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segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça - INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO PRAZO DE CADUCIDADE INCONSTITUCIONALIDADE - 06/09/2011


Acórdãos STJ
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1167/10.5TBPTL.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE
PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO
PRAZO DE CADUCIDADE
INCONSTITUCIONALIDADE

Data do Acordão: 06-09-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Área Temática: DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMILIA - FILIAÇÃO - RECONHECIMENTO JUDICIAL
DIREITO CONSTITUCIONAL - DIREITOS E DEVERES FUNDAMENTAIS
Doutrina:
- Cristina Queiroz, in “Direitos Fundamentais. Teoria Geral”, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2010, pág. 250.
- Gomes Canotilho, José Joaquim, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Coimbra, Almedina, 6.ª edição, págs. 1247, 1255, 1257.
- Gomes Canotilho, J. J. e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa. Anotada.”, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2007, págs. 453 a 457, 463, 464, 467.
- Oliveira, Guilherme, In “Caducidade das Acções de Investigação”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, Vol. I, “Direito da família e das Sucessões”, Coimbra Editora, 2004, págs. 51, 52, 53, 54, 55.
- Reis Novais, Jorge, in “Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa”, Coimbra Editora, 2011 (reimpressão), pág. 183.
- Vieira de Andrade, José Carlos, in “Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 2001, págs. 277, 288, 289, 291, 311, 312, 314, 316, 317.
Legislação Nacional: CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 1817.º, N.º1 (NA REDACÇÃO DADA PELA LEI 14/2009 DE 1-4), 1873.º.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 26.º
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 11-03-2010;
-DE 08-06-2010;
-DE 21-09-2010, TODOS EM WWW.STJ.PT .

Sumário :

I - Mostra-se inconstitucional o estabelecimento ou estatuição, pelo art. 1817.º, n.º 1, do CC, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 01-04, de um prazo legal para que o filho possa investigar a verdade biológica da sua filiação.

II - Na ponderação da equação dos direitos fundamentais em lide posicionam-se, do lado do filho-investigante, o “direito à identidade pessoal”, o “direito à integridade pessoal” e o “direito ao desenvolvimento da personalidade” e, do lado do pretenso pai-investigado, os de “reserva da intimidade da vida privada e familiar” e o “direito ao desenvolvimento da personalidade”.

III - Estando em causa direitos de raiz e feição absoluta, a regra será a não restrição dos direitos fundamentais, a menos que estejam em causa ou possam interferir no exercício desses direitos outros valores de “rango” constitucional que justifiquem a regulação por via legislativa.

IV - Há que indagar quais os factores de ponderação que, no caso concreto, podem ser alinhados para aferição dos direitos e valores em causa e, nesta ponderação, terão que intervir critérios ou princípios de proporcionalidade, de razoabilidade, de adequação, de integração pessoal e familiar e de equivalência dos efeitos na esfera pessoal e familiar de cada um dos sujeitos involucrados.

V - No conspecto dos valores em confronto, deve privilegiar-se aqueles que abonam e exornam a pessoa humana em detrimento de valores de perturbação da tranquilidade familiar, da aquisição das situações pessoais e familiares estabelecidas e estabilização das relações económicas e/ou sucessórias, pelo que o n.º 1 do art. 1817.º do Código Civil, na versão da Lei n.º 14/2009, de 01-04, deve ser considerado inconstitucional, por impor um limite temporal ao direito de alguém ver reconhecida a sua paternidade.


Decisão Texto Integral: Recorrente: AA
Recorrido: BB

I. – RELATÓRIO.

Em dissidência com o decidido no despacho saneador/sentença que julgou procedente a excepção de caducidade do direito de acção para investigação da paternidade formulado pela demandante contra o pretenso pai, BB, recorre, per saltum, a demandante, AA, do havendo a considerar para a decisão a proferir, os sequentes:

I.1. - Antecedentes Processuais.

Elenca-se a súmula dos factos alegados nos articulados produzidos.

Na petição, donde faz emergir o pedido reconhecimento como filha do Réu, BB, e que fosse averbado ao seu registo de nascimento o apelido "M....., aduz a demandante, em síntese apertada, a sequente factologia:

“a. A Autora nasceu em ........., na freguesia da Correlhã, no dia 14 de Maio de 1949. (vi de fls....), tendo sido na Conservatória do Registo Civil de........... como filha de CC, sem qualquer menção da paternidade (vide fls...)

b. Que a sua mãe manteve relações sexuais de cópula com o Réu, nomeadamente nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento, nada obstando à perfilhação.

c. Que a sua mãe e o Réu, em meados da década de 40 começaram a estreitar laços de amizade, que posteriormente evoluíram para outro tipo de relação, e que tal namoro, apesar de não assumido plenamente, era do conhecimento de toda a freguesia, situação que até era muito comentada na época; de tal modo que, quando na freguesia se descobriu a gravidez da mãe da Autora, aqui Recorrente, toda a gente teve a convicção que a filha seria do Réu, por ter sido o único homem com quem viram a mãe da Autora. Que essa Relação durou anos, sempre com promessas adiadas, tendo mesmo continuado depois do nascimento da Autora.

d. Alegando ainda a Autora que, quando pequena a mãe lhe teria indicado que aquele era o seu pai mas que este nunca permitiu uma tentativa de aproximação, o que a impediu de ter acesso ao mesmo, nomeadamente ao seu nome completo ou morada, até porque a Autora foi viver para o Porto ainda muito jovem, tendo perdido contacto com os familiares mais próximos e com vizinhos que lhe pudessem dar mais informações.

e. E que, o facto de só agora ter intentado a respectiva acção de investigação de paternidade se prende com a circunstância de só posteriormente ao falecimento da mãe e do seu marido (este em 24 de Setembro de 2009, vide fls....) a Autora ter voltado para a sua terra Natal e ter feito uma investigação mais cuidada acerca das suas raízes, o que lhe permitiu obter dados mais concretos sobre o Réu.”

Na contestação que apresentou, o demandado defende-se, por excepção, apelando para a nova redacção do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, que preceitua que “a acção de investigação de paternidade só pode ser proposta durante a menoridade do investigante ou nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação”.

Tendo a Autora 61 anos de idade há muito que está ultrapassado o prazo de dez anos previsto no indicado preceito, cuja vigência se tem desde 2 de Abril de 2009.

Para além da excepção de caducidade induz a figura de abuso de direito por reputar estarem a ser excedidos os limites da boa fé, dos bons costumes, do fim social e económico do direito que pretende exercitar. Na verdade a mãe da Autora faleceu há mais de 12 anos, sendo que é a própria Autora que afirma saber que o seu pai biológico é o demandado. Apesar de ter conhecimento dessa realidade pessoal nunca a fez saber ao demandado nem curou de saber da sua situação pessoal. Tendo neste momento a idade de 90 anos, o demandado esteve doente há quatro anos e a Autora não procurou inteirar-se da sua situação de saúde. Sendo relevante o direito à identidade, também o é o direito de personalidade e do de reserva à intimidade da vida privada, constituindo-se como abuso de direito a pretensão de exercitar o direito de ver investigada a paternidade relativamente ao demandado com a consequente devassa da suas relações pessoais, familiares e patrimoniais.

Por impugnação contramina os factos constitutivos do direito da Autora, nomeadamente que alguma vez tivesse tido relações com a mãe da Autora, mais velha do que ele cinco anos. A ser verdade o que a Autora refere, à data em que deverão ser situadas as relações sexuais geradoras da concepção a sua mãe teria 33 anos e será pouco crível, como a autora refere, que se deixasse embair nas “falas” do demandado. Do mesmo passo não é verdade que o demandado tenha mantido um namoro com a mãe da autora nem esta consegue localizar o momento exacto em que essas relações terão ocorrido, tendo-se limitado a fazer apelo ao período legal estabelecido – os primeiros 120 dias do 300 que precederam o nascimento da autora.

Em sede de réplica a autora refuta a argumentação aduzida para a veia exceptiva suscitada, esgrimindo com o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 23/2006, de 10-01-2006, publicado no DR, I Série, de 08-02-2006, bem como jurisprudência deste supremo Tribunal em que estriba a posição adversa por que propugna.

No atinente ao abuso de direito, a autora repristina jurisprudência que já tinha impelido para contraminar a excepção de caducidade e outra em que se escora para abonar a posição de lidimidade do direito a que se arroga.

Em sucinto e parcimonioso despacho, o Tribunal de Ponte de Lima julgou procedente a excepção de caducidade, tendo absolvido o Réu do pedido.

È deste despacho que vem interposto o presente recurso de revista, per saltum, em que a autora pretende que venha a ser revogado o despacho saneador/sentença em que se julgou o direito á acção de investigação caduco.

I.2. – Quadro Conclusivo.

Para o pedido que requesta, a recorrente formula o quadro conclusivo que a seguir se deixa transcrito.

“1 - No douto Despacho Saneador Sentença recorrido entendeu-se julgar procedente a excepção peremptória de caducidade do direito de intentar a acção de investigação de paternidade, invocado pelo Réu e, em consequência decidiu-se absolver o Réu do pedido.

2. A Recorrente não se conforma com a aplicação do direito aos factos, já que, salvo melhor opinião, entendemos que não se verifica no presente caso os pressupostos da caducidade.

3. E, por tal motivo se recorre somente de direito.

4. Assim, pretendia a Recorrente/Autora:

a) - Que a acção de reconhecimento de paternidade fosse julgada provada e procedente;

b) - Ser reconhecida como filha do Réu para todos os efeitos legais;

c) - Que fosse averbado ao seu registo de nascimento o apelido "M........"

5. Para tanto, a Autora, aqui Recorrente intentou Acção de Investigação de Paternidade contra o Réu, tendo, em suma, alegado que:

a. A Autora nasceu em .........., na freguesia da Correlhã, no dia 14 de Maio de 1949. (vi de fls....), tendo sido na Conservatória do Registo Civil de Ponte de Lima como filha de CC, sem qualquer menção da paternidade (vide fls...)

b. Que a sua mãe manteve relações sexuais de cópula com o Réu, nomeadamente nos primeiros 120 dias dos 300 que precederam o seu nascimento, nada obstando à perfilhação.

c. Que a sua mãe e o Réu, em meados da década de 40 começaram a estreitar laços de amizade, que posteriormente evoluíram para outro tipo de relação, e que tal namoro, apesar de não assumido plenamente, era do conhecimento de toda a freguesia, situação que até era muito comentada na época; de tal modo que, quando na freguesia se descobriu a gravidez da mãe da Autora, aqui Recorrente, toda a gente teve a convicção que a filha seria do Réu, por ter sido o único homem com quem viram a mãe da Autora. Que essa Relação durou anos, sempre com promessas adiadas, tendo mesmo continuado depois do nascimento da Autora.

d. Alegando ainda a Autora que, quando pequena a mãe lhe teria indicado que aquele era o seu pai mas que este nunca permitiu uma tentativa de aproximação, o que a impediu de ter acesso ao mesmo, nomeadamente ao seu nome completo ou morada, até porque a Autora foi viver para o Porto ainda muito jovem, tendo perdido contacto com os familiares mais próximos e com vizinhos que lhe pudessem dar mais informações.

e. E que, o facto de só agora ter intentado a respectiva acção de investigação de paternidade se prende com a circunstância de só posteriormente ao falecimento da mãe e do seu marido (este em 24 de Setembro de 2009, vide fls....) a Autora ter voltado para a sua terra Natal e ter feito uma investigação mais cuidada acerca das suas raízes, o que lhe permitiu obter dados mais concretos sobre o Réu.

6. Porém, o Tribunal "a quo" entendeu que, "o prazo para a A. intentar a presente acção está ultrapassado por força da Lei 14/2009 de 1 de Abril que procedeu à alteração do art.1817.º do Código Civil ". (itálico nosso).

7. Tendo julgado procedente a excepção peremptória de caducidade invocada pela Ré.

8. Tendo o tribunal "a quo" fundamentado que "Atento o disposto no artigo 1. o da referida Lei, o artigo 1817.º n.º 1do Código ... e que como o "artigo 2.º da referida Lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, ou seja, no dia 2 de Abril de 2009.", "Está assente que o artigo 1817.º n.º 1 do CC ­com a nova redacção - aplica-se à presente acção por força do art. 1873.º do mesmo Código." (itálico nosso).

9. Entendendo assim o Tribunal "a quo" que "... tendo a A. 61 anos de idade, há muito que está ultrapassado o prazo de 10 anos previsto no art. 1817.º n.º 1 do CC com a redacção dada pela nova Lei 14/2009 de 1 de Abril, a qual se aplica ao presente processo. " (itálico nosso).

10. Acrescentando ainda o Tribunal" a quo" que "... é verdade que o n.º 1 do artigo 1817.º CC na sua redacção anterior à referida Lei 14/2009 de 1 de Abril, foi declarado inconstitucional com força obrigatória geral. Daí não se pode concluir que a referida inconstitucionalidade abrange a actual redacção da referida disposição legal. ". Para concluir que " Por tudo isto entendemos que o n.º 1 do art. 1817.º do C. Civil na sua actual redacção não é inconstitucional. " (itálico nosso)

11. A Recorrente não pode concordar com tal entendimento!

12. Com efeito, a Autora tem 61 anos de idade e como prescreve o n.º 1 do art. 1817.º do Código Civil, "A acção de investigação da maternidade só pode ser proposta ... nos dez anos posteriores à sua maioridade ou emancipação.

13. No entanto, o nosso entendimento vai no sentido de que o prazo para a Autora intentar a acção não caducou, tendo em conta o consagrado no "Acórdão do Tribunal Constitucional 23/2006 de 10.1.2006. publicado no DR de 8.2.2006 I Série. pags. 1026 1034", o qual se decidiu pela inconstitucionalidade com força obrigatória geral do prazo de caducidade do n.º 1 do art. 1817.º do CC; implicando tal declaração a remoção da norma do ordenamento jurídico, não podendo, portanto, a mesma ser aplicada pelos Tribunais (art. 204.º da CRP).

14. É verdade que o referido Acórdão se pronunciou sobre o art. 1817.º do CC, na sua redacção anterior à Lei 14/2009; no entanto, também não é menos verdade, que as razões que estão subjacentes à declaração de inconstitucionalidade referidas no citado acórdão do TC se mantêm inteiramente válidas.

15. Deste modo, não podemos concordar com a douta sentença recorrida de que a referida inconstitucionalidade não abrange a actual redacção da referida disposição legal; nem podemos concordar com o entendimento do Tribunal "a quo" de que o legislador actual ao aumentar o prazo da caducidade sanou a referida inconstitucionalidade.

16. No nosso entender, e salvo melhor opinião, a estipulação de um prazo mais alargado do actual 1817.0 n.º 1, não deixa de constituir uma restrição ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, enquanto direito fundamental.

17. Pelo que, e na esteira da mais recente doutrina e jurisprudência deve-se aceitar a imprescribi1idade do direito de investigar a paternidade.

18. O direito ao conhecimento da ascendência biológica é um valor social, pessoal e moral da maior relevância, tratando-se de um direito fundamental, constitucionalmente consagrado, como de identidade pessoal (art. 26.0 1 da CRP).

19. Neste sentido o Acórdão do STJ de 21-09-2010, processo n.0 495/04 ­3TBOR.C.l.S.l, in www.dgsi.pt. diz-nos que "O direito a investigar a paternidade é imprescritível sendo injustificada qualquer limitação temporal que equivaleria à limitação de um direito de personalidade. ".

20. Acrescentando ainda “É este o resultado que se alcança do Acórdão do Tribunal Constitucional ao declarar, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade do n. 1 do artigo 1817.º do Código Civil, declaração que não pode deixar de ser extensível a todo o preceito" (Negrito, itálico e Sublinhado nosso).

21. O que contraria o douto despacho saneador do Tribunal "a quo" quando afirma que a " ... não se pode concluir que a referida inconstitucionalidade abrange a actual redacção da referida disposição legal".

22. É esta ideia de imprescribilidade que colhemos da leitura do referido Acórdão do STJ de 21-09-2010, processo n.º 495/04.3TBOR.C.1.S.1, que consagra ainda que " ... o Estado não pode limitar o assentamento da filiação/identidade pessoal, com limitações de prazos independentemente da sua duração, extensão e "terminus ad quem"." (negrito e itálico nosso).

23. No mesmo sentido Ac. do STJ de 7/7109 - proc. n.º 1124/05.3TBLGS.Sl ­disponível na internet, em www.dgsi.pt - diz-nos que "a valorização dos direitos fundamentais da pessoa, como o de saber quem é e de onde vem na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica, fazem-na prevalecer sobre os prazos de caducidade para as acções de estabelecimento da filiação". (Negrito e Sublinhado nosso).

24. Também na esteira do consagrado neste mesmo Acórdão "As razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advêm de um quadro jurídico-familar estabilizado, mesmo que não correspondendo à verdade biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social" (Negrito e itálico nosso), não podemos concordar, salvo o devido respeito, com a fundamentação do Tribunal "a quo" que faz prevalecer os princípios de certeza e segurança jurídica sobre a verdade biológica, dispondo "Ex abundante, os princípios da certeza e segurança do direito também terão de ser respeitados." (itálico nosso).

25. O tribunal constitucional ao declarar no seu Acórdão 23/2006 de 10 de Janeiro de 2006 inconstitucional a norma constante do art. 1817 do CC teve como motivação o direito à identidade e historicidade pessoal e ao conhecimento das próprias raízes, enquanto direito fundamental "Deve, pois, dar-se por adquirida a consagração, na Constituição, como dimensão do direito à identidade pessoal, consagrado no artigo 26.º, n.º 1, de um direito fundamental ao conhecimento e reconhecimento da maternidade e da paternidade" (Negrito e Sublinhado nosso).

26. A doutrina maioritária, designadamente a doutrina mais citada pelo Tribunal Constitucional pende hoje para a inconstitucionalidade da existência de prazos nas acções de investigação de paternidade.

27. "Caducidade das acções de investigação". Revista Lex Familae, cito n.º 1, 2004, pp.7-13, concluindo ser sustentável alegar a inconstitucionalidade dos prazos estabelecidos nos artigos 1817. ° e 1873. ° do Código Civil, tornando o regime inaplicável pelos tribunais, e devendo então o direito dos filhos poder ser exercitado a todo o tempo, durante toda a vida ... (...)’’ (negrito, itálico e sublinhado nosso)

28. Deste modo, não obstante o Tribunal Constitucional se ter pronunciado sobre o art. 1817.º do CC, na sua redacção anterior à lei 14/2009, entendemos, salvo o devido respeito, que as razões subjacentes à declaração de inconstitucionalidade se mantém válidas.

29. Tal como é defendido no Acórdão do STJ publicado no site www.dgsi.pt. processo n.º 4/07.2TBEPS.Gl.Sl, de 21-09-2010 "As razões que estão subjacentes àquela declaração de inconstitucionalidade mantêm-se inteiramente válidas, dado que, estando em causa o estabelecimento da paternidade da autora, o prazo previsto no ar! 1817.º, n.º 1, na redacção da nova lei, é também materialmente inconstitucional, na medida em que é limitador da possibilidade de investigação a todo o tempo, constituindo, o estabelecimento do mesmo (...) uma restrição não justificada, desproporcionada e não admissível do direito do filho saber em vida de quem descende. " (Negrito, itálico e Sublinhado nosso).

30. No mesmo Acórdão referem-se à doutrina do Dr. Jorge Miranda e do Dr. Rui Medeiros para reforçar a ideia de que “A estipulação de prazo de caducidade mais alargado constante do artigo 1817.º, na redacção da nova lei não deixa, por isso, de constituir uma restrição do direito ao conhecimento e reconhecimento da paternidade, enquanto direito fundamental,... " (Negrito e Sublinhado nosso).

31. Ainda no mesmo sentido diz-nos o Acórdão do STJ, in www.dgsi.pt. processo n.oI847/08.5TVLSB-A.L1.S1, de 8-06-2010 "Tal direito fundamental, do conhecimento da ascendência biológica, por banda do investigante, é um direito personalíssimo e imprescritível (....) Configurando os prazos de caducidade - sejam eles quais forem - uma restrição desproporcionada de tal citado direito à identidade pessoal ou à historicidade pessoal, violadora da Constituição da República. ( ... ) Sendo, assim, também inconstitucional, o novo prazo de investi1!ação estabelecido pela actual Lei 14/2009, de 1 de Abril" (Negrito e Sublinhado nosso).

32. Fazendo urna resenha pelo direito comparado, verificamos que apesar de a solução adoptada na ordem jurídica portuguesa (no que diz respeito ao estabelecimento de prazos de caducidade para intentar acções de investigação de paternidade) não ser inédita, afasta-se daquela que é adoptada na grande maioria das ordens jurídicas que nos são mais próximas.

33. O Código Civil Italiano, no seu art. 270.º dispõe que a acção para obter a declaração judicial da paternidade ou da maternidade "é imprescritível para o filho." Também o artigo 1606.º do Código Civil brasileiro dispõe que a " acção de prova de filiação compete ao filho, enquanto viver... ". Por sua vez, o Código Civil espanhol, nos termos do art. 133.º dispõe "acção de reclamação de filiação não matrimonial, quando falte a respectiva posse de estado, cabe ao filho durante toda a sua vida. Esta regra da imprescritibilidade foi também adoptada pelo legislador alemão e até pelo Código Civil de Macau.

34. O Tribunal "a quo" defendeu uma tese contrária à defendida pela maioria da jurisprudência e doutrina.

35. O prazo para intentar a acção não caducou, sendo que se deve considerar que o Acórdão 23/2006 do TC declarou obrigatoriamente inconstitucional o art. 1817 do CC ao estabelecer prazos de caducidade para intentar acções de investigação de paternidade, sendo irrelevante "por conduzir ao mesmo resultado, reflectir sobre a aplicação da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, uma vez que esta alteração legislativa continua a manter um prazo, embora mais alargado, para este tipo de acções.

36. Assim, se apesar de alargado continua a existir um prazo, tal artigo na sua nova redacção também se deve considerar inconstitucional, uma vez que a existência de um prazo não se coaduna com o direito a investigar por parte da Autora, enquanto direito fundamental de conhecimento da sua ascendência biológica.

37. Assim, e pelas razões supra expostas, não podemos concordar com Despacho Saneador Sentença do Tribunal, a quo" que ao julgar procedente a excepção peremptória invocada pelo Réu obsta ao direito da Autora ao conhecimento e reconhecimento da paternidade.

38. Sendo certo que, a Autora durante toda a sua vida tentou descobrir a sua ascendência biológica e que só recentemente teve acesso a dados mais concretos sobre o Réu que lhe permitissem intentar a respectiva acção.

39. Resta acrescentar que o argumento da certeza e segurança do direito, enquanto razão para a previsão de um prazo limitativo da acção de investigação não pode colher, não devendo sobrevalorizar-se, no confronto com bens constitutivos da personalidade, a garantia da "segurança jurídica".

40. Neste sentido diz-nos o já citado Acórdão do Tribunal Constitucional "Quanto ao interesse do pretenso progenitor em não ver indefinida ou excessivamente protelada a dúvida quanto à sua paternidade, não pode, desde logo, deixar de observar-se que, se o que esta em questão é realmente a incerteza quanto à paternidade, esta pode hoje, com grande segurança, ser logo eliminada, com a concordância do próprio pretenso progenitor que nisso estiver realmente interessado, bastando, para tal, aceitar a realização de um vulgar teste genético de paternidade." (negrito e itálico nosso).

41. O Réu tem direito à reserva da intimidade da vida privada e à segurança jurídica das suas relações familiares, no entanto esta não merece uma protecção superior àquela que deve ser conferida à Autora, que é o direito de conhecimento da identidade dos seus progenitores.

42. Face ao exposto, não pode considerar-se que o prazo para a Autora intentar a acção de investigação de paternidade se encontra ultrapassado, não devendo ser julgada procedente a excepção de caducidade invocada pelo Réu.

43. Devendo o deve o presente recurso ser julgado procedente, e consequentemente a douta sentença recorrida ser substituída por outra que julgue a acção procedente.

44. Ao ter julgado procedente a excepção da caducidade invocada pelo Réu, a douta sentença recorrida vai contra o entendimento da doutrina e jurisprudência maioritária, não tendo em conta os fundamentos subjacentes à declaração de inconstitucionalidade do art. 1817.º do Cód. Civil, fundamentos esses que se mantém, apesar da actual versão do artigo.

Termos em que, dando-se provimento ao presente recurso, julgando-o procedente e provado, deve o douto despacho saneador sentença recorrido ser revogado de modo a permitir a continuidade da acção, não sendo o Réu absolvido do pedido permitindo a Autora avançar com a acção de investigação de paternidade; com todas as legais consequências, fazendo assim, inteira Justiça.

Em resposta, contramina o recorrido a argumentação da recorrente, tendo dessumido o quadro conclusivo que a seguir queda extractado.

“1 - O direito ao conhecimento das origens biológicas não é um direito absoluto nem ilimitado, aliás, como não o são quaisquer outros direitos.

2 - O legislador não está, pois, impedido de intervir, regulando o exercício deste direito, conforme deixou bem claro o Acórdão 23/06 do Tribunal Constitucional, publicado no D.R. 28/06 série I-A de 8/2.

3 - Deixando em aberto a possibilidade de o legislador vir a estabelecer um outro prazo de caducidade que não ofendesse o princípio da proporcionalidade.

4 - A nova redacção do artigo 1817.º do CC. da pela Lei 14/2009 de 1 de Abril, não afecta o conteúdo principal do direito ao conhecimento das origens genéticas.

5 - O Princípio da Concordância Prática ou da Harmonização, deve estar presente na interpretação e aplicação das normas constitucionais, conforme ensina o Prof. Doutor Gomes Canotilho in "Direito Constitucional e Teoria da Constituição", 73 edição, pago 1225: "O campo de eleição do princípio da concordância prática tem sido até agora o dos direitos fundamentais (colisão entre direitos fundamentais ou entre direitos fundamentais e bens jurídicos constitucionalmente protegidos). Subjacente a este princípio está a ideia do igual valor dos bens constitucionais (e não uma diferença de hierarquia) que impede, como solução, o sacrifício de uns em relação aos outros, e impõe o estabelecimento de limites e condicionamentos recíprocos de forma a conseguir uma harmonização ou concordância prática entre estes bens."

6 - A nova redacção daquele artigo harmoniza de forma proporcional o direito ao conhecimento das origens genéticas e do direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, e da certeza e segurança jurídica.

7 - Porquanto estabelece um prazo suficientemente longo de 10 anos para investigar judicialmente a maternidade/paternidade e até a possibilidade para intentar a respectiva acção judicial para além desse prazo.

8 - A actual redacção do artigo 1817.º apenas não deixa ao arbítrio do interessado o modo e o grau do exercício do seu direito, disciplinando, antes, o modo pelo qual deve ser exercido, harmonizando-o de forma proporcionada com outros direitos constitucionalmente consagrados.

9 - A constituição não consagra expressamente um direito ao conhecimento das origens genéticas, residindo o seu fundamento no direito ao desenvolvimento da personalidade - direitos pessoais - consagrados no artigo 26.º n.º 1 da constituição.

10 - No caso concreto, a personalidade da recorrente não fica minimamente afectada pelo facto de não poder exercer o direito de investigar a sua paternidade.

11 - Com efeito, tendo a recorrente 61 anos de idade, tem a sua personalidade completamente formada, como está perfeitamente localizada e identificada a sua identidade cultural, geográfica e familiar.

12 - Sem conceder, o facto da Recorrente ter, eventualmente, ido viver para o Porto ainda muito jovem, não justifica minimamente que só agora tenha vindo instaurar a presente acção, porquanto, as afirmações da recorrente no presente recurso são incompreensíveis e descabidas por sofrerem de uma contradição insanável com os factos que ela própria alega na Petição Inicial.

13 - Sem conceder, a ser verdade que toda a freguesia comentava e ainda hoje comenta que a D. Julinha (recorrente) é filha do Carteiro (Recorrido), se o carteiro sempre foi pessoa bastante conhecida na freguesia, se até a mulher do vice-presidente da Câmara, D. DD sabia de tudo isto, como é que vem afirmar no presente recurso que durante toda a sua vida tentou descobrir a sua ascendência biológica?

14 - A verdade é que a recorrente nunca esteve interessada em determinar e ver reconhecida e sua paternidade até à instauração da presente acção. Só agora. em 2010, sabe-se lá porquê, quando o recorrido, sem filhos, tem mais de 90 anos e ela mais de 61 é que está preocupada em determinar a sua paternidade.

15 - Pelos fundamentos expostos, a actual redacção do artigo 1817° do Código Civil não sofre de nenhuma inconstituciona1idade que o afecte, devendo em consequência ser negado provimento ao recurso, mantendo-se o douto saneador sentença recorrido.

16 - Não obstante a recorrente na sua motivação de recurso e nas respectivas conclusões, ponto 38, ter abordado alguma matéria de facto, das mesmas se conclui que só pretende ver reapreciada matéria de direito, mais concretamente a inconstitucionalidade da actual redacção do artigo 1817.º do CC.. Por outro lado, tendo o douto saneador sentença julgado e decidido matéria de direito, o recorrido não se opõe a que o presente recurso suba directamente ao Supremo Tribunal de Justiça nos termos do artigo 725.º do CPC.”

I.3. – Questão a decidir.

A questão nuclear e axial que vem suscitada pelo recurso interposto atina com a caducidade do direito de acção de investigação de paternidade e eventual constitucionalidade do artigo 1817.º do Código Civil na redacção que lhe foi dada pela Lei 14/2009 de 1 de Abril.

Ancilarmente poder-se-á equacionar a questão do abuso do direito.

II. – Fundamentação.

II.A. – De Facto.

- A Autora, AA nasceu, em ........, freguesia de Correlhã, no dia 14 de Maio de 1949;

- A Autora foi registada na Conservatória do Registo Civil de ......... como filha de CC, sem menção de paternidade;

- A acção ordinária (investigação de paternidade) n.º 1167/10.5TBPTL foi proposta, em 25 de Novembro de 2010.

II.1. – Caducidade do direito de acção de investigação de paternidade – artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril.

Tendo a acção sido proposta já no domínio da nova redacção do artigo 1817.º, n.º 1 do Código Civil, ex vi do artigo 1873.º do mesmo livro de leis, a questão adquire contornos diversos que tiveram por tela de juízo os casos decididos nos arestos deste Supremo Tribunal de Justiça de 11-03-2010; 08-06-2010 e o mais recente de 21-09-2010. [[1]]

Para a opção legislativa da Reforma de 1977 “podia afirmar-se, também, que o “direito à identidade pessoal” e o “direito à integridade pessoal” estavam implicados nesta questão. Saber quem sou exige saber de onde venho, quais são os meus antecedentes genéticos, onde estão as minhas raízes familiares, geográficas e culturais. Esta faceta da pessoa – a historicidade pessoal – tinha de ser satisfeita através dos meios legais para demonstrar os vínculos biológicos e constituir as relações jurídicas correspondentes. Também isto sem restrição aparente na lei fundamental. Creio, ainda, que devia implicar-se nesta discussão o “direito à não discriminação” dos filhos nascidos fora do casamento. É certo que não se podia pretender que os regimes de estabelecimento da paternidade fossem iguais, quer os filhos tenham nascido dentro ou fora do casamento. De facto, as circunstâncias do nascimento são diversas e, portanto, os modos de estabelecimento da paternidade não podem ser iguais: a existência de um marido e de um dever de coabitação exclusiva, habitualmente cumprido, no caso dos filhos nascidos dentro do casamento, é o fundamento das diferenças inevitáveis. Mas, se é verdade que os regimes têm de ser diferentes, eles não precisam de discriminar, desfavorecer, os filhos nascidos fora do casamento – nem podem fazê-lo, sob pena de inconstitucionalidade (art. 36.º, n.º 4, CRep). Nestas condições, poderíamos afirmar que o reconhecimento dos meios para estabelecer a paternidade tem de ter a maior abertura, tendencialmente; estes filhos não podem beneficiar de uma presunção de paternidade do marido… simplesmente porque não há marido; mas podem ser admitidos, com a maior largueza, a provar o vínculo biológico.

Do ponto de vista do suposto pai, deve ter sido considerado o seu “direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar”. De facto, a revelação de um filho desconhecido pode ser perturbadora, sobretudo quando, por circunstâncias ligadas à pessoa do suposto pai, ou pelo decurso do tempo, a revelação é muito surpreendente. Além de surpreendente, pode provocar danos efectivos no agregado familiar do interessado.” [[2]]

Foi o suposto direito fundamental, na opinião deste Professor, que terá orientado a Comissão da Reforma de 1977 a estimar que o prazo estatuído na lei para possibilidade do investigando propor ou intentar acção para averiguação da sua paternidade constituía uma “restrição proporcional” do direito de investigar a paternidade “para defesa de interesses basilares do sistema jurídico, como eram a “segurança jurídica”, a viabilidade prática dos processos judiciais no sentido de atingirem a verdade, e o exercício dos direitos conforme às suas finalidades legais – porque era disto que se tratava quando se falava da necessidade de garantir “segurança” aos pretensos pais, do perigo de “envelhecimento das provas” e do uso do direito de investigar só para obter heranças. A Comissão terá pensado que a limitação resultante da caducidade não retirava ao pretenso filho uma a limitação resultante da caducidade não retirava ao pretenso filho uma ampla liberdade de intentar a acção – aliás em condições de passar a beneficiar, muitas vezes, de uma presunção legal – de tal modo que não se podia dizer que essa restrição afectava o conteúdo essencial do direito fundamental.”

Tendo defendido esta posição há cerca de vinte anos, este Distinto Professor admite no artigo em questão que hoje, em face das circunstâncias vivenciais, sociológicas e histórico-pessoais os pratos da balança se desequilibraram ou deverão pender para a banda do filho-investigante. A justificação encontra-a “[desde] logo parece claro o movimento científico e social em direcção ao conhecimento das origens. Os desenvolvimentos da genética, nos últimos vinte anos, têm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, porventura com exagero; e com isto têm sublinhado o desejo de conhecer a ascendência biológica. Nestas condições, o “direito à identidade pessoal” e o “direito à integridade pessoal” ganharam “direito à identidade pessoal” e o “direito à integridade pesssoal”.

Devemos acrescentar, também, um novo direito fundamental implicado na questão: o “direito ao desenvolvimento da personalidade”, introduzido pela revisão constitucional de 1997 – um direito de conformação da própria vida, um direito de liberdade geral de acção cujas restrições têm de ser constitucionalmente justificadas, necessárias e proporcionais. E certo que tanto o pretenso filho como o suposto progenitor têm o direito de invocar tanto o pretenso filho corno o suposto progenitor têm o direito de invocar do lado do filho, para quem o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua fanu1ia, numa palavra, a sua “localização” no sistema de parentesco.” [[3]]

O valor da asseverada “segurança jurídica”, que terá escorado a opção assumida pelo legislador não parece impressionar este Ilustre Professor, nem tão pouco a nequícia, torpe e cavilosa motivação socavada para a demanda de patrimónios avultados dos pretensos progenitores ou o envelhecimento das provas. Quanto aos dois primeiros atribui-lhe factores ou efeitos patrimoniais que, por razões que seria aqui e agora ocioso elencar, não deveriam interferir com um direito mais pujante, qual seja o de reconhecimento da identidade pessoal do filho e do seu livre e consolidado desenvolvimento pessoal, do mesmo passo que o argumento do “envelhecimento das provas” “[perdeu] quase todo o valor, com a eficácia e generalização das provas cientificas” [[4]] Para de seguida afirmar que entre “o direito fundamental à reserva da intimidade privada e familiar, que poderá ser afectada pela revelação de factos comprometedores” confere maior relevância ao direito do filho a investigar a filiação “[ao] direito do progenitor a esquivar-se à sua responsabilidade inalienável; diria também que não podemos exagerar o direito à reserva da intimidade da farru1ia do suposto progenitor, sob pena de se estabelecerem outras limitações do direito de agir contra supostos progenitores casados – casados ao tempo do nascimento ou casados no momento do reconhecimento – que foram conhecidas do nosso sistema jurídico e, obviamente, foram consideradas discriminatórias contra os filhos adulterinos. Por outro lado, o pretenso pai talvez possa também invocar o “direito ao desenvolvimento da personalidade”, com o alcance de um direito de conformar livremente a sua vida. Porém, nesta matéria, atribuo pouco ou nenhum valor a este direito do suposto pai, pelas mesmas razões que me levaram, há muitos anos, a defender que o pai biológico tem um dever jurídico de perfilhar. De facto, não dou relevância à liberdade-de-não-ser-considerado-pai, só pelo facto de terem passado muitos anos sobre a concepção; pai e filho estão inexoravelmente ligados e tanto o “princípio da verdade biológica” que inspira o nosso direito da filiação quanto as noções sobre responsabilidade individual a que adiro não reconhecem uma faculdade de o pai biológico se eximir à responsabilidade jurídica correspondente.”

A questão, atenta a data da propositura da acção – 25 de Novembro de 2010 –, colima, tão só, com a constitucionalidade do artigo 1871.º, n.º 1 do Código Civil, na redacção que lhe foi conferida pela citada Lei n.º 14//2009, de 1 de Abril, ou seja, posta a questão em termos directos, se continua a ser inconstitucional o estabelecimento ou estatuição de um prazo legal para que o filho possa investigar a verdade biológica da sua filiação, postergando ou subalternizando o direito fundamental do pretenso pai aos direitos fundamentais de “reserva da intimidade da vida privada e familiar” ou mesmo o “direito ao desenvolvimento da personalidade”.

Antes, porém, de aquilatarmos da eventual colisão ou conflito de direitos fundamentais de carácter ou feição individual, isto é, radicados e ancorados na esfera jurídica subjectiva de cada um dos sujeitos em lide, vejamos se o ordenamento permite a restrição de direitos fundamentais, maxime o direito fundamental de “direito à identidade pessoal” e “direito à integridade pessoal”. Isto porque prévia a qualquer tentativa para procurar estabelecer um ponto de colisão ou uma área de resistência de acção ou de exercício dos direitos fundamentais importará reter “[em] primeiro lugar, o problema dos limites do direito no que toca à delimitação do respectivo âmbito de protecção constitucional, para definir o seu objecto e conteúdo principal. Trata-se de determinar os bens ou esferas da acção abrangidos e protegidos pelo preceito que prevê o direito e de os distinguir de figuras e zonas adjacentes, para saber, em abstracto e a priori, também em função de outros preceitos constitucionais, se inclui, não inclui ou exclui em termos absolutos as várias situações, formas ou modos pensáveis do exercício do direito – está em causa um problema de interpretação das normas constitucionais, que compreende o problema da determinação dos limites imanentes ou intrínsecos de um direito fundamental.

Depois, tem de considerar-se o problema da restrição do conteúdo do direito – depois de este ter sido previamente delimitado por interpretação ao nível constitucional, operada através de uma intervenção normativa abstracta do legislador ordinário, para salvarguarda de outros valores constitucionais, nos termos autorizados e nos casos previstos pela Constituição – põe-se aqui o problema das leis restritivas de direitos fundamentais.

E há ainda que pôr o problema da limitação ou harmonização dos direitos, liberdades e garantias, em face dos compromissos naturais e inevitáveis entre os direitos e valores constitucionais que conflituam ou podem conflituar directamente em determinadas situações ou tipos de situações concretas, e que, nessas circunstâncias, reciprocamente se limitam – estamos perante os problemas das colisões de direitos ou dos conflitos entre direitos e valores constitucionais comunitários.” [[5]]

Assim, o direito à integridade pessoal previsto no artigo 26.º da Constituição da República Portuguesa abarca duas componentes: “a integridade moral” e “a integridade física”. Em qualquer das dimensões jusconstitucionais por que se analise este direito fundamental ele atina com uma reserva absoluta de salvaguarda da integridade física e moral de um individuo, proibindo ou vedando qualquer espécie de ofensa ou agressão do corpo ou do espírito da pessoa humana. [[6]] O n.º 3 do mesmo preceito constitucional garante o direito à dignidade pessoal que, no entendimento dos Professores Gomes Canotilho e Vital Moreira, se trata de uma dimensão imanente do conceito mais lato do direito à dignidade da pessoa humana, por ser esta a dimensão fundante da ordem dos direitos fundamentais.

Já o direito ao desenvolvimento da personalidade “[recolhe], assim, no seu âmbito normativo de protecção, duas dimensões: (a) formação livre da personalidade, sem planificação ou imposição estatal de modelos de personalidade; (b) protecção da liberdade de acção de acordo com o projecto de vida e a vocação e capacidades pessoais próprias e (c) protecção da integridade da pessoa para além de protecção do art. 25°, tendo sobretudo, em vista a garantia da esfera jurídico-pessoal no processo de desenvolvimento.” “A densificação do direito ao desenvolvimento da personalidade pressupõe, como elementos nucleares: (l) a possibilidade de «interiorização autónoma» da pessoa ou o direito a «auto-afirmação» em relação a si mesmo, contra quaisquer imposições heterónomas (de terceiros ou dos poderes públicos); (2) o direito a auto-exposição na interacção com · os outros, o que terá especial relevo na exposição não autorizada do indivíduo nos espaços públicos (na imprensa, nos media, nos filmes, na publicidade); (3) o direito à criação ou aperfeiçoamento de pressupostos indispensáveis ao desenvolvimento da personalidade (ex.: direito à educação pensáveis ao desenvolvimento da personalidade (ex.: direito à educação ao conhecimento da paternidade e maternidade biológica.” [[7]]

Por seu turno o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar “[analisa-se] principalmente em dois direitos menores: (a) o direito a impedir o acesso de estranhos a informações sobre a vida privada e familiar e (b) o direito a que ninguém divulgue as informações I que tenha sobre a vida privada e familiar de outrem (cfr. Ccivil, art. 80°).” [[8]]

Na ponderação da equação dos direitos fundamentais em lide posicionam-se ou planteiam-se do lado do filho-investigante os direitos fundamentais dos “direito à identidade pessoal”, “direito à integridade pessoal” e “direito ao desenvolvimento da personalidade” e do lado do pretenso pai-investigado os de “reserva da intimidade da vida privada e familiar” e “direito ao desenvolvimento da personalidade”. Erigir, na constelação dos direitos fundamentais, aquele ou aqueles que, numa dimensão axiológica e metajurídica, devem sobrepujar na validação do quadro normativo para tutela de direitos de acção e de reconhecimento dos direitos subjectivos que o ordenamento ordinário confere e institui a cada sujeito jurídico apresenta-se como tarefa a desbravar para o caso que nos ocupa.

Uma primeira questão atina com a possibilidade de a norma constitucional prever a sua “regulamentação” a nível legislativo. “Nalguns preceitos, a Constituição autorizou a lei ordinária a restringir determinados direitos em alguns aspectos ou para determinadas finalidades, ou então atribuiu-lhe expressamente uma competência de regulação geral da matéria que pode ser interpretada competência de regulação geral da material No entanto, há muitos preceitos constitucionais – como, por exemplo, os relativos ao direito à vida, à integridade pessoal e outros direitos pessoais (artigos 24.º a 26.º), mas também os relativos às liberdades de criação cultural (artigo 42.°), de aprender e de ensinar (artigo 43.°), aos direitos de deslocação e emigração (artigo 44.°), de reunião e manifestação (artigo 45.º) – que não prevêem expressamente quaisquer restrições legislativas.”

Para este autor “[o] poder de restrição é um poder excepcional no plano normativo, não apenas porque necessita de ser autorizado, mas também porque não se justifica em regra (como regra). O legislador tem, por isso, de se basear – nas situações ou casos em que a restrição se · tome necessária – num outro valor constitucional que imponha o sacrifício do direito fundamental. Se esse valor não existir ou não exigir tanto quanto o legislador alega, então a restrição não é legítima e viola o preceito constitucional que prevê o direito fundamental em causa. Não se trata aqui de um limite abstracto fixo, de uma proibição absoluta. Mas de uma proibição relativa, referida a um conteúdo constitucional elástico e só em concreto determinável. Neste sentido, o conteúdo inatacável dos preceitos relativos aos direitos, liberdades e garantias começa onde acaba a possibilidade e a legitimidade da sua restrição.” [[9]]

Estando em causa direitos fundamentais como os “direito à identidade pessoal”, “direito à integridade pessoal” ou ainda o “direito ao desenvolvimento da personalidade” ou de “reserva da intimidade da vida privada e familiar”, todos direitos de raiz e feição absoluta, a regra será a não restrição dos direitos fundamentais, a menos que estejam em causa ou possam interferir no exercício desses direitos outros valores de “rango” constitucional que justifiquem a regulação por via legislativa.

Em nosso juízo, e permitindo-nos tomar as razões alinhadas pelo Ilustre Professor Guilherme de Oliveira no artigo supra citado, não se nos afigura que razões de “segurança jurídica”, “envelhecimento das provas” ou de “caça fortuna” possam estribar razões de sentido restritivo, por via legislativa, para limitação dos direitos fundamentais “absolutos” que competem neste confronto. Na verdade, e aqui alinhando com a posição do Professor Vieira Andrade – cfr. nota infra – não se afigura que possam ser invocadas razões de segurança jurídica para limitar por via legislativa o direito de qualquer pessoa ao reconhecimento da sua identidade e integridade pessoal ou ainda o direito ao livre desenvolvimento da personalidade. Do mesmo passo as razões de ordem prático—processual como o envelhecimento das provas não conferem dignidade para poderem ser invocadas como razões idóneas, válidas e consistentes quando postas em confronto com os direitos fundamentais fundantes da pessoa humana. (Valem aqui, data vénia, os argumentos adiantados pelo Professor Guilherme de Oliveira no já citado artigo quanto à objectividade e cientificidade das provas que hoje estão disponíveis para prova da filiação, maxime o ADN dos sujeitos envolvidos que pode ser colhido mesmo após o respectivo decesso.) O motivo de ordem patrimonial que poderia estar presente na opção do legislador constitui-se perverso e de frágil consistência estrutural e sistémica para poder ser esgrimido contra valores e princípios essenciais da pessoa humana. [[10]]

Ainda, porém, que concedamos poder o legislador actuar por via legislativa na restrição dos direitos fundamentais anunciados, e nos orientássemos para um conflito ou confronto de direitos fundamentais de feição individual, a sorte não seria diversa.

“Um dos pontos mais complexos da dogmática jurídica dos direitos fundamentais prende-se com o problema das relações entre as normas constitucionais garantidoras de direitos fundamentais e as normas legais que, a vários títulos, com elas se relacionam.” [[11]]

A doutrina trata a questão de colisão de direitos fundamentais e entre direitos fundamentais e bens jurídicos, considerando que “de um modo geral, considera-se existir uma colisão autêntica de direitos fundamentais quando o exercício de um direito fundamental por parte do seu titular colide com o exercício do direito fundamental por parte de outro titular.” [[12]] No entanto, “os direitos consideram-se direitos prima facie e não direitos definitivos, dependendo a sua radicação subjectiva da ponderação e da concordância feita em face de determinadas circunstâncias concretas. O Tatbestand (o domínio normativo) de um direito é também sempre, em primeiro lugar, “um domínio potencial”, só se tornando um domínio actual, depois de averiguação das condições concretamente existentes. A conversão de um direito prima facie em direito definitivo poderá, desde logo, ser objecto de lei restritiva, que, nos termos autorizados pela Constituição, representará um primeiro instrumento de solução de conflitos”. [[13]/[14]]

Para Vieira de Andrade “[haverá] colisão ou conflito sempre que se deva entender que a Constituição protege simultaneamente dois valores ou bens em contradição numa determinada situação concreta (real ou hipotética). A esfera de protecção de um direito é constitucionalmente protegida em termos de intersectar a esfera de outro direito ou de colidir com uma outra norma ou princípio constitucional.” É ainda este autor que adverte para que “[a] solução dos conflitos e colisões entre direitos, liberdades e garantias ou entre direitos e valores comunitários não pode, porém, ser resolvida através de uma preferência abstracta, com I o mero recurso à ideia de uma ordem hierárquica dos valores constitucionais”, não devendo erigir-se o principio da harmonização ou da concordância prática enquanto critério ou solução dos conflitos ou pelo menos “ser aceite ou entendido como um regulador automático”. [[15]]

Na metodologia para a resolução de conflitos entre direitos “[deve] atender-se, desde logo, ao âmbito e graduação do conteúdo dos preceitos constitucionais em conflito, para avaliar em que medida e com que peso cada um dos direitos está presente na situação de conflito – trata-se de uma avaliação fundamentalmente jurídica, para saber se estão em causa aspectos nucleares de ambos os direitos ou, de um ou de ambos, aspectos de maior ou menor intensidade valorativa em função da respectiva protecção constitucional.

Deve ter-se em consideração, obviamente, a natureza do caso, apreciando o tipo, o conteúdo, a forma e as demais circunstâncias objectivas do facto conflitual, isto é, os aspectos relevantes da I situação concreta em que se tem de tomar uma decisão jurídica – em vista da finalidade e a função dessa mesma decisão.

Deve ainda ter-se em atenção, porque estão em jogo bens pessoais, a condição e o comportamento das pessoas envolvidas, que podem ditar soluções específicas, sobretudo quando o conflito respeite a conflitos entre direitos sobre bens e liberdades.” [[16]]

Tendo como linha de orientação o que vem ensinado, haverá que indagar quais os factores de ponderação que no caso concreto podem ser alinhados para aferição dos direitos e valores em causa. Nesta ponderação terão que intervir critérios ou princípios de proporcionalidade, de razoabilidade, de adequação, de integração pessoal e familiar e de equivalência dos efeitos na esfera pessoal e familiar de cada um dos sujeitos involucrados.

O controlo da proporcionalidade passa por averiguar se o meio restritivo escolhido deva ser o mais proporcional ou não deva ser desproporcionado. “Aquilo que deve ser indisponível são os direitos fundamentais, pelo que a decisão de restrição, essa sim, é sindicável em toda a extensão e com toda a intensidade; o meio restritivo escolhido, pressuposto que seja apto e indispensável, só tem que ser não desproporcional. Existe inconstitucionalidade se a restrição for desproporcionada, não já se houver um outro meio que, no entender do órgão de controlo, seja, não menos restritivo, mas simplesmente mais adequado ou mais oportuno.”

“Com base na jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, a doutrina tende a seleccionar como critérios orientadores da intensidade do controlo de proporcionalidade: a gravidade da restrição e a importância e a premência dos interesses que justificam a restrição (no sentido de que a quantidade admissível desses dois termos se determina recíproca e proporcionalmente condicionando a adequação da relação em apreço e o correspondente controlo), bem como a relevância dos interesses de liberdade protegidos pelo direito fundamental restringido (no sentido de que quanto mais elementares e vitais forem as manifestações da liberdade pessoal directamente afectadas pela restrição maior exigência se deve colocar no seu controlo). Se aqueles primeiros critérios se identificam com a própria natureza do controlo de proporcionalidade, já este último remete para uma diferenciação dentro da protecção garantida pelos direitos fundamentais, seja em termos de zonas de resistência diferenciada consoante a liberdade afectada está mais ou menos próxima do núcleo de autonomia e dignidade da pessoa humana, seja em função do alcance diferenciado com que os diversos grupos de direitos fundamentais representam formas mais ou menos elementares de desenvolvimento da personalidade, na · medida em que estejam mais directamente relacionados com a protecção de esferas pessoais ou com a integração social do indivíduo (por exemplo, as liberdades pessoais ou os direitos económicos).” [[17]]

Já a razoabilidade deve ser colimada pela ponderação dos valores socialmente prevalentes, porque historicamente aceites numa comunidade societária estabelecida e organizada, que regem e geram os vectores de pensamento por que um indivíduo historicamente situado se orienta e conduz em ordem a conformar a sua vivência sentido comum racional e intelectualmente sedimentado. Vale por dizer que na ponderação do que deve ser entendido por razoável intervêm valores sociais que se projectam na interioridade racional do indivíduo e lhe ditam o agir pessoal e o actuar social.

Os critérios de adequação comportam na sua fisionomia societária uma isonomia entre um amplexo de regras cooptadas entre o vivenciar pessoal e o sentir comum que se congraçam e completam de forma a criar um conjunto harmónico e plausível dos indivíduos socialmente engolfados e donde emerge um fio condutor assumido e adoptado como forma mais apta para colimar o vivenciar pessoal e social. Na adequação social converge uma conformação do sentir pessoal com o entorno axiológico-social que potencia uma convivência socialmente adquirida e historicamente assumida. Daí que para que se possa aferir da conformidade entre dois vectores haja que indagar dos valores prevalentes em cada momento. Para o caso em análise afigura-se-nos que a sociedade tenderá a privilegiar o conhecimento das origens que permita a assunção de uma identidade completa e integrada em detrimento de valores de estabilidade familiar e/ou pessoal.

Nos critérios de integração pessoal e social e de equivalência dos efeitos na esfera pessoal dos sujeitos engolfados deverão tomar-se em consideração a necessidade de quem quer ter o direito a conhecer a sua origem familiar, por forma a propiciar um desenvolvimento pessoal em que não faleça uma referência essencial e axial da constituição do individuo, a saber donde provém e por quem foi gerado. Não se constitui uma individualidade harmoniosa se não se conhecerem ou não estiverem estabelecidas, tanto no plano pessoal com o social, as origens fundacionais do sujeito. Do mesmo passo, na cultura socialmente dominante, e que a Constituição da República Portuguesa acolheu de forma inderrogável e irrefragável na sua filosofia humanista e de preeminência dos valores do individuo colocado numa sociedade que se quer orientada e projectada para propinar um desenvolvimento pessoal harmonioso e arrimado a valores personalistas, não colhe a ideia de que a alguém possa ser coarctado o direito a conhecer as suas origens familiares, fundado tão só em razões de índole formal e normativa. Os valores do indivíduo sobrepujam e superam razões de ordem formal, por levarem associados vectores filosófico-humanistas que a sociedade quis privilegiar e sedimentar na consciência pessoal e social.

No conspecto dos valores em confronto, cremos dever privilegiar aqueles que abonam e exornam a pessoa humana em detrimento de valores de perturbação da tranquilidade familiar, da aquisição das situações pessoais e familiares estabelecidas e estabilização das relações económicas e/ou sucessórias. Vale por dizer que propendemos, na esteira, dos arestos supra citados que o n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil, na versão da Lei n.º 114/2009, de 1 de Abril, deve ser considerada inconstitucional, por impor um limite temporal ao direito de alguém ver reconhecida a sua paternidade.

III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam os juízes que constituem este colectivo, na 1.ª secção deste Supremo Tribunal de Justiça, em:

- Declarar inconstitucional a norma do n.º 1 do artigo 1871.º do Código Civil, na redacção que lhe foi conferida pela Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril e, em consequência, revogar o despacho impugnado que deverá ser substituído por outro que ordene o prosseguimento da acção.

- Custas pelo recorrido.


Lisboa, 06 de Setembro de 2011


Gabriel Catarino (Relator)
Sebastião Póvoas
Moreira Alves

_______________________


[1] Todos em www.stj.pt. Já o mais recente acórdão deste Supremo Tribunal quanto a esta matéria e que declara a inconstitucionalidade do artigo 3.º da Lei n.º 14/2009, de 1 de Abril, reportando-se a uma acção proposta em 2008 estima que “[Declarado] inconstitucional o prazo de 2 anos para a caducidade do direito de acção de investigação da paternidade do art. 1817º, nº1 do CC, o novo prazo de 10 anos, estabelecido pelo art. 3.º da Lei nº 14/09, de 01.04, é, também, inconstitucional. II – Isto porque é limitador da possibilidade de investigação a todo o tempo, constituindo uma restrição não justificada, desproporcionada e não admissível do direito de conhecer a ascendência.”
[2] cfr. Oliveira, Guilherme, In “Caducidade das Acções de Investigação”, in Comemorações dos 35 anos do Código Civil e dos 25 anos da Reforma de 1977”, Vol. I, “Direito da família e das Sucessões”, Coimbra Editora, 2004, págs. 51 e 52.
[3] Oliveira, Guilherme, in op. loc. cit. pág. 53
[4] Oliveira, Guilherme, in op. loc. cit. pág. 55.
[5] cfr. Vieira de Andrade, José Carlos, in “Os Direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 2001, pág. 277.
[6] cfr. Gomes Canotilho, J. J. e Vital Moreira, in “Constituição da República Portuguesa. Anotada.”, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2007, págs. 453 a 457.
[7] cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, in op. loc. cit., pág. 463 e 464.
[8] Gomes Canotilho e Vital Moreira, in op. loc. cit., pág. 467.
[9] cfr. Vieira de Andrade, José Carlos, in “Os Direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 2001, págs. 288 e 289. Esse autor considera não lhe parecer “defensável] que, por um lado, se exija a autorização de restrição expressa, em nome da segurança Jurídica (com uma função de advertência e um alcance de proibição), e, ao mesmo tempo, se admita, sem mais, a intervenção legislativa limitadora a posteriori, quando esteja em causa um conflito entre direitos fundamentais ou entre direitos e valores comunitários, mesmo para além das situações de limites imanente”. Cfr. pág. 291.
[10] “Em segundo lugar, a ideia de evitar a “caça às heranças” tem de se , entender de outro modo. E certo que a cobiça não desapareceu e certamente aparecerão acções movidas apenas por este feio sentimento. Mas, por um lado, não ficou nunca muito claro que as acções antigas fossem sempre intentadas por mulheres sem escrúpulos contra honestos cidadãos, com o fito de lhes comprometer a fortuna; por outro lado, quer o acesso ao direito quer a composição da riqueza mudaram. Muitas das acções que poderiam beneficiar da imprescritibilidade decorreriam hoje, provavelmente, entre autores e réus com meios de fortuna semelhantes, que se exprimem por uma formação profissional e por um emprego. Provavelmente, o móbil seria o de esclarecer a existência do vínculo familiar. Forçar o progenitor a assumir a sua responsabilidade, descobrir o lugar no sistema de parentesco como meio de combater a solidão individual; e porventura num momento em que o filho não tem pretensões patrimoniais – num momento em que já não poderá formular pretensões de natureza alimentar e ainda não terá pretensões de natureza sucessória.” – Guilherme Oliveira, in op. loc. cit. págs. 54 e 55.
[11] cfr. Gomes Canotilho, José Joaquim, in “Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, Coimbra, Almedina, 6.ª edição, pág. 1247.
[12] Apud op. loc. cit. pág. 1255. Poderá, ainda acontecer que existindo concorrência de direitos fundamentais, “um determinado “bem jurídico” leve à acumulação, na mesma pessoa, de vários direitos fundamentais”
[13] Gomes Canotilho, J. Joaquim, in op. loc. cit. pág. 1257.
[14] Para Cristina Queiroz, in “Direitos Fundamentais. Teoria Geral”, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2010, “A “configuração” dos direitos, tal como os conceitos de “restrição” e “pressuposto de facto”, não se mostra independente do caso concreto. Abstractamente os direitos não são incompatíveis. A incompatibilidade ou conflito só poderá dar-se perante um caso concreto. A necessidade de I’ “concordância prática” ocorrerá ou com base numa “harmonização” de. ; direitos ou com base na “prevalência” ou “prioridade” de um direito (ou · bem jurídico) em relação ao outro. Esta prevalência ou prioridade tanto pode dar-se a “nível constitucional” como a “nível legislativo” ou na elaboração da “norma de decisão”. Será, por conseguinte, nestas hipóteses de conflito, que surge o problema da “restrição” e/ou “configuração” de direitos fundamentais.” – pág. 250. Já para Vieira de Andrade, José Carlos, in “Os Direitos fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976”, Almedina, Coimbra, 2.ª edição, 2001, a colisão ou conflito de direitos fundamentais “[que] implicam uma limitação recíproca dos direitos colidentes ou conflituais, podem surgir em abstracto, ao nível legislativo, quando o preceito constitucional não tenha previsto qualquer restrição para um determinado direito ou se torne necessário ir além das restrições legislativas previstas, bem como, obviamente, naquelas hipóteses em que a Constituição
preveja direitos ou valores estruturalmente incompatíveis.”, pág. 277.
[15] cfr. Op. loc. cit. pág. 311 e 312 e 314. Na lição deste autor “[o] princípio da concordância prática neste domínio não impõe necessariamente a realização óptima de cada um dos valores em jogo, uma harmonização em termos matemáticos. É apenas um método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação – ou, para utilizar uma terminologia anglosaxónica, um balancing ad hoc – de todos os valores constitucionais aplicáveis, para que se não ignore algum deles, para que a Constituição (essa, sim) seja preservada na maior medida possível. Ora, a realização máxima das prescrições constitucionais depende da intensidade ou modo como os direitos são afectados no caso concreto, atentos o seu conteúdo e a sua função específica. Isto é, a medida em que se vai comprimir cada um dos direitos (ou valores) é diferente, consoante o modo como se apresentam e as alternativas possíveis de solução do conflito.”
[16] cfr. Vieira de Andrade, José Carlos, in op.loc. cit. pág. 316 e 317.
[17] cfr. Reis Novais, Jorge, in “Os Princípios Constitucionais Estruturantes da República Portuguesa”, Coimbra Editora, 2011 (reimpressão), pág. 183.


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