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terça-feira, 9 de abril de 2013

PROVA PROIBIDA TELEFONE ALTA VOZ AMEAÇA INJÚRIA - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - 06/03/2013


Acórdãos TRC
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
119/11.2GDAND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALICE SANTOS
Descritores: PROVA PROIBIDA
TELEFONE
ALTA VOZ
AMEAÇA
INJÚRIA

Data do Acordão: 06-03-2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: ANADIA – JUÍZO DE INSTÂNCIA CRIMINAL
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 125º E 126º CPP

Sumário: Não constitui prova proibida a divulgação de uma conversa telefónica pelo sistema de alta voz quando essa precisa comunicação telefónica é o meio utilizado para cometer um crime de ameaça ou injúria e a vítima consinta, de modo expresso ou implícito, na sua divulgação a terceiros como forma de se proteger de tais ameaças ou injúrias, sendo por essa razão permitido o depoimento de quem a ouviu.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra.


No processo comum, acima identificado, após a realização de audiência de discussão e julgamento foi proferido acórdão que:
- Absolveu o arguido A... da prática do crime de violência doméstica de que vinha acusado.


Inconformado com esta decisão, dela interpôs recurso o Ministério Público, sendo que na respectiva motivação concluiu:

1. Vem o presente recurso como manifestação do inconformismo do Ministério Público quanto à sentença proferida pela Mma. Juíza a quo, entendendo dever o meio de obtenção de prova (audição de conversações telefónicas pelo uso do sistema de alta voz), ser considerado válido e, consequentemente, dar-se como provados os factos descritos na acusação dados como não provados por valorização dos depoimentos das testemunhas cujo conhecimento foi obtido por aquela via, condenando-se o arguido pelo aludido crime de violência doméstica, bem como dever a sentença recorrida ser declarada nulo por falta de fundamentação.

2. Quanto à nulidade da sentença por falta de fundamentação, entendemos que não resulta da mesma de que forma se verificou a aludida intromissão nas telecomunicações, não explicitando de forma suficiente as razões pelas quais assim o é, com a consequente declaração de nulidade do meio de obtenção de prova, não bastando a referência ao citado nos Acórdãos aí referidos.

3. Quanto à validade do meio de obtenção de prova, que pugnamos, cumpre referir que, na nossa óptica, a actuação da assistente cominada com tal nulidade, não constitui qualquer intromissão objectiva das telecomunicações.

4. A tutela constitucional conferida às telecomunicações justifica-se pela necessidade de defesa do sigilo das comunicações e da privacidade, procurando evitar-se a intromissão arbitrária e indesejada de terceiros, sem consentimento de qualquer dos interlocutores (vide Manuel da Costa Andrade).

5. Numa conversação telefónica, ambos os interlocutores são portadores do bem jurídico subjacente à tutela conferida às telecomunicações, pelo que qualquer um deles tem a total disponibilidade do aparelho em causa, podendo usá-lo livremente nas suas funções, não podendo assim ser garantida a total privacidade, o que cada um tem de ter consciência e com o que se tem de conformar.

6. O sistema de alta voz trata-se do altifalante por onde é emitido o som para o exterior, que se processa por ondas sonoras, ocorrendo a exteriorização do som, pelo que nada mais se trata do que o amplificar.

7. Nenhum elemento técnico é adicionado ao telefone, ilicitamente, permitindo a captação, audição ou gravação da chamada telefónica.

8. Tal situação não é diferente daquela em que um interlocutor se limita a desviar o telefone, permitindo que terceiros, com a sua autorização, ouçam a conversa em causa, tido como válido e lícito.

9. O aresto do Tribunal da Relação de Coimbra (usado para fundamentar a sentença recorrida) entende que a matéria que tratamos poderá traduzir-se na prática do crime p. e p. pelo art. 194.º do CP, cumprindo aqui apelar aos ensinamentos do Prof. Costa Andrade, que refere que “Já será típica a conduta de quem, servindo-se de um segundo auscultador, acompanhar a conversação telefónica, sem conhecimento nem consentimento de nenhum dos interlocutores”, pelo que aquele Acórdão acaba por apreciar de forma errónea o caso, uma vez que, ao contrário do que diz, a actuação da assistente sempre estaria legitimada, sem necessidade de fazer apelo a qualquer causa de justificação.

10. Não é, do nosso ponto de vista, razoável, pedir a alguém que, estando numa posição em que está a ser molestada verbalmente, de forma recorrente, se remeta à inacção, não procurando qualquer forma de afastar a agressão de que está a ser alvo.

11. A assistente B... está, no momento em que actua, a ser alvo da prática de um crime, que a atinge na sua honra e consideração, sendo este um valor superior àquele que se pretende salvaguardar, sendo de todo razoável que se imponha ao arguido o sacrifício do seu direito, de acordo com um critério de exigibilidade.

12. Sendo tal sacrifício reconhecido, torna lícita a actuação da assistente, concluindo, indiscutivelmente, pela validade da utilização do sistema de alta voz, sob pena de se instituir um sistema de pura impunidade para quem pratica o crime e de total desprotecção para quem é vítima do mesmo.

13. Ainda que assim não se entenda, consideramos que a posição mais ajustada é a que deriva, quer do voto de vencido do Ex.mo Senhor Conselheiro, o Dr. Leal-Henriques, vertido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, quer do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12.06.2012.

14. A sentença recorrida não apreciou devidamente os contornos da aludida nulidade do meio de obtenção de prova, o qual se deverá ter como válido, e consequentemente, deveria ter valorado devidamente os depoimentos das testemunhas cujo conhecimento se estribam naquele meio, dando-se desta forma como provados os factos constantes dos pontos 5. a 18. dos factos não provados elencados naquela sentença.

15. A sentença recorrida violou os arts. 97.º, n.ºs 1, al. a), 4, e 5, 374.º, n.ºs 1, e 2, e 379.º, n.º 1, al. a), todos do CPP, bem como os arts. 32.º, n.º 8, e 34.º, n.º 4, da CRP, e os arts. 125.º e 126.º, n.º 3, do CPP.


Termos em que,

Declarando a nulidade da sentença por falta de fundamentação; e

Revogando a sentença recorrida, substituindo-a por outra que considere válido o meio de obtenção de prova utilizado, e, consequentemente, validando os depoimentos das testemunhas que naquele meio se estribam, dando como provados os pontos 5. a 18. dos factos não provados;

Farão V. Ex.cias, como sempre, JUSTIÇA!

Respondeu o arguido A..., manifestando-se pela improcedência do recurso, defendendo a manutenção da decisão recorrida.

Nesta instância o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta, no sentido da procedência do recurso.

Colhidos os vistos legais e efectuada a conferência, cumpre agora decidir.

O recurso é restrito à matéria de direito, sem prejuízo do conhecimento dos vícios constantes do art 410 nº 2 do Código Processo Penal.

Da discussão da causa resultaram provados os factos seguintes constantes da decisão recorrida:
1. O arguido e B... casaram entre si em 12/08/2002, tendo-se divorciado a 28/09/2010, sendo que já se encontravam separados de facto desde 23/12/2009;
2. Dessa união nasceu, a 12/09/2005, …;
3. Desde a separação do casal, e aproveitando os contactos com a ofendida quando vai buscar a filha de ambos a casa da mesma, o arguido molesta aquela verbalmente, sobretudo através de chamadas telefónicas e/ou mensagens escritas, sempre para o telemóvel da mesma com o nº ...;
4. No dia 2 de Maio de 2010, cerca das 14h30m, o arguido dirigiu-se à residência de B..., sita no … Anadia, para aí ir levar a filha de ambos;
5. Encontrando-se o arguido e B... à entrada do prédio onde se situa a referida habitação, juntamente com a filha de ambos;
6. Ainda nesse mesmo dia (2 de Maio de 2010), cerca das 20h30m, o arguido, fazendo-se passar por outra pessoa, com a identidade … , seu amigo, estabeleceu uma conversação com a ofendida, através do serviço Messenger da internet;
7. No decurso dessa conversação, que o arguido estabeleceu através do endereço de email por si criado e usado … e a ofendida através do seu endereço de e-mail … , aquele escreveu e dirigiu a esta, entre outras, as seguintes palavras/mensagens:
- pelas 0:03:51 do dia 3/05/2010: XEGOU O FIM DESTA AVENTURA… muita gente finalmente e felizmente descobriu kem realmente és…uma verdadeira MENTIROSA,OUSADA,FALSA E LADRA, e que para tudo necessita de usar o seu escudo… confio verdadeiramente no meu amigo, pois uma porta ao murro nuncalhe provocaria 50 pontos cravados no corpo jamais usaria tal forma para projudicar a sua filha, nunca partiria um vidro na presença da sua filha ou descia ao teu nível, ganha vergonha nessa cara é uma simples opinião xorar, sequencia de toda a história segundo a palavras VERDADEIRAS do meu amigo…..cresce e vaite curar ,n vales mesmo nada já te conheco a uns anos e nunca pensei k fosses assim, deixa o ser feliz pois agora sim é a pessoa feliz que conheci no ciclo…;
- pelas 0:05:16 do dia 3/05/2010: porca;
- pelas 0:14:19 do dia 3/05/2010: minha amiga n tenho nada a ver apenas confio no meu amigo e n passas de uma mentirosa;
- pelas 0:14:39 do dia 3/05/2010: ladra k até o cartao da namorada lhe roubaste;
- pelas 0:21:48 do dia 3/05/2010: es mesmo porca não da hipótese;
- pelas 0:23:14 do dia 3/05/2010: segundo sei nem com o sermao do juiz ganhas
vergonha;
- pelas 0:25:02 do dia 3/05/2010: pois a seres uma miserável e possivelmente
a ……………………………………..é segredo xiu;
- pelas 0:26:21 do dia 3/05/2010: va xau e daki a uns meses voltamos a conversa com a merda k vais fazendo……………………..;
- pelas 0:28:32 do dia 3/05/2010: gostavas do meu ordenado a sustentar te????????;
- pelas 0:29:25 do dia 3/05/2010: era bom n era???????.
8. Pelo mesmo meio, o arguido voltou a contactar a ofendida pelas 23:18:55 do dia 08/08/2011, escrevendo e dirigindo-lhe a seguinte frase: ok fika entao cínica;
9. A ofendida recebeu e leu todas essas mensagens na sua residência;
10. O arguido, desde a separação de facto, enviou também à ofendida as seguintes mensagens escritas, do seu telemóvel com o n.º … : vais pagar… (04.09.2011, 19h45); A tua conversa e de alguem doente cura.te. faz a tua vida e deixa-me em paz (08.09.2010, 18h29); Honestidade e coisa que te falta (08.09.2010, 21h29); Ainda bem que e assim a nada e teu. A ti nada te custou. A vida a ti nada te diz (08.09.2010, 21h40); Muito. Essa casa nada tinha. Muito dinheiro ganhei (08.09.2010, 21h43); Porca es tu. Casacos, escovas, chinelos, tudo sujo. Unhas por cortar e encravadas, Roupa vomitada!!! Que grande mentirosa não usa nem nunca iusou a roupa que envias. Os problemas que tenho são que me crias.te Como ser humano es um zero. (12.10.2010, 12h49); Mas escuta la tu para esconderes o meu xeiro tambem usas perfume em vez de agua? Hepa se não tens agua e gas em casa avisa.me que eu comesso a dar banho a minha filha, agora mudar lhes de roupa sem lhe fazer a higiene isso é o ke. De kem se preocupa não me parece (15.10.2010, 21h17); Es uma triste ao cimo da terra. Não me chateies (23.12.2010, 00h01);
11. Tendo-lhe enviado, em 13.09.2011, às 13h53m, a seguinte mensagem do seu telemóvel com o n.º … : E favor de avisar as pessoas para desocuparem o terreno., caso não saiam a bem vão sair a mal, o terreno é meu n de contribuinte. Vou mandar limpalo e meu faço o que quero;
12. Tais mensagens foram todas recebidas e lidas pela ofendida através do seu telemóvel nº ..., Anadia, nos dias em que, respectiva e sucessivamente, foram enviadas, e com elas pretendia o arguido ofender, intimidar e perturbar a paz e o sossego daquela, o que conseguiu;
13. Ao actuar da forma e nas situações descritas, o arguido sabia que estava a maltratar psicologicamente de forma reiterada a sua ex-mulher e mãe da sua filha, e a violar os deveres de respeito e solidariedade que sabia lhe incumbirem como seu ex-marido e pai da sua filha, querendo agir da forma por que o fez;
14. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido.
*
Não se provaram quaisquer outros factos para além ou em contradição com os que foram dados como assentes, nomeadamente que:
1. No dia 2 de Maio de 2010, o arguido e B... iniciaram uma discussão, no decurso da qual aquela disse para o arguido: “respeito tens que ter tu por ela (filha),quando trazes para aqui a tua amante”;
2. Ao ouvir tais palavras o arguido, que, entretanto, já se encontrava junto do seu automóvel, voltou para trás e encaminhou-se na direcção da B..., com a intenção de a molestar fisicamente;
3. Temendo pela sua integridade física, esta última pegou na filha ... e dirigiu-se para o hall de entrada do prédio onde reside, onde entrou, fechando a respectiva porta;
4. Acto contínuo, o arguido, para tentar atingir a ofendida na sua integridade física, desferiu um soco no vidro da porta de entrada do prédio, partindo-o, mas não logrando alcançar aquela;
5. No dia 7 de Agosto de 2010, cerca das 20h30m, o arguido ligou à ofendida do seu telemóvel com o n.º … , e disse-lhe: o que é que tu queres, és uma fraca, uma ordinária, uma puta uma cabra, uma ladra, uma cobarde, tu e os teus pais são todos uns ladrões, pelo que aquela desligou;
6. De seguida, o arguido voltou a telefonar-lhe e, perante o silêncio da ofendida ao atender, disse-lhe: então agora não respondem, não dizem nada, cobardes, são todos uns ladrões, tu e os teus pais;
7. A ofendida recebeu esse telefonema e ouviu essas palavras proferidas pelo arguido quando se encontrava em casa dos seus pais, sita na Rua … , Anadia;
8. No dia 9 de Junho de 2011, cerca das 13h10m, o arguido, do seu telemóvel com o n.º … , ligou para o telemóvel da ofendida, na sequência de um telefonema desta dizendo-lhe para não ir buscar a filha, e disse-lhe: és uma otária, uma puta de merda;
9. Cerca das 21h57m do mesmo dia, o arguido ligou-lhe novamente, dizendo-lhe: olha uma coisa, o feriado municipal não pertence ao pai, só os feriados nacionais. Como é que é vais-me entregar a … ou não? Não tens nada para dizer, não consegues falar nada? É com o teu advogado que vais falar, ó minha puta de merda;
10. A ofendida recebeu e ouviu o primeiro daqueles telefonemas em sua casa e o segundo em casa de uma vizinha dos seus pais, sita na Rua … Anadia;
11. No dia 10 de Junho de 2011, cerca das 19h50m, o arguido foi buscar a filha de ambos a casa da ofendida, tendo esta levado um medicamento cujo rótulo, por ter caído o original, foi substituído por um autocolante com indicações manuscritas;
12. Nesse dia, após a ofendida ter deixado a filha com o arguido e entrado no seu apartamento, aquele, mantendo-se dentro da sua viatura com a menor, ligou àquela, do seu telemóvel com o n.º … , perguntando-lhe: as receitas médicas para eu pagar?, tendo-lhe a mesma retorquido que já as tinha enviado por correio;
13. Acto contínuo, em tom alto, de forma agressiva e na presença da filha, o arguido disse à ofendida: não recebo nada por correio, não dou medicamentos sem rótulo à minha filha! Não tem rótulo, não tem rótulo, uma merda qualquer! Tás a ouvir? Não tás a ouvir? Tu és uma gozona do carago, uma mentirosa, anda cá abaixo e fala comigo, aldrabona do carago! És uma mentirosa! És uma mentirosa de merda, é o que tu és!.
14. No dia 7 de Julho de 2011, cerca das 19h44m, o arguido ligou à ofendida, do seu telemóvel com o n.º x..., dizendo-lhe: não consegues ler, mas consegues ouvir ao menos! Tu é que tens que ter respeito, tas a gozar com quem? A gente vai falar um dia destes mas é no tribunal em Oliveira do Bairro. Espeto-te dois estaladões nesse focinho, sua puta de merda, sua vaca;
15. A ofendida recebeu esse telefonema e ouviu essas palavras proferidas pelo arguido quando se encontrava em casa dos seus pais, sita na Rua … ;
16. No dia 17 de Julho de 2011, cerca das 11h00, o arguido foi buscar a filha a casa da ofendida, sendo que, quando esta já se encontrava no seu apartamento e aquele dentro do carro com a ..., ligou-lhe do seu telemóvel com o n.º … , dizendo-lhe que entregaria a filha dia 17 de Agosto, tendo-o a ofendida advertido que a filha tinha uma consulta no dia 1 de Agosto, pelo que teria de a entregar no dia anterior, ao que o arguido respondeu: tá bem, tá bem, eu levo! Dia 17, ó minha puta de merda!;
17. No dia 24 de Agosto de 2011, cerca das 22h00, o arguido ligou à ofendida do seu telemóvel com o n.º … , dizendo-lhe: tas de férias a puta que te pariu é que estás de férias; vai para a puta que te há-de parir;
18. A ofendida recebeu esse telefonema e ouviu essas palavras proferidas pelo arguido quando se encontrava em sua casa de uma sua prima, sita na Rua … .
*
Motivação da matéria de facto
O tribunal formou a sua convicção sobre a factualidade provada com base nos documentos juntos aos autos a fls. 31, 32, 35 e 36 (certidões dos assento de nascimento da assistente e da sua filha ...), fls. 61 a 64 (print do Messenger), fls. 147 a 151 (informação da Microsoft), fls. 175 e 176 (informação da PT), fls. 199, 200, 204 e 269 (autos de transcrição), fls. 265 (informação da PT), fls. 298 (informação) e com base na prova produzida em julgamento, analisada de forma crítica e ponderada e de acordo com as regras da experiência, nos termos do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Relativamente aos factos dados como provados, o tribunal teve em conta os depoimentos das testemunhas … , pais da assistente B..., que referiram ao tribunal que a sua filha esteve casada com o arguido, esclarecendo que dessa união nasceu a sua neta, acrescentando que o casal se separou na altura do Natal de 2009, vindo posteriormente a divorciar-se.
Por outro lado, o tribunal atendeu ao depoimento da testemunha … , que pelo facto de ser vizinha da assistente demonstrou ter conhecimento dos factos em causa nos presentes autos, esclarecendo que ouviu várias vezes o arguido maltratar a assistente, dirigindo-lhe expressões ofensivas da honra e consideração da assistente.
Relativamente aos antecedentes criminais considerou-se o certificado de registo criminal junto aos autos a fls. 360.
Quanto aos factos não provados não foi feita prova para que o tribunal os pudesse dar como verificados.
Efectivamente, o arguido não esteve presente no julgamento, autorizando a realização do julgamento na sua ausência.
Por sua vez, a ofendida B... também não quis prestar declarações, usando do direito previsto no artigo 134º, nº 1, alínea b), do Código de Processo Penal.
Por outro lado, as restantes testemunhas ouvidas em julgamento tomaram
conhecimentos dos factos imputados ao arguido através do acesso a conversações telefónicas ouvidas em sistema de “alta voz”.
Ora, na esteira do entendimento perfilhado pelo Tribunal da Relação de Coimbra, de 28.10.2008 e do Acórdão do STJ de 07.02.2001 (disponíveis em www.dgsi.pt) consideramos que a prova assim obtida é nula.
Efectivamente, apesar de uma das competências atribuídas ao Estado ser a realização da justiça, na qual se inclui a punição dos autores de crimes, “a busca da verdade na realização desta tarefa não pode ser obtida a qualquer preço, havendo que ponderar sempre os direitos fundamentais e a medida da sua afectação”.(cfr. Acórdão da Relação de Coimbra supra citado),
Nos termos do artigo 125º do Código de Processo Penal “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei” – trata-se do princípio da legalidade da prova cuja regra geral consiste na admissibilidade de quaisquer provas em processo penal. Na segunda parte da referida disposição legal exceptuam-se as provas que são proibidas por lei. A este respeito há que apontar as que forem obtidas pelos métodos enumerados no artigo 126º do Código de Processo Penal. Na verdade, a lei estabelece proibições de prova que constituem limites à
descoberta da verdade, isto é, são obstáculos ao apuramento dos factos que constituem o objecto do processo (cfr. Prof. Costa Andrade, Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal, pág. 83).
O artigo 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa dispõe que são nulas todas as provas obtidas mediante abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência e nas telecomunicações.
Por sua vez, estabelece o artigo 126º, nº 3, do Código de Processo Penal que ressalvados os casos previstos na lei, são nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
Dispõe o artigo 34º, nº 1, da Lei Fundamental, que o domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis, proibindo o seu nº 4 a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvo os casos previstos na lei em matéria de processo criminal.
No caso dos autos, resulta dos depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento que o conhecimento que tiveram dos factos imputados ao arguido foi através do sistema de “alta voz” que a assistente utilizou no seu telemóvel quando recebia telefonemas do arguido.
Ou seja, foi a assistente que, sem o consentimento do arguido, manteve conversações com o sistema de alta voz do aparelho que utilizava accionado, proporcionando a sua audição por terceiros. “A função alta voz, que hoje vulgarmente até nos telemóveis menos sofisticados, é um meio técnico de audição. Por esta razão, o acesso a uma conversação telefónica através dela, integra o conceito jurídico-penal de intromissão (objectiva) no conteúdo de telecomunicações (cfr. Acórdão do STJ, de 07.02.2001)”.
Deste modo, constatamos que as testemunhas ouvidas tiveram conhecimento dos factos que relataram em audiência porque passivamente os ouviram, mas tal audição apenas foi possível porque uma outra pessoa – a assistente – activou, sem o consentimento do arguido, o sistema de alta voz do telemóvel usado na comunicação, o que constitui uma intromissão em telecomunicações.
Ora, tal meio de obtenção de prova não pode deixar de ser considerado nulo, atento o disposto no artigo 32º, nº 8, da Constituição da República Portuguesa e artigo 126º, nº 3, do Código de Processo Penal, pelo que não pode o tribunal dar como provados os factos relatados pelas testemunhas com recurso a tal método proibido de prova.
*
Cumpre, agora, conhecer do recurso interposto.

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. Portanto, são apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar.

Questões a decidir:
- Existência de nulidade de sentença por falta de fundamentação no que respeita à explicitação da declaração de nulidade da prova indicada pela acusação, quanto às testemunhas que ouviram os telefonemas feitos pelo arguido para a ofendida, através do sistema da “alta voz”;
- Validade do meio de obtenção de prova quanto aos depoimentos das testemunhas que tomaram conhecimento de factos através do referido sistema de audição através de “alta voz”;
As questões levantas pelo Ministério Público estão interligadas e prende-se com a valoração da prova através de comunicação telefónica pelo sistema de alta voz, que seria a pessoa visada com as imputações em causa.
A propósito da divulgação das comunicações telefónicas por iniciativa de um dos titulares dessa comunicação através do sistema técnico de alta voz a partir do respectivo aparelho telefónico, a jurisprudência não tem mostrado um entendimento uniforme. Assim, existem aqueles que se colocam num posicionamento de completa interdição, considerando ilegítimo que sem o conhecimento e o consentimento do emissor de voz, mas apenas com o consentimento do receptor, o terceiro que ouviu essa conversa, possa divulgar o seu conteúdo ainda que esteja em causa a prática de um crime (Ac.TRC de 2008/Out./28, Des. Vasques Osório). Na posição antípoda estão aqueles que, nestes casos, consideram que não existe qualquer intromissão ilícita nas telecomunicações (Ac.TRP de 2004/Mai./26, Des. Borges Martins). Numa via “per mezzo” estão aqueles que muito embora considerem que, em princípio, o conhecimento de uma comunicação telefónica pelo sistema de alta voz não seja admissível, podem as mesmas ser justificadas desde que esse meio de prova se mostre imprescindível, atentas as circunstâncias concretas que estão subjacentes a cada caso (Ac.TRE de 2012/Jun./12, Des. Ana Barata Brito). Perante estas divergências, temos consciência de uma maior exigência argumentativa para dar uma resposta jurídica correcta e de validade, partindo-se de uma leitura dos ditames constitucionais e legais que aqui se mostram mais pertinentes, bem como das referências jurisprudenciais que melhor possam sustentar o caminho agora iniciado. Neste sentido temos o recentíssimo acórdão da Relação do Porto de 9/1/2013 relatado pelo Exmo Sr Desembargador Joaquim Gomes e que vamos seguir de perto uma vez que concordamos em pleno com o seu escrito.
*
A Constituição começa por centrar as suas referências jusfundamentais no respeito da dignidade da pessoa humana, o mesmo sucedendo com outros tratados internacionais a que nos encontramos vinculados (1.º; 24.º, n.º 1, 25.º da Constituição; 5.º da DUDH; 3.º, n.º 1 da CEDH; 7.º, n.º 1, 10.º, n.º 1 do PIDCP; 2.º TUE; 1.º, 3.º, n.º 1, 4.º da CDFUE).
Muito embora o conceito de dignidade da pessoa humana se apresente historicamente evolutivo e, de certo modo, impreciso, o mesmo começou a ganhar os seus contornos e uma melhor consistência normativa no decurso do Século XX, através de vários marcos constantes em tratados internacionais específicos. Assim, podemos encontrar tais referências na Convenção sobre a Escravatura das Nações Unidas (1.º, 1), assinada em Genebra a 25 de Setembro de 1926, na Convenção sobre a Abolição do Trabalho Forçado (1.º), aprovada em Genebra a 5 de Junho de 1957 no decurso da Conferência Geral da Organização Internacional do Trabalho e naquilo que é vulgarmente designado pelo direito internacional humanitário, através das Convenções de Genebra para Melhorar a Situação dos Feridos e Doentes das Forças Armadas em Campanha [I] ou no Mar [II] ou então relativamente ao Tratamentos dos Prisioneiros de Guerra [III], bem como à Protecção das Pessoas Civis em Tempo de Guerra [IV], adoptadas em 12 de Agosto de 1949. Por sua vez, ao nível regional europeu encontramos, a partir do Conselho da Europa, as Recomendações 1523 (2001), de 26/Jun. e 1663 (2004), de 22/Jun., respeitantes às novas formas de escravatura, com incidência no tráfico de pessoas, para trabalhos domésticos de servidão ou de exploração sexual, que colocam as vítimas numa posição de acentuada vulnerabilidade. Também será de destacar a Convenção Europeia contra o Tráfico de Seres Humanos, aberta à sua assinatura a 16 de Maio de 2005, o Protocolo n.º 13 de 03 de Maio de 2002 da CEDH, aprovado em Vinius e relativo à abolição da pena de morte em quaisquer circunstâncias. E isto sem esquecer a jurisprudência mais recente do TEDH, através dos casos Siliadan c. França, de 2005/Jul./26 e Rantsev c. Chipre e Rússia, de 2010/Jan./07.[1] Por último, temos a jurisprudência do Tribunal Constitucional, que partindo da dignidade da pessoa humana como “um valor axial e nuclear da Constituição” (Ac.TC 105/90), conferiu-lhe densidade e concretização a partir do direito fundamental ao livre desenvolvimento da personalidade, designadamente ao nível da investigação criminal, como seja na realização de testes de alcoolemia em público ou na preservação da intimidade revelada em diários apreendidos (Ac.TC 319/95 e 607/2003).
Partindo destas referências materializadas no texto da Constituição e nas Convenções de direito internacional, bem como das enunciadas narrativas jurisprudenciais, podemos ter, desde logo, uma compreensão ontológica da dignidade da pessoa humana, em que esta surge como um fim em si mesmo e não como um mero instrumento. Mas também aí encontramos, numa percepção jusfundamental, a qual assenta no seu reconhecimento social e jurídico, uma dimensão negativa (i) de que a pessoa humana não pode ser reduzida a um mero objecto, assim como uma dimensão positiva (ii), através da qual se salvaguarde em relação a todo o ser humano e em qualquer situação um espaço mínimo de integridade moral. Assim e mediante este princípio proíbe-se qualquer tipo de tratamento desprezível da condição humana ou que impeça arbitrariamente a sua realização.
Este princípio da dignidade da pessoa humana manifesta-se relevantemente no âmbito do designado processo penal constitucional, desde logo no artigo 32.º n.º 1 da Constituição ao consagrar uma cláusula geral de garantias de defesa, preceituando que “O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso” e precisando no seu n.º 8, no que concerne ao regime da prova proibida, que “São nulas todas as provas obtidas mediante tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações”.
Daqui decorre, desde logo, uma diferenciação constitucional entre a absoluta interdição da tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa e a relativa interdição na intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações. Neste último caso a garantia constitucional de defesa no âmbito da privacidade apenas incide quando essa intrusão ou ingerência se revelarem abusivas. Não o sendo será a mesma constitucionalmente aceitável desde que tal intromissão se mostre proporcional entre a observância dos direitos, liberdades e garantias em geral (18.º, n.º 2 Constituição), tanto do agente, como da vítima, e o exercício da acção penal, no âmbito de um processo justo (20.º, n.º 1 e 4; 219.º, n.º 1 Constituição), atenta paz jurídica comunitária, a qual foi quebrada com a prática criminosa. Tal sucederá quando essa interferência se mostre idónea ou adequada (i), necessária uma das finalidades primaciais do processo penal, que consiste na restauração da ou exigível (ii), no sentido da optimização relativa do que é factualmente possível, e tudo isto na sua justa medida (iii), que diz respeito à respectiva optimização normativa (Ac.TC 11/83, 285/92, 17/84, 86/94, 99/99, 302/2006, 158/2008).[2]
Evidenciando-se o sentido desta reserva constitucional à privacidade, consagra-se a inviolabilidade do domicílio e da correspondência (34.º Constituição), estatuindo-se que “O domicílio e o sigilo da correspondência e dos outros meios de comunicação privada são invioláveis” (n.º1), ao mesmo tempo que se salienta que “É proibida toda a ingerência das autoridades públicas na correspondência, nas telecomunicações e nos demais meios de comunicação, salvos os casos previstos na lei em matéria de processo criminal” (n.º 4).
O significado desta proibição de ingerência das autoridades públicas deve igualmente estender-se a qualquer outra pessoa, colectiva ou individual, atento os efeitos de irradiação dos direitos fundamentais, pois estes tanto vinculam as entidades públicas como as privadas (18.º, n.º 1 da Constituição). Por outro lado, os direitos fundamentais não têm apenas uma incidência ou uma dimensão subjectiva, surgindo igualmente como uma ordem ou dimensão objectiva de valores decorrente de um Estado de Direito Democrático (2.º Constituição).
Podemos assim extrair da leitura das referenciadas fontes normativas constitucionais que a par das provas absolutamente proibidas (i), que correspondem à tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, existem as provas relativamente proibidas (ii), as quais dizem respeito à intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações quando estas se revelarem abusivas.
No entanto, o direito à privacidade e preservando-se tanto o princípio da intervenção mínima (18.º, n.º 2 Constituição) e o núcleo essencial da vida privada (18.º, n.º 3 da Constituição), cuja reserva se pretende acautelar e deixar fora do conhecimento das outras pessoas, encontra-se sujeito à configuração do legislador. E essa conformação legislativa tanto se encontra no Código de Processo Penal, como no Código Penal ou ainda em legislação avulsa.
Começando pelo Código de Processo Penal[3] podemos constatar que este ao regulamentar a prova começa por definir o seu objecto, considerando-se para o efeito todos “os factos juridicamente relevantes” para a determinação ou exclusão da culpabilidade e da pena ou medida de segurança, assim como para a fixação ou não da responsabilidade civil (124.º), estabelecendo depois o princípio geral da legalidade da prova ao estatuir que “São admissíveis as provas que não forem proibidas por lei” (125.º). Não existe, no entanto, um regime de tipicidade de meios de prova nem de obtenção de prova, podendo, por isso, as mesmas estar ou não indicadas no Código de Processo Penal, havendo até regimes específicos de obtenção de prova, como sucede com a videovigilância, seja a realizada pelas autoridades policiais (Lei n.º 1/2005, de 10/Jan., ultimamente alterada pela Lei n.º 9/2012, de 23/Fev.; Dec-Lei n.º 205/2005, 29/Nov.), seja pelos serviços de segurança privada ou então como autoprotecção (Dec.-Lei n.º 35/2004, de 21/Fev.), incluindo o sistema de vigilância rodoviária (Lei n.º 51/2006, de 29/Ago.) ou nos casos específicos dos táxis (Lei n.º 33/2007, de 29/Ago.; Port. n.º 1164-A/2007, de 12/Set.).
Depois e na concretização daquilo que se considera ser prova proibida o Código Processo Penal estabelece um catálogo de métodos proibidos de prova no subsequente artigo 126.º, onde se preceitua o seguinte: – São nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas.
2 – São ofensivas da integridade física ou moral das pessoas as provas obtidas, mesmo que com consentimento delas, mediante:
a) Perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos;
b) Perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação;
c) Utilização da força, fora dos casos e dos limites permitidos pela lei;
d) Ameaça com medida legalmente inadmissível e, bem assim, com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto;
e) Promessa de vantagem legalmente inadmissível.
3 – Ressalvados os casos previstos na lei, são igualmente nulas, não podendo ser utilizadas, as provas obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
4 – Se o uso dos métodos de obtenção de provas previstos neste artigo constituir crime, podem aquelas ser utilizadas com o fim exclusivo de proceder contra os agentes do mesmo.”
Na ressalva estabelecida no artigo 126.º, n.º 3 salientamos a possibilidade de divulgação de uma comunicação telefónica sempre que haja o consentimento do seu titular, pelo que convém precisar quais são esses mesmos titulares. Para o efeito iremo-nos socorrer da Lei n.º 67/98, de 26/Out., que estabeleceu o regime jurídico da protecção dos dados pessoais, na sequência da Directiva n.º 95/46/CE de 24 de Outubro de 1995, assim como da Lei n.º 41/2004, de 18/Ago., recentemente alterada pela Lei n.º 46/2012, de 29/Ago., que estabelece o regime jurídico do tratamento de dados pessoais e da protecção da privacidade no sector das comunicações electrónicas, transpondo a Directiva 2002/58/CE, de 12 de Julho de 2002, sendo tanto esta como aquela outra emanadas pelo Parlamento Europeu e o Conselho relativa à privacidade e às comunicações electrónicas.
Nesta conformidade podemos considerar que a comunicação telefónica é um meio técnico de processar uma conversa e de transmitir uma ou mais informações, correspondendo estas a um “dado pessoal” (3.º, al. a) Lei n.º 67/98; 2.º, al. a) Lei n.º 41/2004). Por sua vez, «Chamada» será “qualquer ligação estabelecida através de um serviço telefónico publicamente disponível acessível ao público que permite uma comunicação bidireccional em tempo real” (2.º, n.º 1, al. g) Lei n.º 41/2004). Tais interlocutores, identificados ou identificáveis, são os titulares desses “dados pessoais”, pelo que o consentimento do acesso a esses dados deve ser manifestado tanto pelo emissor como pelo destinatário das suas comunicações (3.º, al. h) Lei n.º 67/98).
Daqui decorre igualmente, na sequência da apontada diferenciação constitucional, a existência de provas absolutamente interditas, que são aquelas adquiridas mediante tortura, coacção e mediante ofensa da integridade física ou moral das pessoas, e outras que são relativamente interditas, que correspondem às obtidas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou telecomunicações. Mas neste último caso, aceita-se a admissibilidade dessa intrusão desde que a mesma esteja prevista na lei em geral ou então seja consentida pelo titular do respectivo direito, ainda que naturalmente sujeita a critérios de proporcionalidade.
Por outro lado, existem ainda disposições específicas que disciplinam certos meios de prova (i) ou de obtenção de prova (ii), cuja inobservância impede, nalguns casos, que sejam valoradas. É o que sucede, quanto aos primeiros, com a prova testemunhal (128.º e ss.), as declarações dos sujeitos processuais (140.º e ss.), a prova por reconhecimento (147.º e ss.), a reconstituição dos factos (150.º), a prova pericial (151.º e ss.), a prova documental (164.º e ss.). E também, no que concerne aos segundos, com os exames (171.º e ss.), as revistas e as buscas (174.º e ss.), as apreensões (178.º e ss.), incluindo de correspondência (179.º), as escutas telefónicas (187.º e ss.), estendendo-se o regime destas “às conversações ou comunicações transmitidas por qualquer meio técnico diferente do telefone, designadamente correio electrónico ou outras formas de transmissão de dados por via telemática, mesmo que se encontrem guardadas em suporte digital, e à intercepção das comunicações entre presentes” (189.º).
Assim e no que concerne a estas últimas as mesmas são admissíveis mediante despacho judicial de autorização, que se expresse numa decisão fundamentada (205.º, n.º 1 Constituição; 97.º, n.º 1, al. b) e 5; 187, n.º 1 C. P. Penal), desde que se verifiquem os seguintes requisitos primaciais: haja razões para crer que essa intercepção ou gravação “é indispensável para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter” (i); a mesma diga respeito a crimes inscritos no catálogo descrito no artigo 187.º, n.º 1 do C. P. Penal (ii), como sucede com o crime de ameaças quando cometido por telefone e naturalmente por qualquer outro meio técnico de transmissão de conversações ou comunicações (187.º, n.º 1, al. e); 189.º, n.º 1); tal intercepção ou gravação incida, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, sobre, entre outros, suspeito ou arguido ou então a própria vítima do crime, mas mediante o seu consentimento efectivo ou presumido (187.º, n.º 4, al. a) e c) C. P. Penal) (iii).
Passando para o Código Penal e com relevância para o presente caso temos o crime de devassa da vida privada situado no artigo 192.º do Código Penal ao punir “Quem, sem consentimento e com intenção de devassar a vida privada das pessoas, designadamente a intimidade da vida familiar ou sexual: a) Interceptar, gravar, registar, utilizar, transmitir ou divulgar conversa, comunicação telefónica, mensagens de correio electrónico ou facturação detalhada; b) Captar, fotografar, filmar, registar ou divulgar imagem das pessoas ou de objectos ou espaços íntimos; c) Observar ou escutar às ocultas pessoas que se encontrem em lugar privado; ou d) Divulgar factos relativos à vida privada ou a doença grave de outra pessoa”.
Também se poderá fazer alusão ao crime de devassa informática da previsão do artigo 193.º do Código Penal, onde se comina “Quem criar, mantiver ou utilizar ficheiro automatizado de dados individualmente identificáveis e referentes a convicções políticas, religiosas ou filosóficas, à filiação partidária ou sindical, à vida privada, ou a origem étnica”.
A jurisprudência tem identificado na protecção do bem jurídico aqui em causa neste tipos de crime, sob a nítida influência da doutrina das “três esferas”, que a referência à “vida privada” se dirige ao “núcleo duro da vida privada” e mais sensível de cada pessoa, optando-se por uma concepção restritiva (Ac.TRP de 2006/Mai./31, CJ III, 210) – tal posição distingue três níveis ou graus de protecção, a saber: i) um respeitante à esfera intima (intimsphäre), que se identifica com a noção de intimo, protegendo a vida pessoal e familiar que se pretende reservada e fora do conhecimento dos demais; ii) outro referente à esfera privada (privatsphäre), relativo ao que cada pessoa tem como secreto ou particular, cuja violação ocorre quando se conhecem factos ou noticias que não se desejam revelar; iii) um outro relativo à esfera individual (individualsphäre), que é tudo aquilo que especifica uma pessoa, como a honra, o nome, a imagem.
Também será de considerar o crime de violação de correspondência ou de telecomunicações da previsão do artigo 194.º, uma vez que o mesmo pune “Quem, sem consentimento, abrir encomenda, carta ou qualquer outro escrito que se encontre fechado e lhe não seja dirigido, ou tomar conhecimento, por processos técnicos, do seu conteúdo, ou impedir, por qualquer modo, que seja recebido pelo destinatário” (n.º 1), o mesmo sucedendo para “quem, sem consentimento, se intrometer no conteúdo de telecomunicação ou dele tomar conhecimento (n.º 2) ou ainda “Quem, sem consentimento, divulgar o conteúdo de cartas, encomendas, escritos fechados, ou telecomunicações a que se referem os números anteriores” (n.º 3).
Porém e como é sabido o direito penal tem um carácter fragmentário, revestindo-se de uma natureza de ultima ratio, decorrente essencialmente do princípio constitucional da intervenção mínima (18.º, n.º 2 Constituição). Como se referiu no Ac. Tribunal Constitucional n.º 108/99[4] “É, assim, um direito enformado pelo princípio da fragmentaridade, pois que há-de limitar-se à defesa das perturbações graves da ordem social e à protecção das condições sociais indispensáveis ao viver comunitário. …A necessidade social apresenta-se, deste modo, como critério decisivo da intervenção do direito penal”.
Daí que surjam, em certas e específicas circunstâncias, causas de exclusão da ilicitude ou da culpa. A primeira ocorrerá quando se verificar alguma das circunstâncias indicadas no artigo 31.º, n.º 1 do Código Penal, onde se afirma que “O facto não é punível quando a sua ilicitude for excluída pela ordem jurídica considerada na sua totalidade”, explicitando-se no seu n.º 2 que “[Nomeadamente], não é ilícito o facto praticado: a) Em legítima defesa; b) No exercício de um direito; c) No cumprimento de um dever imposto por lei ou por ordem legítima da autoridade; ou d) Com o consentimento do titular do interesse jurídico lesado”. Também de acordo com o n.º 2 do citado artigo 192.º do Código Penal “O facto previsto na alínea d) do número anterior não é punível quando for praticado como meio adequado para realizar um interesse público legítimo e relevante”, o que igualmente exclui a ilicitude dessa divulgação. A segunda sucederá nos casos de estado de necessidade desculpante previsto no artigo 35.º, n.º 1 do Código Penal, ao preceituar que “Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente”.
Da conjugação destes normativos e da leitura que se pode fazer dos mesmos, no âmbito dos parâmetros constitucionais anteriormente referenciados, podemos extrair um critério de duplo efeito, segundo o qual um acto abstractamente ilícito encontra validade e justificação jurídico-penal, mesmo com algumas consequências indesejáveis, se tal acto revelar-se adequado, necessário e na justa medida para afastar uma agressão, igualmente ilícita. E isto num duplo sentido: desde que a vítima não tenha outro modo de repelir tal agressão criminosa (i) e o seu acto não ofenda a dignidade humana (ii), tanto numa perspectiva subjectiva, relativa aos agentes e vítimas do crime, não os reduzindo a meros objectos, como numa perspectiva objectiva, da preservação da sua integridade moral, como sucede com o núcleo duro da vida privada, enquanto sujeitos de direitos. Daí que verificando-se alguma das apontadas causas de exclusão da ilicitude ou da culpa e preservando-se os enunciados parâmetros constitucionais, se possa justificar a divulgação de uma comunicação telefónica ou outra correspondente quando a mesma seja, por exemplo, o meio para a prática de um ilícito criminal, como sucede com o crime de ameaças, e o destinatário dessa comunicação seja a própria vítima. Aliás, essa divulgação pelo vulgarmente designado sistema de “alta voz” pode até obstar que, no futuro, o telefone do agente e da vítima sejam colocados, mediante despacho judicial, sob escuta telefónica, com a gravação das comunicações efectuadas, o que geraria uma maior danosidade de intromissão na privacidade dos interlocutores.
Naturalmente que tal divulgação de uma conversa telefónica pelo sistema de alta voz por iniciativa da vítima, como qualquer outra prova testemunhal realizada na audiência, está igualmente sujeita ao princípio do contraditório (355.º), não só como decorrência das garantias de defesa (32.º, n.º 5 Constituição), mas também como uma das dimensões exigidas pelo direito a um processo equitativo (20.º, n.º 4 Constituição; 10.º, DUDH; n.º 14.º, n.º 1 PIDCP; 6.º, n.º 1 CEDH; 47.º § 2 CDFUE).
Esta leitura encontra igualmente suporte na jurisprudência do TEDH que se vem posicionando no sentido de que, ainda que se salvaguarde a necessária margem de apreciação do legislador nacional, apenas se consideram legítimas as intromissões na vida privada (8.º, n.º 1 CEDH), desde que as mesmas sejam tomadas de acordo com a lei, respeitem as exigências de um processo justo, mostrando-se as mesmas compreensíveis e necessárias num Estado de Direito Democrático, designadamente para “a prevenção das infracções penais, … ou a protecção dos direitos e das liberdades de terceiros” (8.º, n.º 2 da CEDH).
Naturalmente que as mesmas têm que se mostrar proporcionais em relação ao objectivo perseguido, ponderando-se a gravidade do crime com a intensidade da intromissão na vida privada (Jalloh c. Alemanha, 2006/Jul./11, Juhnke c. Turquia, 2008/Mai./13; Bogumil c. Portugal 2008/Out./07), como sucede com as intromissões ou divulgação de conversações telefónicas (Ac. TEDH Bikov c. Rússua), tendo sempre como limite inultrapassável a integridade física e moral da pessoa em causa, interditando-se de modo absoluto as práticas integradoras de torturas ou tratamentos desumanos e degradantes (3.º CEDH).
*
Do regime do processo penal constitucional e legal podemos assentar que a realização da justiça penal, num Estado de Direito Democrático, assenta no respeito e na garantia dos direitos fundamentais dos cidadãos, tanto dos presumidos agentes do crime, como das correspondentes e potenciais vítimas, mormente da preservação da dignidade humana. Assim, o regime da legalidade da prova, enquanto “imperativo de integridade judiciária”, tanto versa sobre os meios de prova (i), como incide sobre os meios de obtenção de prova (ii).
Através da sua primeira dimensão estão em causa os elementos que servem para formar a convicção relativamente aos factos sujeitos a julgamento (i), enquanto a segunda dimensão corresponde aos instrumentos de que se servem as autoridades judiciárias para investigar e recolher a prova (ii). Tanto uma como a outra comprimem o princípio da livre apreciação da prova decorrente do artigo 127.º, estabelecendo as correspondentes proibições de produção ou de valoração de prova.
Tratando-se de prova proibida, a mesma deve ser oficiosamente conhecida e declarada em qualquer fase do processo, surgindo como autênticas nulidades insanáveis, a par daquelas que expressamente integram o catálogo do artigo 119.º.
Chegados aqui podemos traçar relativamente à intercepção e à gravação das comunicações telefónicas ou através de outros meios técnicos de transmissão, de acordo com o primado da dignidade humana, das garantias constitucionais de defesa e de reserva da privacidade, devidamente amparadas pelo princípio da intervenção mínima, o qual está sujeito a critérios de proporcionalidade, bem como pelo princípio da legalidade da prova, as seguintes directrizes:
i) Tais meios de obtenção de prova inscrevem-se no pilar constitucional das provas relativamente proibidas, o que sucederá quando as mesmas se revelarem abusivas;
ii) Serão meios de obtenção de prova abusivos quando a sua realização não se mostrar proporcional face aos parâmetros constitucionais estabelecidos pelo princípio da intervenção mínima (i) e as exigências de um processo penal justo (ii), designadamente na sua vertente de interdição legal;
iii) Tal meio de obtenção de prova será, por isso, legalmente admissível quando for decretado por despacho judicial e sejam observados os respectivos requisitos legais, ou seja, diga respeito a crimes inscritos no catálogo descrito no artigo 187.º, n.º 1 do C. P. Penal (i) – como sucede com o crime de ameaças quando cometido por telefone e naturalmente por qualquer outro meio técnico de transmissão de conversações ou comunicações (187.º, n.º 1, al. e); 189.º, n.º 1); tal intercepção ou gravação incida, independentemente da titularidade do meio de comunicação utilizado, nas comunicações efectuadas, entre outros, pelo suspeito ou arguido (a) ou então a própria vítima do crime, mas mediante o seu consentimento efectivo ou presumido (b) (187.º, n.º 4, al. a) e c) C. P. Penal) (ii);
iv) Fora destas circunstâncias, a divulgação de uma comunicação telefónica será um meio de obtenção de prova legalmente admissível desde que, de acordo com um critério de duplo efeito, se mostrem preenchidos os requisitos legais substantivos das escutas telefónicas (i), revelando-se essa divulgação necessária, adequada e na justa medida para repelir uma agressão actual e ilícita de que se seja vítima (ii), mormente quando esta é a interlocutora e destinatária da referida comunicação telefónica ou outra comunicação técnica equiparada, ficando sempre salvaguardado a dignidade da pessoa humana dos intervenientes na respectiva comunicação;
v) Neste último caso, considera-se justificada a divulgação de uma conversa telefónica pelo sistema de alta voz quando essa precisa comunicação telefónica é o meio utilizado para cometer um crime de ameaças ou injúrias e a vítima consinta, de modo expresso ou implícito, na sua divulgação a terceiros como forma de se proteger de tais ameaças ou injúrias.
*
Nesta conformidade deveria o tribunal ter ouvido o depoimento das testemunhas na medida em que não estamos perante prova proibida.
Assim, anula-se a decisão recorrida, para audição de todas as testemunhas.

Desta forma, decidem os Juízes da Secção Criminal, do Tribunal da Relação de Coimbra, julgar procedente o recurso interposto e, em consequência, anula-se a decisão recorrida e determina-se o reenvio do processo para novo julgamento, admitindo-se a prova acima referida.

Ficam prejudicadas as restantes questões

Custas pelo recorrido fixando-se a taxa de justiça em 4 ucs.



Alice Santos (Relatora)

Belmiro Andrade
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