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domingo, 19 de agosto de 2012

TENTATIVA IMPOSSÍVEL VALOR DIMINUTO REENVIO DO PROCESSO MEDIDA DA PENA - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora - 12/06/2012


Acórdãos TRE
Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
330/10,3GDPTM.E1
Relator: JOÃO AMARO
Descritores: TENTATIVA IMPOSSÍVEL
VALOR DIMINUTO
REENVIO DO PROCESSO
MEDIDA DA PENA

Data do Acordão: 12-06-2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROVIDO

Sumário: Desconhecendo-se o valor dos bens objecto de tentativa de furto, a dúvida sobre se o valor de tais bens é ou não diminuto, porque se refere a um elemento de facto e o reenvio do processo para novo julgamento nada alteraria, tem de solucionar-se a favor do arguido, em obediência ao princípio “in dubio pro reo”.


Decisão Texto Integral:
Processo nº 330/10.3GDPTM.E1

Acordam os Juízes, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:


I - RELATÓRIO.

Nos autos de processo comum perante tribunal singular com o nº 330/10.3GDPTM, do 2º Juízo Criminal do Tribunal de Família e Menores e de Comarca de Portimão, foi acusado o arguido A como autor material de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1, 204º, nº 1, al. b), e 22º, nº 1 e nº 2, al. c), todos do Código Penal.
Proferida pertinente sentença, o tribunal decidiu condenar o arguido, como autor do referido crime, na pena de 2 anos e 9 meses de prisão.
Inconformado com a sentença condenatória, dela interpôs recurso o arguido, formulando as seguintes conclusões:
1ª - O tribunal a quo apreciou de forma notoriamente errada os depoimentos das duas testemunhas ouvidas na audiência de discussão e julgamento (B e C - ambos militares da GNR), já que pelas mesmas nada foi dito sobre a existência de bens ou de objectos no interior da viatura objecto do furto.
2ª - Ao fixar a matéria de facto nos termos em que o fez, e não se sabendo se existiam ou não bens (ou objectos) no interior da viatura em causa, o tribunal recorrido violou o princípio in dubio pro reo, além de ter incorrido em erro notório na apreciação da prova (previsto no artigo 410º, nº 2, al. c), do C. P. Penal).
3ª - Em consequência, o tribunal errou também na qualificação jurídica, pois deu erradamente como provado um facto fundamental para a aplicação do disposto no artigo 204º, nº 1, al. b), do Código Penal.
4ª - O furto não pode ser qualificado ao abrigo de tal norma, já que não foi feita prova sobre a existência de bens ou objectos no interior do veículo.
5ª - De igual modo, o tribunal a quo errou ao punir o arguido como autor de um crime de furto, na forma tentada, face ao preceituado no artigo 23º, nº 3, do Código Penal.
6ª - Com efeito, não tendo sido produzida prova sobre a existência de bens ou objectos no interior do veículo, a tentativa não é punível, dada a inexistência do objecto essencial à consumação do crime.
7ª - A medida concreta da pena aplicada ao arguido mostra-se excessiva, severa e desajustada, sendo adequado fixar o quantum da pena até dois anos de prisão.
8ª - Ao estabelecer-se esta pena, impõe-se a substituição da mesma por prestação de trabalho a favor da comunidade, nos termos do disposto no artigo 58º do Código Penal.
9ª - Ainda que assim não se entenda, a pena de prisão aplicada pelo tribunal recorrido deve ser suspensa na sua execução, face ao preceituado no artigo 50º do Código Penal, o que permitiria a sua reintegração na sociedade (artigo 40º, nº 1, do mesmo Código Penal).
*
O Ministério Público na primeira instância apresentou resposta ao recurso, entendendo que deve manter-se na íntegra a sentença recorrida, e concluindo nos seguintes (transcritos) termos:
“1. Considera o Recorrente que o Tribunal “a quo” apreciou de forma notoriamente errada os depoimentos das testemunhas e consequente valoração legal dos actos praticados pelo recorrente.
2. Não assiste razão ao Recorrente quanto a esta matéria, aliás, o Recorrente não põe em causa a existência dos fundamentos que alicerçam a convicção do Tribunal “a quo”, limitando-se apenas a questionar a relevância que lhes foi conferida pelo Tribunal recorrido e que, em sua opinião, é insuficiente, ainda que conjugada com as regras da experiência comum.
3. O Tribunal “a quo” fez uma correcta análise de toda a prova produzida em julgamento.
4. Entende também o Recorrente que foi violado o princípio “in dubio pro reo”, contudo não revela a decisão ora impugnada pelo Recorrente que o Tribunal “a quo” tenha tido qualquer dúvida relativamente aos factos dados como provados, tendo os mesmos sido afirmados de forma convicta, não se justificando desse modo a invocada violação daquele princípio.
5. A conjugação dos elementos que resultaram provados na audiência de discussão e julgamento permitiram que o Tribunal “a quo” formasse a sua convicção e desse como provados e não provados factos que se pretendem atacar, mas que, em nosso entender, nenhum reparo merecem.
6. Entende ainda o Recorrente que, o Tribunal “a quo” errou ao considerar como provado o cometimento do crime na forma tentada pois, por força do artigo 23.º, n.º 3, do Código Penal, a tentativa não seria punível por inexistência do objecto essencial à consumação do crime.
7. Também nesta matéria não assiste razão ao Recorrente, pois os actos praticados pelo arguido, ora Recorrente, foram idóneos a produzir uma violação do Direito, a causar intranquilidade na sociedade, tendo com a sua conduta criado um perigo perceptível de lesão do bem jurídico tutelado pela norma penal.
8. Assim, também neste domínio não nos merece a sentença recorrida qualquer reparo.
9. Por força do artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal, a determinação da medida da pena deverá ter em atenção a culpa do agente e as exigências de prevenção, sendo certo que toda a pena tem como suporte axiológico uma culpa concreta, o que envolve uma proporcionalidade entre a pena e a culpa, exarando-se que, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa - artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal.
10. O arguido apresenta inúmeros antecedentes criminais, mormente por crimes da mesma natureza, sendo certo que as penas anteriormente aplicadas ao arguido resultaram ineficazes e em nada serviram para o afastar da prática de novos crimes e, em especial, da prática de um novo crime da mesma natureza.
11. À luz destes princípios, entendemos que a douta sentença recorrida doseou equilibradamente a pena aplicada ao arguido.
12. Por tudo o exposto, somos de parecer que não foram violados os preceitos legais citados pelo recorrente, no recurso em apreciação, devendo este improceder e confirmar-se a douta sentença ora recorrida”.
*
Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto parecer, concluindo também pela total improcedência do recurso.
Cumprido o disposto no nº 2 do artigo 417º do Código de Processo Penal, não foi apresentada qualquer resposta.
Efectuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência.
Colhidos os vistos legais, e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO.

1 - Delimitação do objecto do recurso.

Tendo em conta as conclusões acima enunciadas, que delimitam o objecto e poderes cognitivos deste tribunal ad quem, nos termos do disposto no artigo 412º, nº 1, do C. P. Penal, são seis, em breve síntese, as questões que vêm suscitadas no presente recurso:
1ª - Erro de julgamento sobre a matéria de facto (conclusões 1ª e 2ª).
2ª - Erro na qualificação jurídica dos factos praticados pelo arguido (conclusões 3ª e 4ª).
3ª - Não punibilidade da tentativa, por inexistência do objecto essencial à consumação do crime de furto (conclusões 5ª e 6ª).
4ª - A determinação da medida concreta da pena aplicada ao arguido (conclusão 7ª).
5ª - A substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade (conclusão 8ª).
6ª - A suspensão da execução da pena de prisão (conclusão 9ª).


2 - A decisão recorrida.

A sentença revidenda é do seguinte teor (quanto aos factos, provados e não provados, e quanto à motivação da decisão fáctica):

“Discutida a causa, e de interesse para a mesma, provaram-se os seguintes factos:
1. A 30 de Abril de 2010, pelas 15h00, no parque de estacionamento da praia da Marinha, em Lagoa, o arguido A abeirou-se do veículo automóvel de marca Fiat, modelo Punto, de matrícula 83-HZ-42, pertencente a D e estroncou a porta do lado do condutor com uma gazua, introduzindo-se, de seguida, no seu interior, altura em que foi surpreendido por dois soldados da GNR de Lagoa;
2. O arguido agiu com a intenção de se apoderar e fazer seus os objectos que viesse a encontrar no interior do referido veículo automóvel, só não o tendo feito por circunstâncias alheias à sua vontade, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que dessa forma actuava contra a vontade do seu legítimo proprietário;
3. Agiu deliberada, livre e conscientemente;
4. Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei penal;
Mais se provou:
5. O arguido regista antecedentes criminais, tendo já sido julgado e condenado por um crime de furto qualificado praticado em 27.02.1996, um crime de furto simples praticado em 09.01.2001, um crime de furto na forma tentada praticado em 15.04.2006, um crime de furto qualificado na forma tentada praticado em 16.01.2009 e um crime de furto qualificado praticado em 06.11.2008.
6. O arguido aufere cerca de 480,00 euros por mês, vive com a mulher, que se encontra desempregada, com uma filha e uma neta a seu cargo, em casa arrendada, para a qual paga a renda mensal de 156,00 euros, e tem um veículo automóvel, de marca Fiat Punto, do ano de 2001.

De relevo, não existem factos não provados.

Motivação de facto e exame crítico das provas:
O Tribunal fundou a sua convicção quanto aos factos descritos acima como estando provados:
- Nas declarações do arguido, que confirmou os factos, mas não totalmente, referindo que não entrou no carro.
- Nos depoimentos das testemunhas soldados da GNR, que se encontravam no local numa operação de vigia, e que viram exactamente como os factos se passaram, e confirmaram-nos na íntegra, tendo sido claros, coerentes e credíveis.
- O Tribunal levou igualmente em consideração os documentos de fls. 3 a 5, 19 e 20, e os registos fotográficos de fls. 25, 28 (parte superior) e 29.
No que se reporta à situação pessoal e económica do arguido, o Tribunal fundou a sua convicção nas suas declarações.
Para prova dos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal baseou a sua convicção no CRC de fls. 193 e seguintes”.


3 - Apreciação do mérito do recurso.

a) Dos factos e da qualificação jurídica.

O arguido, nas declarações prestadas na audiência de discussão e julgamento, confirmou o essencial dos factos dados como provados, com excepção do pormenor de, na altura em que foi interceptado pelos militares da GNR, estar para entrar no veículo (cuja porta tinha forçado), e não ainda no seu interior. Assumiu o arguido, além disso, que pretendia apoderar-se de objectos e de valores que encontrasse no interior da viatura em causa.
As duas testemunhas ouvidas na audiência de discussão e julgamento, militares da GNR, que presenciaram a actuação do arguido, confirmaram tudo o que foi dito pelo arguido, com excepção do referido pormenor. Com efeito, na versão destas testemunhas, o arguido foi pelas mesmas interceptado já no interior do veículo.
Porém, o dito pormenor é absolutamente irrelevante, pois tanto faz o arguido, quando foi interceptado e detido, estar ainda para entrar na viatura (cuja porta forçou) ou ter nela acabado de entrar.
O que é relevante, isso sim, e ninguém abordou a questão (nem as testemunhas, nem o arguido, nem a acusação, nem a sentença revidenda), é saber, ainda que por aproximação (ou mera presunção), que tipo de bens estariam no interior do veículo, e, sobretudo, qual o valor de tais bens.
Lida e relida a motivação do presente recurso, verifica-se, efectivamente, que toda a argumentação do recorrente gira em torno desta questão (a existência de bens ou objectos no interior do veículo).
Em primeiro lugar, alega o recorrente que existe erro de julgamento da matéria de facto, no tocante a tal aspecto.
Ora, a Mmª Juíza a quo deu apenas como provado que o arguido se pretendia apoderar dos objectos que encontrasse no interior do veículo, o que é certo (e o próprio arguido confessou), mas não os elencou, não os definiu, e, sobretudo, não disse qual o seu valor (ainda que mínimo, ou ainda que presumido).
Por conseguinte, não ocorre o invocado erro de julgamento sobre a matéria de facto, nem a alegada violação do princípio in dubio pro reo, nem o (também invocado) vício do erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, al. c), do C. P. Penal).
Em segundo lugar, entende o recorrente que, não tendo sido produzida prova sobre a existência de bens ou objectos no interior do veículo, a tentativa não é punível, dada a inexistência do objecto essencial à consumação do crime (artigo 23º, nº 3, do Código Penal).
Com o devido respeito, nenhum fundamento válido existe nesta alegação, pois, como é da experiência comum, no interior dos veículos existem sempre objectos que podem ser retirados (até por serem facilmente removíveis, como por exemplo os tapetes).
Estabelece, efectivamente, o artigo 23º, nº 3, do Código Penal, que “a tentativa não é punível quando for manifesta a inaptidão do meio empregado pelo agente ou a inexistência do objecto essencial à consumação do crime”.
Só que, como muito bem esclarece o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Penal, Sumários e Notas das Lições”, Coimbra, 1976, pág. 27), “a inidoneidade do meio empregado ou a carência de objecto só excluem a punibilidade da tentativa quando reconhecíveis pela generalidade das pessoas normais e razoáveis, ou, se quisermos, dotadas de são entendimento”.
Ora, repete-se, dentro dos veículos, mais que não seja pelos seus componentes facilmente removíveis, existem sempre objectos que podem ser retirados.
Por conseguinte, objectivamente, segundo o critério da generalidade das pessoas, nunca é “manifesta” a ausência de objectos no interior de um veículo automóvel (qualquer que ele seja).
Isto é: ainda que no interior da viatura em causa não existissem quaisquer bens, a tentativa do crime de furto cometido pelo arguido sempre seria punível, já que a “inexistência do objecto” não é “manifesta” (conforme exigido pelo artigo 23º, nº 3, do Código Penal).
Não está configurada in casu, por isso, a existência de uma tentativa não punível (por inexistência de objecto), como pretende o recorrente.
Por último, alega o recorrente, ainda (e sempre) neste ponto (falta de prova sobre a existência de bens ou objectos no interior do veículo), que o tribunal a quo errou na qualificação jurídica, não sendo a conduta do arguido enquadrável no crime tipificado no artigo 204º, nº 1, al. b), do Código Penal.
Antes do mais, há que relembrar que o próprio arguido/recorrente admitiu que pretendia apoderar-se de objectos e de valores que encontrasse no interior da viatura em causa.
No fundo, o arguido confessou, na sua essencialidade, a prática dos factos que lhe são imputados, ou seja, que “estroncou” a porta da viatura (do lado do condutor) com uma gazua (que levou consigo para o efeito), que se pretendia introduzir nessa viatura (pertencente ao ofendido), e que visava retirar do interior da mesma os objectos e valores que lá existissem, bem sabendo que não lhe pertenciam e que agia contra a vontade do dono, e bem sabendo também que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Por outro lado, decorre das regras da experiência comum que o propósito do agente (qualquer um deles), ao “assaltar” um veículo (o interior do mesmo), é o de se apoderar do máximo de bens (e dos bens mais valiosos) que encontrar e lhe for possível levar.
Porém, e em nosso entender, o tribunal a quo deveria ter-se pronunciado, em concreto, sobre quais os bens que o arguido (ainda que presumivelmente, ou por mera aproximação), pretendia levar consigo, ou melhor, sobre quais os bens existentes no interior do veículo que o arguido podia ter retirado e levado consigo.
É que, e desde logo, a falta de indicação do valor dos objectos que o arguido tentou furtar (e, nesta perspectiva, merece ponderação e acolhimento o alegado na motivação do presente recurso), pode levar a que não possa haver qualificação do crime de furto, por aplicação do disposto no artigo 204º, nº 4, do Código Penal.
Esta falta, existente no texto da sentença, pode configurar o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (artigo 410º, nº 2, al. a), do C. P. Penal), vício que é de conhecimento oficioso.
Assim, se resultar do texto da sentença recorrida a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão proferida, este tribunal ad quem deve conhecer do vício.
Como bem esclarecem Simas Santos e Leal Henriques (in “Recursos em Processo Penal”, Editora Rei dos Livros, 7ª ed., 2008, págs. 72 e 73), ocorre o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando existe uma “lacuna no apuramento da matéria de facto indispensável para a decisão de direito, isto é, quando se chega à conclusão de que com os factos dados como provados não era possível atingir-se a decisão de direito a que se chegou, havendo assim um hiato nessa matéria que é preciso preencher”.
Verifica-se tal vício quando, no dizer dos mesmos autores (ob. e local citados), “a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a solução de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final”.
Ou, por palavras idênticas, e seguindo ainda os referidos autores e jurisprudência por eles citada (na mesma obra e local), existe insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando “se faz formulação incorrecta de um juízo, em que a conclusão extravasa as premissas, ou quando há omissão de pronúncia, pelo tribunal, sobre factos alegados ou resultantes da discussão da causa que sejam relevantes para a decisão”.
Em suma: há insuficiência da matéria de facto quando faltem factos provados que autorizem a ilação jurídica tirada.
Revertendo ao caso dos autos, o tribunal a quo deu como provado que, no dia 30-04-2010, o arguido, actuando consciente e voluntariamente (e sabendo a sua conduta proibida), “abeirou-se do veículo automóvel de marca Fiat, modelo Punto, de matrícula 83-HZ-42, pertencente a D, e estroncou a porta do lado do condutor com uma gazua, introduzindo-se, de seguida, no seu interior, altura em que foi surpreendido por dois soldados da GNR de Lagoa”.
Mais foi dado como provado que “o arguido agiu com a intenção de se apoderar e fazer seus os objectos que viesse a encontrar no interior do referido veículo automóvel, só não o tendo feito por circunstâncias alheias à sua vontade, bem sabendo que os mesmos não lhe pertenciam e que dessa forma actuava contra a vontade do seu legítimo proprietário”.
Constata-se, por conseguinte, que, além de não se referir o seu valor, nem sequer se mencionam os objectos que, encontrando-se no interior da viatura, podiam ter sido subtraídos pelo arguido.
Perante este vício, manifesto no texto da decisão recorrida, a solução que se nos apresentaria como a mais correcta, quer do ponto de vista técnico-jurídico, quer na perspectiva do respeito pelos princípios da legalidade e da tipicidade, seria determinar o reenvio do processo para novo julgamento, limitado este ao apuramento dos objectos, bem como ao respectivo valor, que o arguido tentou subtrair do veículo do ofendido.
Contudo, afigura-se-nos que esse novo julgamento nada alteraria (ou poderia alterar) relativamente à questão em apreço.
Na verdade, o ofendido (de nacionalidade holandesa e a residir na Holanda), cujo depoimento foi prescindido pelo Ministério Público, e partindo do princípio que algo de útil pudesse esclarecer, dificilmente poderá ser ouvido em audiência.
As testemunhas que presenciaram os factos (os militares da GNR que interceptaram o arguido) não anotaram (nem verificaram) quais os bens existentes no interior do veículo, não podendo esclarecer esse aspecto (e, obviamente, nada podem afirmar quanto ao valor de tais bens).
Por último, o arguido, em novas declarações, dirá o que bem entender (não está obrigado a falar com verdade), isto partindo do pressuposto (de verificação muito duvidosa) que o arguido, ele próprio, sabe quais os bens que pretendia retirar (ou o seu valor).
Em conclusão: não se justifica, à luz do exposto, ordenar o reenvio do processo ao tribunal recorrido para novo julgamento, limitado ao apuramento dos concretos objectos que o arguido quis subtrair, para deles se apoderar, do veículo automóvel do ofendido, bem como do respectivo valor quantificado.
Ou seja, e nos termos do disposto no artigo 426º, nº 1, do C. P. Penal, deve este tribunal ad quem decidir da causa, pois o reenvio do processo, nos termos e para os efeitos assinalados, não poderá produzir qualquer efeito útil (subsistindo sempre a dúvida, por ausência de prova, sobre quais os objectos que o arguido pretendia subtrair e qual o respectivo valor).
Aqui chegados, há que decidir da causa com os elementos disponíveis.
*
Não estando identificados os bens que o arguido tentou subtrair e, portanto, sendo desconhecido o respectivo valor, devem, a nosso ver, considerar-se os mesmos de valor diminuto, e, assim, o furto tem de ser desqualificado para o crime matricial, favorecendo-se, deste modo (e claramente), o arguido.
Não pode é, de modo algum, manter-se o enquadramento jurídico-penal efectuado na sentença revidenda (furto qualificado, tal como previsto nos artigos 203º, nº 1, e 204º, nº 1, al. b), do Código Penal).
Com efeito, dispõe o artigo 204º, nº 4, do Código Penal, que “não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de diminuto valor”.
Ora, desconhece-se o valor dos bens que o arguido pretendia (e poderia) subtrair, podendo tal valor ser diminuto, entendemos que a dúvida sobre se esse valor é ou não diminuto, porque se refere a um elemento de facto, tem de solucionar-se a favor do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo.
Assim, perante essa dúvida (perante a ausência de prova, e da possibilidade de prova, sobre quais os bens que o arguido tentou subtrair e sobre qual o seu valor), deve considerar-se serem os bens de “valor diminuto” (artigo 202º, al. c), do Código Penal).
Em consequência, e no caso dos autos, estamos face a uma tentativa de furto simples (cfr., neste mesmo sentido, o Ac. do S.T.J. de 12-11-1997, in C.J., Acs. do S.T.J., 1997, III, pág. 232).
A nosso ver, e como bem escreve o Prof. Figueiredo Dias (in “Direito Processual Penal”, Coimbra Editora, 1981, Volume I, pág. 215), relativamente ao “facto” sujeito a julgamento, o princípio in dubio pro reo “aplica-se sem qualquer limitação, e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude (…), de exclusão da culpa (…) e de exclusão da pena (…), bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos, a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido, e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado prova completa da circunstância favorável ao arguido”.
No entendimento do Prof. José de Faria Costa (in “Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial”, 1999, II, pág. 87), e a propósito da norma do nº 4 do artigo 204º do Código Penal, pode sustentar-se estarmos perante uma norma de desqualificação. Porém, prefere este Ilustre Professor “a ideia mais forte e talvez mais expressiva de que neste caso se está perante um contra-tipo. O tipo qualificador cede, nas circunstâncias, quando se faz apelo ao contra-tipo. Ou seja: desta maneira julgamos ser mais consequente a aceitação e a defesa de que se a coisa for de diminuto valor não chega sequer a preencher-se o tipo qualificador, remetendo-se o comportamento proibido para o tipo matricial”.
De todo o modo, e independentemente de procurarmos saber qual a caracterização dogmática mais correcta para o caso (como o destes autos) em que a coisa furtada (ou que foi objecto de tentativa de furto) tenha “diminuto valor”, existindo circunstâncias qualificativas do crime de furto, deve sempre, a nosso ver, e em caso de dúvida sobre tal vertente dos factos, decidir-se a favor do arguido.
Ou seja, não se conseguindo determinar o valor dos objectos subtraídos pelo arguido (ou que este tentou subtrair, com acontece in casu), tem de concluir-se, em benefício do arguido, que esse valor é “diminuto”, o que exclui a qualificação do furto (nos termos do disposto no artigo 204º, nº 4, do Código Penal).
Em jeito de síntese: desconhecendo-se o valor dos bens objecto de tentativa de furto, a dúvida sobre se o valor de tais bens é ou não diminuto, porque se refere a um elemento de facto, tem de solucionar-se a favor do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo, considerando-se ser, esse valor, “diminuto”, e, em consequência, existindo uma tentativa de furto simples.
É o que se verifica no caso sub judice.
Note-se, por último, que o procedimento criminal pela tentativa de furto simples depende de queixa, conforme previsto no nº 3 do artigo 203º do Código Penal, e in casu houve o cuidado de acautelar tal aspecto (o ofendido nestes autos declarou expressamente desejar procedimento criminal contra o arguido, como decorre de fls. 22).


b) Da escolha e da medida da pena.

Para além da questão relacionada com os factos e com a qualificação jurídica dos mesmos, o recorrente insurge-se contra a escolha e contra a medida da pena aplicada pelo crime de furto qualificado (2 anos e 9 meses de prisão).
Cumpre apreciar e decidir.
Como acima exposto, a conduta do arguido integra a autoria de um crime de furto simples (punível com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias), na forma tentada, sendo que, nesta forma (tentativa), o crime é punível com pena de prisão até 2 (dois) anos ou com pena de multa até 240 dias (cfr. o disposto nos artigos 23º, nº 2, e 73º, nº 1, als. a), b) e c), do Código Penal).
Na motivação do recurso, pugna o recorrente pela aplicação de uma pena não detentiva (prestação de trabalho a favor da comunidade, ou então pena de prisão suspensa na sua execução), e, de qualquer modo, pela redução da medida concreta da pena (de prisão efectiva) aplicada na sentença revidenda.
No seguimento da orientação inserta no artigo 70º do Código Penal, cabe, então, decidir se é de dar preferência à aplicação de pena não detentiva, em detrimento da pena de prisão efectiva, como pretende o recorrente.
Dispõe o artigo 70º do Código Penal que “se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o Tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Por outro lado, preceitua o artigo 40º do mesmo Código Penal que “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (nº 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” (nº 2).
São, pois, as finalidades de prevenção geral positiva de integração (protecção de bens jurídicos) e de prevenção especial (integração e socialização do agente) as que se devem ter em conta na escolha da pena.
Como, a propósito, ensina o Prof. Figueiredo Dias (in “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pág. 331), “a questão é a de saber se, por baixo da aparente multiplicidade e diversidade de critérios legais, se consegue ainda divisar um critério geral de escolha e de substituição da pena. Uma resposta afirmativa impõe-se. Um tal critério é, em toda a sua simplicidade, o seguinte: o tribunal dever preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa ou de substituição sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa ou a de substituição se revelem adequadas e suficientes à realização das finalidades da punição. O que vale por dizer que são finalidades exclusivamente preventivas, de prevenção especial e de prevenção geral, não finalidades de compensação da culpa, que justificam (e impõem) a preferência por uma pena alternativa ou por uma pena de substituição e a sua efectiva aplicação”.
Mais esclarece o mesmo Ilustre Professor (ob. agora citada, pág. 333): “em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa (…) quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária, ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquelas penas; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração”.
Quanto à prevenção geral esta, na opinião do mesmo autor (ob. e local citados), “deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico, como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa só não será aplicada se a execução da prisão se mostrar indispensável para que não seja posta irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”.
Alega o recorrente, nesta sede, que a pena de prisão aplicada deve ser substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade, conforme disposto no artigo 58º, nº 1, do Código Penal.
Estabelece esse artigo 58º, nº 1, do Código Penal, que “se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidade de punição”.
Como a pena de prisão a aplicar ao arguido, no caso concreto destes autos, não pode ser superior a dois anos (limite máximo da moldura penal abstracta prevista para o crime de furto simples, na forma tentada), resulta evidente que é permitido, em abstracto, ver a pena de prisão a aplicar substituída por prestação de trabalho a favor da comunidade.
Importa agora analisar se, em concreto, se verificam os pressupostos para substituir a pena de prisão por prestação de trabalho a favor a comunidade.
De acordo com o preceito legal citado, o tribunal substitui a pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir que por esse meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Para definir quais são as finalidades da punição, tem de atender-se ao preceituado no artigo 40º, nº 1, do Código Penal, segundo o qual a aplicação de penas visa “a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade”.
Assim, devem ser tidas em conta, para a questão que ora nos ocupa, as finalidades de protecção de bens jurídicos e de reintegração do agente.
Na síntese feita por Paulo Pinto de Albuquerque (in “Comentário do Código Penal”, Universidade Católica Editora, 2008, pág. 205, nota nº 5 ao artigo 58º), o critério de aplicação da prestação de trabalho a favor da comunidade é “exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve apurar se esta pena é adequada à satisfação das necessidades de prevenção especial de socialização ou de prevenção geral que resultem do caso, que constituem as finalidades da punição”.
No que concerne às exigências de prevenção geral, importa ponderar as necessidades prementes que se fazem sentir no crime em causa, face ao alarmante número de crimes de furto diariamente praticados em Portugal.
Assumem, pois, particular relevo as necessidades de prevenção geral, não podendo esquecer-se a onda de furtos que perpassa os tempos actuais, espelhada também nos “assaltos” a veículos automóveis.
Consideram-se igualmente elevadas as necessidades de prevenção especial, dados os antecedentes criminais do arguido.
Na verdade, o arguido possui os seguintes antecedentes criminais:
- Uma condenação (em Maio de 1997), pela prática, em 27-02-1996, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1, e 204º, nº 1, al. b), e nº 2, al. e), do Código Penal, na pena de dois anos e seis meses de prisão;
- Uma condenação (em Janeiro de 2001), pela prática, em 09-01-2001, de um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203º do Código Penal, na pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 2 anos;
- Uma condenação (em Abril de 2008), pela prática, em 15-04-2006, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 204º, 22º e 23º, todos do Código Penal, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 3,00;
- Uma condenação (em Outubro de 2009), pela prática, em 16-01-2009, de um crime de furto qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203º, nº 1, 204 º, nº 1, al. b), 22º e 23º, todos do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e sob a condição de entrega da quantia de 1.500 euros, no prazo de 6 meses, à “Associação Acreditar”.
- Uma condenação (em Maio de 2011), pela prática, em 06-11-2008, de um crime de furto qualificado, p. e p. pelo artigo 204º do Código Penal, e de um crime de burla informática e nas comunicações, p. e p. pelo artigo 221º do mesmo Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e sob a condição de o arguido fazer prova de ter procedido ao pagamento da quantia de 700 euros à ofendida, no prazo de seis meses.
Ponderando estas anteriores condenações do arguido, todas elas, no essencial, pela prática de crimes de furto, e vista a sua larga extensão no tempo (o que revela uma clara propensão do arguido para a prática do crime de furto), é de concluir que o arguido anda longe de pautar a sua conduta de um modo responsável e socialmente aceitável.
Consequentemente, afigura-se-nos ineficaz para a realização das finalidades da punição, dada a necessidade de prevenir o cometimento de futuros crimes, a substituição da pena de prisão por pena de prestação de trabalho a favor da comunidade (tal como previsto no artigo 58º do Código Penal).
Consideramos, pois, que só a pena de prisão (efectiva ou, no mínimo, suspensa na sua execução - e, mais à frente, vamos ponderar sobre esta última possibilidade), permite concretizar, face aos antecedentes criminais do arguido, as expectativas comunitárias na reafirmação da validade das normas jurídicas violadas.
Por outro lado, só assim o arguido será certamente capaz de retirar as devidas conclusões, orientando-se para o futuro sem praticar novos crimes.
Como bem refere o Prof. Figueiredo Dias (in “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, pág. 371), a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade deve ser aplicada sempre que seja adequada e suficiente “à realização das finalidades de prevenção de socialização, posto que a ela se não oponham razões de salvaguarda do mínimo de prevenção de integração, sob a forma de tutela do ordenamento jurídico”.
A este mesmo propósito, escreve a Prof.ª Anabela Miranda Rodrigues (in “Critérios de Escolha de Penas de Substituição no Código Penal”, BFDUC, 1988, pág. 30) que, “desde que imposta ou aconselhada, face às exigências de prevenção especial de socialização, só não será de aplicar a pena alternativa não detentiva se a pena de prisão se mostrar indispensável para que não seja irremediavelmente posta em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e da estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias”.
Efectivamente, e como salienta o Ac. da R.C. de 10-03-2004 (Processo nº 4101/03, in www.dgsi.pt), a pena de prestação de trabalho a favor da comunidade só se justifica (e até se impõe) quando, “por um lado, o exige a prevenção especial de socialização, e, por outro, não se põe em causa o mínimo exigido pela protecção dos bens jurídicos em presença. Esta pena visa a realização social do condenado. Ao contrário de todas as outras, não tem o fim específico de punição pessoal negativa. Isto pressupõe, por um lado, que os factos praticados não exijam uma verdadeira punição de carácter pessoal e, por outro, que o agente esteja em condições pessoais de aceitar e beneficiar do apoio social que o trabalho confere”.
Tendo presentes estas considerações, afigura-se-nos que, em concreto, e face ao comportamento do arguido, manifestado quer na prática do crime em causa nestes autos quer na prática dos anteriores crimes (da mesma natureza), não se justifica a substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade, porquanto esta pena não se revela adequada ao restabelecimento da paz jurídica, afectada pela prática do crime, não oferecendo um nível satisfatório de estabilização das expectativas da comunidade na validade das normas infringidas.
Deste modo, improcede a pretensão do recorrente de substituição da pena de prisão por prestação de trabalho a favor da comunidade.
*
Cabe determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido, dentro duma moldura penal abstracta que vai até dois anos de prisão.
O artigo 71º do Código Penal estipula que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” (nº 1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (nº 2 do mesmo dispositivo).
Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.
O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.
O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.
Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.
Como escreve Claus Roxin, em passagens perfeitamente consonantes com os princípios basilares do nosso direito penal (in “Derecho Penal - Parte General”, Tomo I, Tradução da 2ª edição Alemã e notas por Diego-Manuel Luzón Penã, Miguel Díaz Y García Conlledo e Javier de Vicente Remesal, Civitas, págs. 99 e 100), “a pena não pode ultrapassar na sua duração a medida da culpabilidade mesmo que interesses de tratamento, de segurança ou de intimidação revelem como desenlace uma detenção mais prolongada. (…) A sensação de justiça, à qual corresponde um grande significado para a estabilização da consciência jurídico-penal, exige que ninguém possa ser castigado mais duramente do que aquilo que merece; e “merecida” é só uma pena de acordo com a culpabilidade”.
Mais acrescenta o mesmo autor (ob. citada, pág. 101): “certamente a pena não pode ultrapassar a medida da culpabilidade, mas pode não alcançá-la sempre que isso seja permitido pelo fim preventivo. Nele radica uma diferença decisiva frente à teoria da retribuição, que também limita a pena pela medida da culpabilidade, mas que reclama em todo o caso que a dita pena àquela corresponda, com independência de toda a necessidade preventiva”.
Por fim, salienta ainda Claus Roxin (ob. citada, pág. 103) que “a pena serve os fins de prevenção especial e geral. Limita-se na sua magnitude pela medida da culpabilidade, mas pode fixar-se abaixo deste limite em tanto quanto o achem necessário as exigências preventivas especiais e a ele não se oponham as exigências mínimas preventivas gerais”.
Passemos, visto o caso em apreço nestes autos, à concretização destes enunciados, sendo certo que, para o efeito, o tribunal deverá atender “a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele” (artigo 71, nº 2, do Código Penal).
Assim, tem de ponderar-se que:
- A gravidade da violação jurídica cometida pelo arguido apresenta-se com pequena expressão, tendo em conta o valor “diminuto” dos bens que o mesmo tentou subtrair;
- O modo de execução foi o corrente neste tipo de criminalidade;
- É acentuado o conhecimento e a intensidade da vontade no dolo (directo) revelado;
- O arguido, nos anos de 1997 até 2011, regista cinco condenações, todas elas pela prática de crimes de furto (sendo a última também pela prática de um crime de burla informática e nas comunicações), o que revela uma acentuada tendência para a prática de crimes contra o património;
- Os factos ocorreram há cerca de 2 anos.
Atendendo a todos estes descritos elementos, afigura-se-nos como adequado à situação concreta aplicar ao arguido uma pena de prisão situada a meio da moldura penal abstracta (da prisão) do crime em questão.
Ou seja, temos por adequado aplicar ao arguido a pena de 1 (um) ano de prisão.
Assim, nesta precisa medida, e nesta vertente, é de julgar procedente o presente recurso.
Posto o que precede, entendemos que o recurso merece parcial provimento, reduzindo-se a medida concreta da pena de prisão aplicada.
*
O recorrente, no recurso interposto, discute ainda o decidido pelo tribunal a quo na parte em que a pena pelo mesmo aplicada é de prisão efectiva, entendendo, pelas diversas razões aduzidas na motivação do recurso e respectivas conclusões, que deverá haver lugar à suspensão da execução da pena de prisão.
Cumpre decidir.
Dispõe o artigo 50º, nº 1, do Código Penal, que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição”.
Como é sabido, não são considerações de culpa que interferem na decisão que agora nos ocupa, mas apenas razões ligadas às finalidades preventivas da punição, sejam as de prevenção geral positiva ou de integração, sejam as de prevenção especial de socialização, estas acentuadamente tidas em conta no instituto em análise, desde que satisfeitas as exigências de prevenção geral, ligadas à necessidade de correspondência às expectativas da comunidade na manutenção da validade das normas violadas.
A finalidade político-criminal que a lei visa com o instituto da suspensão é clara: o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes, e não qualquer correcção ou melhora das concepções daquele sobre a vida e o mundo. É em suma, como se exprime Zift, uma questão de «legalidade» e não de «moralidade» que aqui está em causa. Ou, como porventura será preferível dizer, decisivo é aqui o «conteúdo mínimo» da ideia de socialização, traduzida na «prevenção da reincidência» (cfr. Prof. Figueiredo Dias, in “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, Lisboa, 1993, págs. 343 e 344).
Como bem esclarece este Ilustre Professor (ob. citada, pág. 344), “apesar da conclusão do tribunal por um prognóstico favorável - à luz, consequentemente, de considerações exclusivas de prevenção especial de socialização -, a suspensão da execução da prisão não deverá ser decretada se a ela se opuserem as necessidades de reprovação e prevenção do crime (...). Estão aqui em questão não quaisquer considerações de culpa, mas exclusivamente considerações de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico. Só por estas exigências se limita - mas por elas se limita sempre - o valor da socialização em liberdade que ilumina o instituto ora em análise”.
Por outro lado, é conveniente esclarecer que o que está em causa no instituto da suspensão da execução da pena não é qualquer «certeza», mas a esperança fundada de que a socialização em liberdade possa ser conseguida. O tribunal deve correr risco “prudencial” (fundado e calculado) sobre a manutenção do agente em liberdade. Existindo, porém, razões sérias para pôr em causa a capacidade do agente de não repetir crimes, se for deixado em liberdade, o juízo de prognose deve ser desfavorável e a suspensão negada (cfr. ainda o Prof. Figueiredo Dias, ob. citada, págs. 344 e 345).
No referido juízo de prognose, há que ter em conta a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a conduta anterior e posterior ao facto punível e as circunstâncias deste mesmo facto.
No caso concreto, os antecedentes criminais do arguido só podem impressionar negativamente, revelando uma personalidade acentuadamente desconforme aos valores que o direito penal pretende acautelar.
Por outro lado, não existe dado algum que permita inferir uma evolução minimamente positiva em relação ao projecto de vida do arguido (no tocante, pelo menos, ao afastamento da prática de crimes de furto).
Note-se, nesta perspectiva, que o arguido foi já condenado, por três vezes, em penas de prisão com execução suspensa, e que, além disso, praticou os factos destes autos (em Abril de 2010) no decurso de um desses períodos de suspensão da execução da pena (o arguido tinha sofrido uma condenação, em Outubro de 2009, pela prática, em 16-01-2009, de um crime de furto qualificado, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período).
Neste circunstancialismo, afigura-se-nos que a factualidade apurada não é de molde a justificar como razoável um juízo de prognose positiva no sentido de que a censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para realizarem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, não sendo, assim, de aplicar o instituto da suspensão da execução da pena.
Por conseguinte, e nesta vertente, é de improceder o recurso.
Posto tudo o que precede, o recurso interposto pelo arguido é parcialmente de proceder (condenando-se o arguido, tão-só, pela prática de um crime de furto simples, na forma tentada, na pena de um ano de prisão efectiva).



III - DECISÃO.

Nos termos expostos, e julgando-se parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido A, decide-se:
- Alterar a subsunção jurídico-normativa do crime apurado nestes autos, que passará agora a traduzir-se na autoria material de um crime de furto simples, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 203º, nºs 1 e 2, 22º, 23º e 73º, todos do Código Penal.
- Nessa conformidade, e em função deste novo quadro incriminador, condenar o arguido na pena de 1 (um) ano de prisão.
No mais, mantém-se o decidido na sentença revidenda.
Sem tributação, atendendo a que foi dado parcial provimento ao recurso.
*
Texto processado e integralmente revisto pelo relator.

Évora, 12 de Junho de 2012.

João Manuel Monteiro Amaro
Maria de Fátima Mata-Mouros

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