sua atenção fixada na circulação de outros veículos a motor, em especial os da faixa de rodagem da esquerda, atento o seu sentido de marcha.

12) Em tal momento, a EE, após bater na porta do autocarro da forma supra descrita, recuou um a dois passos e tropeçou em plena via pública, caindo ao chão.

13) De imediato, o acima referido FF fez accionar mais de uma vez a buzina de ar do seu veículo, ao mesmo tempo que gesticulava repetidamente para o arguido parar.

14) Indiferente à sinalização do mencionado FF, continuou a manobra e passou com o rodado traseiro do autocarro por cima do corpo da menor EE e, não obstante o ressalto que se produziu, prosseguiu a marcha, só imobilizando o veículo seguidamente, perante apelos repetidos de FF.

15) Em resultado directo e necessário deste atropelamento, a menor EE sofreu as lesões traumáticas crânio encefálicas e abdominais descritas no relatório de autópsia médico-legal, que determinaram directa e necessariamente a sua morte, tudo como melhor se alcança do mesmo relatório que aqui se dá por reproduzido (fls. 135 a 138).

16) É impossível a um autocarro pesado de passageiros de tamanho igual ao que conduzia o arguido, efectuar a manobra descrita sem invadir a faixa de rodagem da esquerda da Rua Dom Vasco, atento o seu sentido de marcha.

17) O arguido agiu da forma descrita, tendo desconsiderado os apelos da menor e do mencionado FF por imprevidência, distracção, alheamento e desconsideração, não tendo representado a possibilidade de atropelamento daquela.

18) O arguido foi motorista da «CC» durante mais de 20 anos, tendo, inclusivamente, prestado formação a motoristas ao serviço daquela entidade.

19) O arguido deixou de ser motorista da «CC» em finais de 2001.

20) O arguido não tem antecedentes criminais conhecidos.

21) O arguido aufere um subsídio de desemprego de cerca de 500E por mês.

22) O arguido vive em casa própria, tipo anexo, e tem a seu cargo uma filha com 18 anos de idade, estudante.

23) A mulher do arguido é empregada de limpeza". (alínea N) dos Factos Assentes).

C. No processo referido em A), DD foi condenado pela prática de um crime de homicídio negligente, previsto e punido pelo artigo 137º, nº 1, do Código Penal (alínea O) dos Factos Assentes).

D. No dia 28 de Maio de 2001, a "Companhia CC de Lisboa" tinha a responsabilidade pelos prejuízos causados pelo autocarro de passageiros Volvo, com a matrícula 00-00-00, transferida para a "Companhia de Seguros BB, S.A. pela apólice nº 000000000 (alínea P) dos Factos Assentes).

E. Na data mencionada na alínea D), DD era trabalhador da Companhia CC de Lisboa, com a categoria de motorista profissional, e conduzia, no exercício das suas funções profissionais, o autocarro pesado de passageiros de marca Volvo, com a matrícula 00-00-00 (alínea A) dos Factos Assentes). F)

F. No dia 28 de Maio de 2001, o autocarro de matrícula 00-00-00 fazia o percurso da carreira nº 32, com início no Calvário e terminus no Bairro de Caselas, percorrendo a Travessa da Boa-Hora e a Rua Dom Vasco, no Bairro da Ajuda (alínea B) dos Factos Assentes).

G. A Rua Dom Vasco é ladeada por passeio do lado direito (resposta ao quesito 2º).

H. No dia 28 de Maio de 2001, junto ao cruzamento entre a Travessa da Boa-Hora e a Rua Dom Vasco, existia o Centro Comercial Boa-Hora, um super-mercado e um mercado (resposta ao quesito 6º)

I. No referido dia, por volta das 13h, EE pretendeu apanhar o autocarro nº 32, que a conduziria à Escola Secundária do Restelo (resposta ao quesito 7º).

J. Nesse dia, cerca das 13.30 horas, fazia sol e o piso encontrava-se seco (alínea G) dos Factos Assentes).

K. Por volta das 13.30 horas, o autocarro de matrícula 00-00-00 deixou a paragem da Travessa da Boa-Hora, onde tinha estado a recolher e a largar passageiros e iniciou a sua marcha para entrar na Rua Dom Vasco, voltando à direita, saindo da Travessa da Boa-Hora e entrando na parte ascendente da Rua Dom Vasco (alínea C) dos Factos Assentes).

L. Dada a largura da Rua Dom Vasco e o ângulo de 90º que faz com a Travessa da Boa-Hora, para um veículo pesado de passageiros entrar na Rua Dom Vasco, no sentido ascendente, no local em que esta se cruza com a Travessa da Boa-Hora, o rodado da frente tem que ocupar a faixa de rodagem oposta - a via descendente da rua fazendo parar o trânsito automóvel que desce a Rua Dom Vasco (alínea D) dos Factos Assentes).

M. No referido dia, o autocarro com a matrícula 00-00-00 chegou ao cruzamento entre a Travessa da Boa-Hora e a Dom Vasco e desenvolveu uma curva larga para a direita puxando o carro para o lado esquerdo e entrando na faixa de rodagem oposta à sua, no sentido descendente da Rua Dom Vasco, assim entrando nessa rua (alínea E) dos Factos Assentes).

N. Atenta a manobra referida em M), o trânsito automóvel da via descendente da Rua Dom Vasco, concretamente o veículo pesado conduzido por FF, parou, aguardando e observando a manobra do autocarro, para depois retomar a marcha (alínea F) dos Factos Assentes).

O. Quando realizou a manobra referida em M), DD sabia que o trânsito de veículos na via descendente da Rua Dom Vasco estava parado a aguardar que acabasse a manobra (alínea H) dos Factos Assentes).

P. DD conhecia o percurso da carreira nº 32, que fazia regularmente.

Q. Atenta a manobra referida em M) e o sentido de marcha do autocarro com a matrícula 00-00-00, a visibilidade do lado esquerdo da Rua Dom Vasco era maior do que a do lado direito (alínea J) dos Factos Assentes).

R. Durante a manobra referida em M), DD podia ter parado o autocarro (resposta ao quesito 18º).

S. EE corria na via, ao lado do autocarro de matrícula 00-00-00, na mira de o apanhar fora da paragem de autocarro (resposta ao quesito 40º).

T. No local em que ocorreu o atropelamento descrito no ponto 14 da alínea B), o piso tem trilhos destinados a eléctricos (resposta ao quesito 41º).

U. EE, filha de GG e de AA, nasceu no dia 19 de Março de 1987 e faleceu no dia 28 de Maio de 2001 (alínea K) dos Factos Assentes).

V. A causa de morte de EE foi fractura de crânio com laceração do encéfalo e órgãos abdominais e atropelamento (alínea L) dos Factos Assentes).

W. EE era saudável, inteligente e bem disposta (resposta ao quesito 19º).

X. Frequentava o 8º ano de escolaridade da Escola Secundária do Restelo e estava a preparar-se para prosseguir os estudos até ao ensino superior (respostas aos quesitos 20º e 21º).

Y. EE dedicava-se à poesia e à pintura (resposta ao quesito 22).

Z. Era cinturão amarelo de Karaté (resposta ao quesito 23º).

AA. Só alguns segundos depois de EE ter caído ao chão é que o rodado posterior do autocarro lhe passou por cima (resposta ao quesito 24º).

BB. Na circunstância referida na alínea AA), EE sentiu medo (resposta ao quesito 25°).

CC. Entre a Autora e EE havia uma relação de compreensão, cumplicidade e amor (resposta aos quesitos 26º e 27º).

DD. O falecimento de EE deixou a Autora destroçada, devastada e traumatizada (resposta aos quesitos 28º e 29º)

EE. Em virtude do falecimento de EE, a Autora deixou de trabalhar e iniciou um tratamento psiquiátrico que ainda hoje se mantém (respostas aos quesitos 30º e 31º)

FF. A Autora continua a sofrer com o falecimento de EE (resposta ao quesito 32º).



Os factos, o direito e o recurso

A) – Nulidades

Entende a autora recorrente que foram cometidas duas nulidades, previstas na alínea d) do nº1 do artigo 668º do Código de Processo Civil, na medida em que no acórdão recorrido se teria tomado em conta factos ou tirado conclusões que não encontrariam suporte na matéria de facto assente e dada como provada.

Não pode ser.

É que não se pode confundir nulidade da sentença com erro de julgamento.

A nulidade da sentença invocada pela recorrente existirá “quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.

Manifestamente, não é caso.

Na verdade, o que a autora recorrente invoca é um pretenso erro de julgamento ocasionado pela consideração de factos não demonstrados.

Questão esta que será apreciada a seguir.

B) – Acidente

Na sentença proferida na 1ª instância entendeu-se que o motorista do autocarro tinha sido o único responsável pela ocorrência do acidente e da morte da infeliz EE na medida em que, podendo ter parado o veículo que conduzia a tempo do evitar o atropelamento, não o fez por não ter atentado, como devia, ao que se passava no lado direito desse veículo, onde estava a EE.

No acórdão recorrido entendeu-se repartir essa responsabilidade por ambos, na proporção de metade para cada um.

E isto porque se considerou que o motorista “não atentou como devia, ao que ocorria à sua direita, nomeadamente na menor que corria ao lado do autocarro, batendo na porta para entrar “ e “nos avisos sonoros e gestuais que lhe eram feitos pelo FF no sentido de parar o veículo”.

E que “deveria também a menor ter em atenção que ao correr na via pública, ao lado de um autocarro em manobra que se afigurava difícil, atenta as dimensões do mesmo e as características da via mais estreita para aquela viatura, e de piso irregular e com CC do eléctrico para si, poderia cair e ser atropelada como infelizmente aconteceu”.

A autora recorrente entende que a ocorrência do acidente se deve atribuir exclusivamente à conduta do motorista do autocarro, pois se este estivesse atento ao que se passava no lado direito do veículo, teria parado o mesmo logo que a EE caiu no solo e evitado o seu atropelamento, sendo que a conduta desta não podia ser considerada como censurável, dada a sua idade e à situação concreta em causa.

Cremos que não tem razão quanto à exclusividade da culpa, embora discordemos da percentagem da atribuição da mesma fixada no acórdão recorrido.

A culpa define-se como o nexo de imputação ético jurídico que liga o facto ilícito à vontade do agente (o lesante, em face das circunstâncias especiais do caso, devia e podia ter agido de outro modo) e deve ser apreciada segundo “a diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de dado caso” - art.487º, nº2, do Código Civil), o que significa que se atende, em abstracto, à diligência exigível a um homem normal, colocado no condicionalismo do caso concreto ( Antunes Varela “in” Das Obrigações em Geral I 9ª ed. pp. 586º e ss.).

Tem sido predominantemente entendido, na doutrina e na jurisprudência que a prova de inobservância de leis ou regulamentos faz presumir culpa na produção dos danos dela decorrentes, dispensando a correcta comprovação de falta de diligência.

Porque se trata de normas legais de protecção de perigo abstracto, a conduta infractora que as infringe, traduzindo a inexistência do necessário cuidado exterior, só não responsabilizará o agente se este demonstrar ter tido o necessário cuidado interior.

Assim, em matéria de responsabilidade civil resultante de acidente de viação existe uma presunção "iuris tantum", por negligência, contra o autor de uma contra-ordenação.

Voltemos ao caso concreto em apreço.

O motorista do autocarro desenvolveu uma manobra de mudança de direcção para o seu lado direito.

Nestas circunstâncias e em face do princípio geral referido no artigo 35º do Código da Estrada, aprovado pelo Decreto Lei 114/94, de 03.05 e revisto pelo Decreto Lei 2/98, de 03.01, deveria assegurar-se que dessa manobra não resultava perigo ou embaraço para o trânsito, inclusive de peões.

Ora, o motorista do autocarro “alienou-se” dos apelos da menor, que se encontrava do lado direito do autocarro, para a deixar entrar no veículo, desconsiderando os mesmos, prosseguindo com a manobra e aproximando o veículo do passeio desse lado.

Nesta altura, a menor recuou dois passos e tropeçou em plena via pública, caindo no chão.

De imediato, o condutor de um veículo que se encontrava parado em frente ao autocarro buzinou e gesticulou repetidamente para o motorista deste parar.

Indiferente a tudo isto e nada o impedindo de parar o veiculo, este motorista continuou a manobra e atropelou a menor.

Face a estes factos, não podemos deixar de concluir que o referido motorista infringiu manifestamente o dever geral de cuidado que sempre é necessário ter quando se efectuam manobras como a que estava a efectuar.

Não podia ignorar que a menor se encontrava perto do autocarro, na via pública, pretendendo entrar no mesmo.

Foi avisado repetidamente pelo condutor de outro veículo, que assistiu à queda da menor na via pública, para parar o veículo.

Apesar desses avisos e de saber da proximidade da menor, não parou o veículo, como podia e devia ter feito.

Independentemente de entender que não podia aceder ao pedido da menor para entrar no autocarro, sempre tinha que tomar as precauções adequadas para evitar que a segurança – nomeadamente, a vida – da menor não fosse atingida.

É intolerável que mesmo perante uma conduta transgressora de um peão seja concedido a um condutor de um veículo o direito de se alhear completamente da situação de perigo assim criada, ainda mais estando em causa a vida de uma pessoa.

Se o motorista do autocarro estivesse atento – como podia e devia – aos movimentos da menor que se desenvolviam no seu lado direito, facilmente se aperceberia da queda daquela e pararia o veículo, evitando assim o tropelamento.

E podia evitá-lo porque entre a queda da menor e o posterior atropelamento mediaram ainda alguns instantes.

Essa obrigação de atentar nos movimentos da menor era, no caso concreto, ainda da maior intensidade porque aquele motorista foi alertado, momentos antes de ocorrer o atropelamento, para parar o veículo por outro condutor, que se apercebeu da queda da menor na via pública.

Não se provou que o motorista do autocarro não pudesse ver a menor na altura do acidente – cfr. resposta negativa ao ponto 38º da base instrutória.

De qualquer forma, mesmo que isso tivesse acontecido, restava sempre a censurável desconsideração que esse motorista teve perante os avisos do outro condutor, assim como da situação objectiva de a menor estar na via pública, junto ao autocarro.

Concluímos, pois, que o motorista teve culpa na ocorrência do acidente.

Mas à conduta da infeliz EE também tem que ser atribuída a causalidade do mesmo.

É que, como é sabido e resulta do artigo 99º do Código da Estrada, ela não devia transitar pela via pública, mas sim pelo passeio.

E devia ter o cuidado de não se aproximar do autocarro em andamento, face aos notórios perigos que isso representava.

A sua culpa, no entanto, tem que ser considerada diminuta em relação à culpa do motorista do autocarro, tendo em conta que na altura tinha 14 anos de idade – com toda a impulsividade que isso representa – e a notoriedade de que são vulgares, embora censuráveis, as situações de jovens – e até não jovens – que, na iminência de perder um autocarro, tentam convencer os motoristas a os deixar entrar depois das paragens.

E é claro que esta vulgaridade coloca muitas vezes essa pessoas, nomeadamente os jovens, como que numa situação de ausência de auto-censura que, sob pena de o Direito não acompanhar a realidade da vida, tem que ser tomada em conta aquando da avaliação da culpa.

Por tudo isto e com o devido respeito pelo decidido no acórdão recorrido, entendemos que, sendo de atribuir o acidente à concorrência de culpas do motorista do autocarro e da infeliz EE, no entanto se considera como mais adequada fixar a percentagem de culpa daquele motorista em 80% e da menor em 20%.


C) – Direito à vida

Na 1ª instância fixou-se em 80.000,00 € o montante da indemnização pela perda do direito à vida da menor e no acórdão recorrido em 100.000,00 €, embora reduzida a metade em virtude de proporção de culpas aí fixada.

A autora entende que deve ser fixado em 125.000,00 € e a ré em 61.560,00 €, valores estes referentes à sua totalidade.

Vejamos.

A lei manda funcionar o critério da equidade, dentro do condicionalismo referido no art.494º do Código Civil - cfr. art.496º, nº3, do mesmo diploma.

Em abstracto, não tendo a vida um preço, não será legitimo fazer qualquer distinção para valorar mais ou menos a vida de uma pessoa à de qualquer outra.


No entanto, face à necessidade de atribuir uma indemnização pela sua perda, temos que considerar que ela não só tem um valor de natureza - igual para toda a gente - mas também um valor social, uma vez que o homem é um ser em situação.

Não sendo este valor atendível em termos absolutos, temos que o encarar em termos muito relativos, utilizando a equidade e o bom senso, encarando a vida que se perde na função normal que desempenha na família e na sociedade em geral, no papel excepcional que desempenha na sociedade, assinalado por um valor de afeição mais ou menos forte.

Neste campo, tem que se considerar que atentar contra o respeito à vida produz um dano - a morte - superior a qualquer outro no plano dos interesses da ordem jurídica, sem olvidar que a reparação desse dano assume uma natureza mista, visando não só reparar o prejuízo, como também punir a conduta do autor dessa lesão máxima da personalidade, que é a sua própria extinção.

Encarando agora o caso concreto em apreço, constata-se que a falecida menor tinha 14 anos de idade, era saudável, inteligente e bem disposta, dedicava-se à poesia, à pintura e ao desporto e era muito ligada à sua mãe.

Tendo em conta todas estas circunstâncias e considerando também o valor aquisitivo do dinheiro na actualidade - pensemos quanto custa um automóvel novo e na indemnização a atribuir no caso de o mesmo ser destruído - utilizando a equidade e o senso comum, entendemos ser o valor de 100.000,00 €, fixado no acórdão recorrido, o mais correcto para compensação da perda do direito à vida da menor.

D) – Danos morais da autora

No acórdão recorrido, alterando o decidido na 1ª instância sobre a questão - que o havia fixado em 100.000,00 € - entendeu-se fixar em 70.000,00 € o montante da indemnização a pagar pela ré à autora como indemnização pelos danos da natureza não patrimonial que sofrera em virtude da morte da sua filha.

A autora entende que tal montante deve ser fixado em 100.000,00 €.

O ré entende que deve ser fixado em 16.000,00 €.

Todos estes valores são reportados à totalidade da indemnização.

Cremos que não têm razão e se decidiu bem.

Danos morais ou prejuízos de ordem não patrimonial são prejuízos insusceptíveis da avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado – por exemplo, a vida, a saúde, a liberdade, a beleza.

Porque não atingem o património do lesado, a obrigação de os ressarcir tem mais uma natureza compensatória do que indemnizatória.

O chamado “dano de cálculo” não serve, pois, para aqui.

Por isso, a lei lançou mão de uma forma genérica, estabelecendo, no nº1 do artigo 496º do Código Civil, que apenas se “deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito”

Gravidade esta que deve ser apreciada objectivamente – Pires de Lima e Antunes Varela “in” Código Civil Anotado, em anotação ao referido artigo.

O seu montante deve ser fixado equitativamente (art.4º e 496º nº3 do mesmo diploma) tendo em conta os factores referidos no artigo 494º - grau de culpabilidade do agente, situação económica deste e do lesado e quaisquer outras circunstâncias.

Sendo que o juízo de equidade não pode ser entendido como qualquer arbitrariedade por parte de quem julga, mas como a procura da mais justa das soluções, sendo sempre a justiça do caso concreto.

O quantitativo a fixar há-de ser o bastante para contrapor às dores e sofrimentos ou, ao menos, a minorar de modo significativo os danos delas provenientes.

O dano especificamente sofrido de carácter não patrimonial a fixar equitativamente há-de ter sempre em conta o pressuposto ético que está na base da obrigação de indemnizar - que é o da sanção da conduta culposa do agente - cfr. arts. 494º, 497º nº2 e 500º nº3 do Código Civil.

Postas estas noções, voltemos ao caso concreto em apreço.

A menor EE era filha da autora.

Tinha 14 anos na altura em que ocorreu o acidente e o seu falecimento.

Frequentava o 8º ano de escolaridade da Escola Secundária do Restelo e estava a preparar-se para prosseguir os estudos até ao ensino superior.

Dedicava-se à poesia e à pintura.

Era cinturão amarelo de Karaté.

Entre a Autora e EE havia uma relação de compreensão, cumplicidade e amor.

O falecimento de EE deixou a Autora destroçada, devastada e traumatizada.

Em virtude do falecimento de EE, a autora deixou de trabalhar e iniciou um tratamento psiquiátrico que ainda hoje se mantém.

A autora continua a sofrer com o falecimento de EE.

Face aos elementos referenciados, entendemos como correcto o montante fixado no acórdão recorrido como indemnização pelos danos morais sofridos pela autora.

E) – Danos morais sofridos pela vítima

Nas instâncias fixou-se em 25.000,00 € o montante dos danos a atribuir pelos danos morais sofridos pela menor ao pressentir que ia morrer em virtude do acidente.

A ré recorrente entende que, a considerar-se a transmissibilidade destes danos, os mesmos nunca deveriam ser valorados em quantia superior a 3.000,00 €, continuando a referência a valores totais.

Cremos que não tem razão e se decidiu bem.

Quanto à transmissibilidade, não se vê razão para não a admitir, uma vez que a compensação pecuniária por estes danos não patrimoniais reveste-se de natureza patrimonial e transfere-se aos “herdeiros” da vítima – neste sentido ver Dário Martins de Almeida “in” Manual dos Acidentes de Viação, 2ª edição, página 168.

Quanto à existência, está provado que só alguns segundos depois de EE ter caído ao chão é que o rodado posterior do autocarro lhe passou por cima, tendo ela sentido medo.

Provada está, pois, a percepção que a EE teve que ia morrer.

A morte raramente é um acontecimento instantâneo, havendo sempre momentos que a antecedem, por mais fugazes que sejam, em que a vítima sofre dores físicas e a angústia de tal sofrimento ser irremediável.

A aquisição por parte da vítima do direito a ser indemnizada por essa angústia “transcende uma visão meramente naturalística ou materialista da personalidade”.

É fruto da “aceitação de postulados e corolários ditados pela especial “natureza do direito de personalidade” – mesmo autor e obra, a página 170.

Quanto ao montante e tendo em conta os parâmetros referidos aquando da questão anterior, temos como adequado o fixado nas instâncias.

A decisão

Nesta conformidade, acorda-se em julgar parcialmente procedente a revista da autora e totalmente improcedente a revista da ré, fixando-se o montante da indemnização a pagar pela ré à autora em 156.000,00 € (cento e cinquenta e seis mil euros), acrescida de juros de mora, conforme o decidido nas instâncias.

Custas pela autora e pela ré, de acordo com o vencimento.


Lisboa, 8 de Setembro de 2011

Oliveira Vasconcelos (Relator)
Serra Baptista
Álvaro Rodrigues

http://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/ff64e678f0ad57a18025790a003aa05b?OpenDocument

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