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segunda-feira, 14 de outubro de 2013

FIANÇA ASSUNÇÃO DE DÍVIDA CONHECIMENTO OFICIOSO DECISÃO SURPRESA - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - 03.10.2013


Acórdãos TRL
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
2092/11.8TVLSB.L1-2
Relator: JORGE LEAL
Descritores: FIANÇA
ASSUNÇÃO DE DÍVIDA
CONHECIMENTO OFICIOSO
DECISÃO SURPRESA

Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 03-10-2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE

Sumário: I - No seu aspeto funcional a assunção de dívida (em particular a assunção de dívida cumulativa) e a fiança são tão próximas que na prática se torna por vezes difícil saber se o terceiro quis chamar a si a obrigação que recaía sobre o devedor ou pretendeu apenas afiançar o devedor, responsabilizando-se acessória e subsidiariamente pelo cumprimento.
II – Tendo-se provado que com vista à regularização da dívida de uma determinada sociedade (“E”, S.A.) ocorreram reuniões entre a credora e a sociedade devedora, de quem os réus eram os legais representantes, “tendo ficado convencionado que os Réus, administradores da “E”, assumiam pessoalmente o pagamento da quantia de € 59.665,88, pagando eles”, sem se consignar menção a qualquer acessoriedade ou subsidiariedade da obrigação dos réus em relação à da primitiva devedora, e sem que se mostre demonstrado que a credora exonerara a antiga devedora de responsabilidade, configura-se uma situação de assunção de dívida cumulativa por parte dos réus.
III - O tribunal a quo, ao qualificar o compromisso dos réus como sendo uma assunção de dívida, quando a autora o qualificara de fiança, agiu no legítimo exercício do poder de qualificação jurídica dos factos, ínsito à função soberana de administração da justiça (art.º 202.º da CRP; art.º 664.º do CPC), cingindo-se à resolução da questão do alcance do compromisso assumido pelos réus perante a autora, se obrigação a título pessoal, se em nome e em representação da sociedade, sendo certo que a qualificação jurídica desse compromisso como assunção de dívida era, face à situação desenhada pelas partes, plausível e previsível, atendendo à proximidade existente entre as figuras da fiança e da assunção de dívida cumulativa.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Parcial: Acordam os juízes no Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
Em 06.10.2011 “A” –…, S.A., intentou nas Varas Cíveis de Lisboa ação declarativa de condenação com processo ordinário contra “B”, “C” e “D”.
A A. alegou, em síntese, que no exercício da sua atividade comercial forneceu à sociedade “E”, S.A. diverso material. Dessas transações resultou para a A. um saldo credor, sobre a dita sociedade “E”, no valor de € 59 665,79. Porque a “E”se encontrava em incumprimento para com a A., depois de negociações entre as administrações das duas sociedades, as partes chegaram a acordo quanto à resolução dos assuntos pendentes, tendo-se a “E”e os seus administradores obrigado a cumprir as suas obrigações para com a A., na sequência do que os administradores da “E”, os ora três Réus, enviaram à A. uma carta datada de 18.11.2010, na qual se obrigaram pessoalmente a pagar à A. o saldo credor de € 59 665,88, sendo € 30 000,00 até ao final do mês de dezembro de 2010 e os restantes € 29 665,88 até ao final de janeiro de 2011. Os RR. prestaram pois à A. uma verdadeira fiança. Porém, nem a “E”nem os RR. pagaram os referidos montantes, tendo entretanto a “E”sido declarada insolvente.
A A. terminou pedindo que a ação fosse julgada procedente, por provada e em consequência os RR. condenados, solidariamente entre si, a pagarem à A. a quantia de € 59 665,88, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4% ao ano, vencidos até 06.10.2011, no valor de € 1 733,31, bem como dos juros vincendos, calculados à mesma taxa de 4% ao ano, até total e efetivo pagamento.
Os RR. contestaram, negando ter prestado qualquer fiança e que a declaração referida pela A. possa valer ou ser interpretada como tal. Mais alegaram que a A. confessou, por via da reclamação deste mesmo crédito no processo de insolvência da “E”, não existir qualquer responsabilidade pessoal dos ora RR. por essa dívida; invocaram o benefício da excussão, prevista no art.º 638.º do Código Civil; alegaram que a obrigação de fiança, se existisse, seria conjunta e não solidária, nos termos do art.º 649.º n.º 2 do Código Civil; invocaram o direito a exigirem a compensação entre o crédito da A. e um alegado crédito da “E”sobre uma sociedade coligada com a A.; reclamaram contra a inclusão do IVA no crédito peticionado, no valor de € 15 053,18, uma vez que a A. teria recuperado o IVA por força do processo de insolvência citado.
Os RR. concluíram pela improcedência da ação por não provada e sua consequente absolvição do pedido.
A A. replicou, reiterando que os RR. se obrigaram, se comprometeram pessoalmente para com ela, chame-se-lhe “fiança ou outra coisa qualquer” (sic), sendo a carta apenas a sequência das negociações antes havidas, das quais resultou que os RR. assumiriam pessoalmente o pagamento dos € 59 665,88, pelo que “a assunção pessoal de cumprimento do pagamento por parte dos Réus foi prévia à carta…” (sic). Mais pugnou pela improcedência das outras exceções arguidas pelos RR., terminando como na petição inicial.
Em audiência preliminar emitiu-se saneador tabelar e procedeu-se à seleção da matéria de facto assente e da matéria de facto controvertida.
Realizou-se audiência de discussão e julgamento e a final o tribunal decidiu a matéria de facto.
Em 25.01.2013 foi proferida sentença em que se julgou a ação procedente e consequentemente condenou-se os RR., solidariamente, a pagarem à A. a quantia de € 59 665,88, acrescida de juros vencidos e vincendos, à taxa legal de 4%, sobre o montante de € 30 000,00 desde 1 de janeiro de 2011 (inclusive) e sobre o montante de € 29 665,88 desde 1 de Fevereiro de 2011 (inclusive).
Os Réus apelaram da sentença, tendo apresentado motivação em que formularam as seguintes conclusões:
(…).
A apelada contra-alegou, pugnando pela manutenção da sentença recorrida.
Foram colhidos os vistos legais.
FUNDAMENTAÇÃO
As questões suscitadas neste recurso são as seguintes: se os RR. se obrigaram perante a A. a pagarem a quantia peticionada nestes autos; no caso de resposta positiva a essa questão, qual a natureza jurídica dessa obrigação, em particular se é uma fiança, se é uma assunção de dívida; se o tribunal a quo, ao qualificar o caso de assunção de dívida, proferiu decisão surpresa, proibida nos termos do art.º 3.º n.º 3 do CPC.
Primeira questão (obrigação dos RR.)
O tribunal a quo deu como provada, sem impugnação pelas partes, a seguinte
Matéria de facto
1. Por solicitação da sociedade “E”, S.A., a Autora forneceu a esta sociedade diversos produtos do seu fabrico, designadamente, peças para o produto C..., propriedade dessa sociedade “E”(alínea A) da matéria assente).
2. A Sociedade “E”, S.A. pagou a factura n.º 16, emitida pela Autora, junta a fls. 11 dos autos, no valor de € 844,08, cujo conteúdo integral se dá aqui por reproduzido (alínea B) da matéria assente).
3. A sociedade “E”, S.A. pagou a factura n.º 4, emitida pela Autora, junta a fls. 10 dos autos, no valor de € 15.900,00, cujo conteúdo integral se dá aqui por reproduzido, tendo a Autora emitido o respectivo recibo que se encontra a fls. 16 dos autos (alínea C) da matéria assente).
4. A sociedade “E”, S.A. pagou à Autora por conta da factura n.º 49, no valor de € 11.270,29, junta a fls. 12 dos autos, cujo conteúdo integral se dá aqui por reproduzido, a quantia de € 7.155,92 e a quantia de €3.020,00, pagamentos esses constantes, respectivamente, dos recibos de fls. 15 e 17, cujo conteúdo integral se dá aqui por reproduzido (alínea D) da matéria assente).
5. No tocante à factura n.º 59 emitida pela Autora, no valor de € 7.404,72, junta a fls. 14 dos autos, cujo conteúdo integral se dá aqui por reproduzido, em função de uma rejeição de alguns produtos, foi acordado entre a Autora e a sociedade “E”, S.A., uma redução de 50 % no valor da factura, pelo que a Autora emitiu a favor dessa sociedade “E”a nota de crédito n.º 4, no valor de € 7.733,21, junta a fls. 18, cujo conteúdo integral se dá aqui por reproduzido (alínea E) da matéria assente).
6. Os Réus são administradores da sociedade “E”, S.A. (alínea F) da matéria assente).
7. Essa sociedade, por sentença de 14 de Abril de 2011, junta a fls. 34 dos autos, cujo conteúdo integral se dá aqui por reproduzido, foi declarada insolvente (alínea G) da matéria assente).
8. A declaração de insolvência referida na alínea anterior, foi decretada na sequência de processo instaurado pela sociedade “E”, S.A., através da petição cuja cópia se encontra de fls. 138 a 287 dos autos, cujo conteúdo integral se dá aqui por reproduzido (alínea H) da matéria assente).
9. No processo de insolvência antes mencionada a ora Autora reclamou créditos, conforme requerimento cuja cópia se encontra de fls. 123 a 137 dos autos, cujo conteúdo integral se dá aqui por reproduzido (alínea I) da matéria assente).
10. Os Réus enviaram à Autora a carta junta a fls. 21 e 22 dos autos, datada de 18 de Novembro de 2010, que aqui se dá por integralmente reproduzida, e onde nomeadamente se lê: «(…) Serve a presente, e no seguimento das negociações havidas com V. Exas., para dar garantia do integral cumprimento das condições acordadas pela “E”, S.A. com as sociedades “F”, Lda. e “A”, Lda., nos prazos e condições acordados em 12 de Novembro de 2010. Assim, mais informamos que: 1) demos desde já ordem junto do BANIF para a transferência de um montante de 250.000 Euros, em 19 de Novembro de 2010, para a conta da sociedade “F”, Lda. com vista à libertação da garantia bancária em vossa posse; 2) demos igualmente ordem junto do BANIF para a execução de uma transferência de 50.000 Euros, a realizar no próximo dia 22 de Novembro, para a conta da sociedade “F”, Lda.. Assume, o Conselho de Administração da “E”, S.A., nas pessoas dos seus administradores, “B”, “C” e “D”, o compromisso de proceder à liquidação do montante adicional de 59.665,88 Euros, nas seguintes condições e prazos. 1) Até final do mês de Dezembro de 2010, proceder à liquidação de 30.000 Euros; 2) Até final do mês de Janeiro de 2011, proceder à integral liquidação dos valores em dívida, ou seja, de 29.665,88 Euros. Mais se acrescenta que, para a cabal conclusão do processo ora iniciado, deverá a “F”, Lda., proceder À entrega junto da instituição de crédito BANIF, da Garantia Bancária N/NR .../09/..., emitida pelo BANIF e o seu não accionamento junto desta mesma instituição. (…)» (alínea J) da matéria assente).
11. Nem a sociedade “E”, S.A. nem os Réus efectuaram os pagamentos mencionados no documento constante da alínea anterior (alínea K) da matéria assente).
12. A sociedade “E”, S.A. desenvolveu também relacionamento comercial com as sociedade “F” ..., Limitada e “A” M…, S.A. (alínea L) da matéria assente).
13. A Autora forneceu à sociedade “E”, S.A., a pedido desta, os produtos mencionados na factura n.º 49, junta a fls. 12 dos autos, na factura n.º 55, junta a fls. 13 e na factura n.º 59, junta a fls. 14, facturas cujo conteúdo integral se dá aqui por reproduzido (art. 1.º da BI).
14. Fornecimentos esses nos montantes que constam das ditas facturas (art. 2.º da BI).
15. A carta referida na alínea J) foi feita na sequência de negociações entre a Autora e a sociedade “E”, S.A. e a sociedade “F” ..., Limitada, tendo sido convencionado nessas negociações que os Réus assumiam pessoalmente o pagamento dos € 59.665,88, pagando eles (art. 4.º da BI).
16. Nessa altura, Novembro de 2010, a sociedade “E”, S.A. já estava em sério risco de incumprimento (art. 5.º da BI).
17. Os moldes referidos no artigo 3.º da base instrutória foram pagos pela sociedade “E”, S.A., e a massa insolvente desta tomou posse deles e levantou-os das instalações da “F” Lda. no início de 2012.
O Direito
Nos termos do art.º 236.º, n.º 1, do Código Civil, “a declaração negocial vale com o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele.”
Mas, “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração emitida” (n.º 2 do art.º 236.º do Código Civil).
No caso dos autos, a A. (“A”) forneceu à sociedade “E”, S.A. diverso material, cujo pagamento pela “E”estava em dívida. Ocorreram então negociações entre a A., a sociedade “E”, S.A. e a sociedade “F” ..., Limitada, tendo ficado convencionado que os Réus, administradores da “E”, assumiam pessoalmente o pagamento da quantia de € 59.665,88, pagando eles (n.ºs 6 e 15 da matéria de facto). Na sequência desse acordo os RR. enviaram à A. a carta mencionada no n.º 10 da matéria de facto, na qual declaram que (sublinhados nossos) “(…) Serve a presente, e no seguimento das negociações havidas com V. Exas., para dar garantia do integral cumprimento das condições acordadas pela “E”, S.A. com as sociedades “F”, Lda. e “A”, Lda., nos prazos e condições acordados em 12 de Novembro de 2010. Assim, mais informamos que: 1) demos desde já ordem junto do BANIF para a transferência de um montante de 250.000 Euros, em 19 de Novembro de 2010, para a conta da sociedade “F”, Lda. com vista à libertação da garantia bancária em vossa posse; 2) demos igualmente ordem junto do BANIF para a execução de uma transferência de 50.000 Euros, a realizar no próximo dia 22 de Novembro, para a conta da sociedade “F”, Lda.. Assume, o Conselho de Administração da “E”, S.A., nas pessoas dos seus administradores, “B”, “C” e “D”, o compromisso de proceder à liquidação do montante adicional de 59.665,88 Euros, nas seguintes condições e prazos. 1) Até final do mês de Dezembro de 2010, proceder à liquidação de 30.000 Euros; 2) Até final do mês de Janeiro de 2011, proceder à integral liquidação dos valores em dívida, ou seja, de 29.665,88 Euros. Mais se acrescenta que, para a cabal conclusão do processo ora iniciado, deverá a “F”, Lda., proceder À entrega junto da instituição de crédito BANIF, da Garantia Bancária N/NR .../09/..., emitida pelo BANIF e o seu não accionamento junto desta mesma instituição. (…)» (alínea J) da matéria assente).
A dita carta está assinada pelos três Réus, a seguir à menção “A Administração” e sobre o carimbo ““E”, S.A. A Administração”.
Afigura-se-nos ser claro que, face ao dado como provado relativamente às negociações havidas entre as sociedades citadas (em que os RR., enquanto representantes da “E”, participaram) ou seja, que ficara acordado que os RR. assumiam “pessoalmente”, “pagando eles”, o pagamento “dos € 59.665,88”, que a dita carta não podia deixar de ser interpretada, por um declaratário normal que estivesse na situação da A., como sendo a concretização do compromisso pessoal assumido pelos RR., ou seja, que com a dita declaração os RR. pretendiam deixar expressa a intenção de se obrigarem, eles próprios, perante a A., a pagarem a mencionada quantia de € 59.665,88. A utilização, no singular, da figura de “o Conselho de Administração” na formalização da declaração, não tinha a virtualidade de escamotear o referido sentido da declaração, face à expressa identificação das pessoas que assumiam o compromisso de proceder à liquidação da quantia (“nas pessoas dos seus administradores, “B”, “C” e “D””), conjugado, repete-se, com o historial da carta. Sendo certo que não há qualquer indício de que os RR. não podiam contar com essa interpretação, ou que a sua vontade foi diversa, ou que, sendo-o, a A. teve dela conhecimento.
Em suma, concorda-se com a sentença recorrida, quando concluiu que os RR. se obrigaram, pessoalmente, a pagar à A. a mencionada quantia de € 59 665,88.
Segunda questão (fiança ou assunção de dívida)
A fiança constitui um meio de garantia de um crédito, através do qual um terceiro (o fiador) “garante a satisfação do direito de crédito, ficando pessoalmente obrigado perante o credor” (nº 1 do art.º 627.º do Código Civil). A fiança caracteriza-se pela acessoriedade face à obrigação que recai sobre o principal devedor (n.º 2 do art.º 627.º do Cód. Civil), traduzida no disposto nos artigos 628.º n.º 1, 631.º, 632.º n.º 1, 634.º, 637.º n.º 1, 651.º. O fiador chama a si a obrigação de realizar a prestação do devedor, se este não cumprir, respondendo com o seu património nos termos gerais (art.º 601.º), sem prejuízo das regras de subsidiariedade que forem aplicáveis, maxime o benefício da excussão (artigo 638.º do Código Civil).
A fiança constitui-se por contrato (art.º 457.º, a contrario, do Código Civil), devendo ser respeitada a forma exigida para a obrigação principal (art.º 628.º, n.º 1 do Cód. Civil). A vontade de constituição da fiança deve ser manifestada pelo fiador de forma expressa (n.º 1 do art.º 628.º do Código Civil), isto é, deve resultar diretamente da declaração do fiador, e não através de deduções, inferências ou presunções, embora para esse efeito não haja fórmulas precisas ou sacramentais (Antunes Varela, Das obrigações em geral, vol. II, 7.ª edição, Almedina, páginas 482 e 483).
Por vezes o acordo de constituição da fiança conclui-se de forma verbal e é acompanhado ou seguido de uma declaração escrita, unilateral, do fiador. Nestes casos, se a lei não exigir forma especial para a obrigação principal, a fiança é válida (art.º 219.º do Código Civil), tendo a promessa unilateral escrita o valor probatório resultante do disposto nos n.ºs 1 e 2 do art.º 458.º do Código Civil (cfr, neste sentido, A. Varela, obra citada, páginas 486 e 487).
A assunção de dívida constitui uma forma de transmissão da obrigação de uma ou mais prestações, passando um terceiro, o novo devedor, a ser o obrigado à realização da prestação perante o credor (art.º 595.º do Código Civil). A transmissão opera mediante a celebração de contrato entre o antigo e o novo devedor, ratificado pelo credor (alínea a) do n.º 1 do art.º 595.º do Cód. Civil), ou mediante a celebração de contrato entre o novo devedor e o credor, com ou sem o consentimento do antigo devedor (alínea b) do n.º 1 do art.º 595.º do CC). Só há transmissão da dívida, em rigor, no caso da chamada assunção liberatória, em que o antigo devedor fica exonerado pelo compromisso assumido pelo novo devedor. Tal exoneração deve ser efetuada expressamente pelo credor; caso contrário, o antigo devedor continua obrigado perante o credor, respondendo solidariamente com o novo obrigado (n.º 2 do art.º 595.º do Código Civil). Neste caso a responsabilidade do novo devedor junta-se à do antigo, falando-se de assunção cumulativa ou co-assunção de dívida (cfr., v.g., Almeida Costa, Direito das Obrigações, 9.ª edição, pág. 769). Esta situação aproxima-se da fiança, sendo na prática muitas vezes difícil identificar a figura jurídica em ação (P. de Lima e A. Varela, Código Civil anotado, volume I, Coimbra Editora, nota ao art.º 595.º). No seu aspeto funcional a assunção de dívida (em particular a assunção de dívida cumulativa) e a fiança são tão próximas que “na prática se torna por vezes extremamente difícil saber se o terceiro quis, na verdade, chamar a si a obrigação que recai sobre o devedor ou pretendeu apenas afiançar o devedor, responsabilizando-se acessória e subsidiariamente pelo cumprimento” (A. Varela, Das obrigações em geral, vol. II, citado, pág. 364). “As partes”, segundo Von Thur, citado por A. Varela (obra citada, nota 3, pág. 364), “não costumam penetrar no sentido desta distinção jurídica.”
Exposto isto, não surpreenderá que a A. tenha qualificado de fiança uma situação que o tribunal a quo veio a qualificar de assunção de dívida cumulativa.
In casu, face aos factos provados, não vemos razões para dissentir da qualificação jurídica operada pelo tribunal recorrido. Provou-se que tendo em vista a regularização da situação de dívida da “E”, S.A, face aos fornecimentos de material efetuados pela A. àquela sociedade, ocorreram reuniões entre a A. e a “E”, de que os RR. eram os legais representantes, “tendo ficado convencionado que os Réus, administradores da “E”, assumiam pessoalmente o pagamento da quantia de € 59.665,88, pagando eles”. (n.ºs 6 e 15 da matéria de facto). Não há aqui a menção a qualquer acessoriedade ou subsidiariedade da obrigação dos RR. em relação à da “E”. Pelo contrário, pelo acordo operado os RR. assumiram, como obrigação própria, a obrigação de pagamento que era da “E”, embora, por falta de declaração da A. em contrário, a “E”continuasse vinculada perante esta ao pagamento da dita quantia. O dito acordo, que não estava sujeito a forma especial, foi acompanhado do envio à A. da dita carta dos RR., que tem a força probatória prevista no art.º 458.º do Código Civil.
Embora tal não tenha relevo para o decidido (face, repete-se, aos factos apurados), sempre se dirá, tendo em consideração o teor das conclusões o) e p) da apelação e acreditando no por si alegado na contestação (e não levado à seleção da matéria de facto, seguramente por ter sido julgado irrelevante), que os RR., além de administradores da “E”, são os criadores da invenção para cuja exploração económica foi criada a “E”, sendo também co-accionistas, pelo que o seu envolvimento no aludido projeto empresarial era certamente grande, justificando-se assim em novembro de 2010 um esforço da sua parte para manter a “E”no mercado, esperança essa que só se terá dissipado em dezembro de 2010 (vide artigos 16.º a 27.º da contestação).
Terceira questão (decisão surpresa)
Na formulação da Constituição da República Portuguesa (CRP), “a todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos” (n.º 1 do art.º 20.º da CRP). A defesa dos direitos e interesses em tribunal deverá fazer-se mediante processo equitativo (n.º 4 do art.º 20.º da CRP), o que pressupõe dar às partes em conflito a possibilidade de exporem as suas razões e de apresentarem as suas provas, em igualdade de circunstâncias, inclusive em resposta à atuação processual da contraparte (cfr., v.g., artigos 3.º, 3.º-A, 517.º do CPC de 1961, em vigor à data da tramitação alvo do recurso e por isso aqui aplicável, em contraposição com o CPC de 2013, aprovado pela Lei nº 41/2013, de 26.6 – art.º 12.º n.º 1 do Código Civil).
Por força das alterações introduzidas no CPC pelo Dec-Lei n.º 329-A/95, de 12.12, com a redação fixada pelo Dec.-Lei n.º 180/96, de 25.9, o legislador aprofundou o papel das partes na resolução do litígio, alargando o seu envolvimento ativo às várias fases do processo, em termos que assim ficaram espelhados no n.º 3 do art.º 3.º do CPC:
“O juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo casos de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem.”
É sabido que, se no que concerne à matéria de facto o tribunal está, em princípio, limitado às alegações das partes (n.ºs 1 e 2 do art.º 264.º, 2.ª parte do art.º 664.º do CPC de 1961), o mesmo não sucede no tocante “à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art.º 664.º n.º 1 do CPC). Como reza o brocado latino, “jura novit curia”. Porém, as partes têm o direito de ser ouvidas acerca do enquadramento jurídico do litígio, de forma a poderem influenciar a decisão também a esse nível. Isto poderá levar a que, passada a fase dos articulados e já na fase de decisão final, o tribunal deva abrir um incidente de auscultação prévia das partes, se se lhe deparar uma solução de direito do litígio com que as partes não podiam contar e sobre a qual não tiveram antes a possibilidade de se pronunciarem.
É claro que tal audição complementar tem, como salienta Lopes do Rego (Comentários ao Código de Processo Civil, vol. I, 2.ª edição, 2004, Almedina, pág. 33), “custos, em termos de celeridade e economia processuais”. Pelo que tal auscultação, na formulação de Lopes do Rego (obra e local citado) “só deverá ter lugar quando se trate de apreciar questões jurídicas susceptíveis de se repercutirem, de forma relevante e inovatória, no conteúdo da decisão e quando não fosse exigível que a parte interessada a houvesse perspectivado durante o processo, tomando oportunamente posição sobre ela.”
A jurisprudência tem analisado esta questão em termos que alinham pelos parâmetros de prudência supra expostos.
Assim, no acórdão do STJ de 11.3.2010 (processo 1860/07.OTVLSB.S1), ponderou-se que “o art. 664º consagra o princípio do conhecimento oficioso do direito: o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito. A articulação deste princípio com a regra da proibição das decisões-surpresa, contida no n.º 3 do art. 3º, significa tão só que, antes de proferir a decisão, deve o julgador facultar às partes o exercício do contraditório, apenas quando a qualificação jurídica a adoptar ou a subsunção a determinado instituto não correspondam, de todo, àquilo com que estas, pelas posições assumidas no processo, possam contar. Trata-se, a nosso ver, de um princípio que não pode ser levado tão longe que esqueça que as partes são representadas por técnicos que devem conhecer o direito e que, por isso, conhecendo ou devendo conhecer os factos, devem igualmente prever todas as qualificações jurídicas de que os mesmos são susceptíveis.”
Também no acórdão do STJ, de 27.9.2011 (processo 2005/03.OTVLSB.L1.S1), se escreveu que “há decisão surpresa se o juiz de forma absolutamente inopinada e apartado de qualquer aportamento factual ou jurídico envereda por uma solução que os sujeitos processuais não quiseram submeter ao seu juízo, ainda que possa ser a solução que mais se adeqúe a uma correcta e atinada decisão do litígio.”
Ao nível das Relações, veja-se, v.g. o acórdão da Relação de Lisboa, de 26.6.2007 (2798/2007-1), onde se exarou que “a decisão-surpresa a que se reporta o artigo 3.º n.º 3 do CPC, não se confunde com a suposição que as partes possam ter feito nem com a expectativa que elas possam ter acalentado quanto à decisão quer de facto quer de direito. A lei, ao referir-se à decisão-surpresa, não quis excluir delas as que juridicamente são possíveis embora não tenham sido pedidas. O que importa é que os termos da decisão, rectius os seus fundamentos, estejam ínsitos ou relacionados com o pedido formulado e se situem dentro do geral e abstractamente permitido pela lei e que de antemão possa e deva ser conhecido ou perspectivado como sendo possível.” No mesmo sentido, veja-se o acórdão da Relação do Porto, de 28.6.2013 (processo 849/12.1TBVCD-A.P1), em que se rematou assim: “ou seja, apenas estamos perante uma decisão surpresa quando ela comporta uma solução jurídica que as partes não tinham obrigação de prever.”
Assim, considerou-se ser decisão surpresa a declaração de incompetência material do tribunal sem que tal exceção tivesse sido suscitada pelas partes, decorridos oito anos após a propositura da ação e quando se perspetivava a prolação de sentença, após a realização do julgamento (STJ, 14.5.2009, 09B0677). Também se considerou existir decisão surpresa quando, tendo sido proposta ação com pedido de reversão de deixa testamentária com fundamento no incumprimento da obrigação do exercício de atividade num determinado imóvel, se julgou a ação procedente com o fundamento na ocorrência de intervenção governativa em violação da deixa, a qual não fora invocada, qua tale, pelas partes (Relação de Lisboa, 04.11.2010, 260/10.9YRLSB-8). Também no acórdão da Relação de Lisboa, de 21.5.2009 (processo 1490/04.8 TBPDL.L1-6) se entendeu que, tendo uma acção sido estruturada como de anulação com base em vícios da vontade, não podia o juiz, na sentença, sem previamente comunicar às partes o novo enquadramento jurídico, julgar a ação com base em enriquecimento sem causa. Também haverá decisão surpresa se, tendo sido invocado numa ação, com o acordo das partes, um contrato de fornecimento e prestação de serviços, o tribunal profere saneador/sentença em que perspetiva o negócio como empreitada e julga a ação improcedente por o autor não ter invocado a aceitação da obra (Relação de Évora, 25.10.2012, 381658/10.5YIPRT.E1). Considerou-se não ocorrer decisão surpresa no caso de conhecimento oficioso da nulidade, não arguida pelas partes, do contrato de arrendamento comercial invocado pelos réus para sustentarem a sua ocupação do imóvel pertencente aos autores (STJ, 15.12.2011, 5622/06.3TVLSB.L1.S1). Também não foi julgada decisão surpresa a oficiosa qualificação como contrato de adesão do contrato invocado pelas partes, com a consequente aplicação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais e êxito da ação à sua luz (STJ, 11.3.2010, 1860/07.OTVLSB.S1). Considerou-se não constituir decisão surpresa a que julgou improcedente ação instaurada por donos de obra assente em resolução do contrato de empreitada por alegado incumprimento do mesmo por parte da empreiteira ré, tendo a improcedência assentado na falta de interpelação admonitória, não arguida pela ré (Relação de Lisboa, 26.6.2007, 2798/2007-1).
Reportemo-nos ao caso destes autos.
A A. fundou a ação no facto de as partes terem, alegadamente, acordado que os RR. se obrigariam a pagar à A. uma determinada quantia que a sociedade “E”devia em virtude de fornecimentos a ela feitos pela A.. Como prova desse compromisso a A. juntou aos autos a carta já supra analisada. Procedendo à qualificação jurídica da obrigação dos RR., a A. entendeu que se tratava de uma fiança. Na contestação os RR. confirmaram a existência da dita dívida da “E”para com a A., mas negaram que os RR. tivessem assumido pessoalmente a obrigação pecuniária da “E”, garantindo o cumprimento da obrigação da sociedade com o seu património pessoal. Impugnaram a existência e validade da alegada fiança, afirmando que a sua intervenção na emissão da carta supra citada ocorrera na estrita qualidade de legais representantes da sociedade.
Na réplica a A. reiterou que na carta supra citada os RR. haviam assumido a responsabilidade pelo pagamento da quantia aí referida, não em representação da “E”, mas eles próprios, o que constituía realidade fáctica jurídica que se poderia chamar “fiança ou outra coisa qualquer” (art.º 9.º da réplica).
Na sentença o tribunal procedeu à apreciação da matéria de facto provada e dela concluiu, dando razão à A., que os réus, por acordo com a A., haviam assumido pessoalmente, e não em nome e representação da sociedade “E”, a obrigação de pagar a invocada quantia de € 59 665,88. Procedendo à qualificação jurídica dessa assunção pessoal de responsabilidade, não se deu como demonstrado que esta assumira o carater de acessoriedade próprio da fiança, tendo-se propendido para a sua qualificação como assunção de dívida, sem exoneração da responsabilidade da “E”. Nessa base julgou-se a ação procedente.
Ao decidir nos referidos termos o tribunal a quo agiu no legítimo exercício do poder de qualificação jurídica dos factos, ínsito à função soberana de administração da justiça (art.º 202.º da CRP; art.º 664.º do CPC). Qualificação jurídica essa que se cingiu à resolução da questão do alcance do compromisso assumido pelos RR. perante a A.: se obrigação a título pessoal, se em nome e em representação da sociedade “E”. A qualificação jurídica desse compromisso como assunção de dívida era, face à situação desenhada pelas partes, plausível e previsível, atendendo à proximidade existente entre as figuras da fiança e da assunção de dívida cumulativa, conforme se demonstrou supra. Aliás, a posição defendida pelos RR. na contestação cobria, pela negativa, tanto a qualificação da obrigação como fiança como de assunção de dívida, pelo que a sua audição prévia era manifestamente desnecessária.
Conclui-se, assim, que a sentença proferida não constitui decisão surpresa.
A apelação é, pois, improcedente.

DECISÃO
Pelo exposto, julga-se a apelação improcedente e consequentemente mantém-se a decisão recorrida.
As custas da apelação são a cargo dos apelantes.

Lisboa, 03.10.2013

Jorge Manuel Leitão Leal
Ondina Carmo Alves
Eduardo José Oliveira Azevedo

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