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quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

COACÇÃO VIOLÊNCIA - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - 19/12/2012


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
325/08.7GAVLP.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: EDUARDA LOBO
Descritores: COACÇÃO
VIOLÊNCIA

Nº do Documento: RP20121219325/08.7GAVLP.P1
Data do Acordão: 19-12-2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO
Área Temática: .

Sumário: I - O conceito de violência abrange tanto a intervenção da força física (absoluta ou relativa, consoante elimina, ou não, qualquer possibilidade de resistência do coagido) como a violência psíquica e condutas que, apesar de não se traduzirem na utilização da força física, todavia eliminam ou diminuem a capacidade de decisão ou de resistência da vítima.
II - Integra o conceito de violência pressuposto pelo tipo do crime de Coação do artigo 154.°, n.° 1, do Código Penal, a conduta revelada nos seguintes factos: a vítima pretende circular livremente por uma estrada (nacional ou auto-estrada) e é perseguida, ao longo de cerca de 80 Km, por um outro veículo automóvel em cujo interior sabe que se encontra uma pessoa (arguido) que lhe vem exigindo o pagamento de determina­da quantia; o arguido atua deste modo para diminuir ou eliminar a capacidade de decisão da pessoa perseguida e, assim, a intimidar à prática do ato pretendido.
Reclamações:

Decisão Texto Integral: Proc. nº 325/08.7GAVLP.P1
1ª secção

Acordam, em conferência, na 1ª secção do Tribunal da Relação do Porto

I – RELATÓRIO
No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos no Tribunal Judicial de Valpaços com o nº 325/08.7GAVLP foi submetido a julgamento o arguido B…, tendo a final sido proferida sentença, depositada em 04.01.2012, que condenou o arguido
- como autor material de um crime de coação p. e p. nos artºs. 22º, 23º, 73º e 154º nºs 1 e 2 do Cód. Penal, na pena de um ano e dois meses de prisão;
- como autor material de cada um de dois crimes de injúrias p. e p. no artº 181º do Cód. Penal na pena de um mês e quinze dias de prisão;
- em cúmulo jurídico das referidas penas, foi o arguido condenado na pena única de um ano e quatro meses de prisão suspensa na sua execução por igual período de tempo, sob condição de, no prazo de oito meses, pagar à assistente C… a quantia de € 1.000,00 fixada a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Inconformado com a sentença condenatória, dela veio o arguido interpor o presente recurso, extraindo das respetivas motivações as seguintes conclusões:
1. O tribunal a quo aplicou mal o direito ao presente caso, no que tange à condenação do arguido pela prática de um crime de coação, porquanto a expressão dirigida a assistente concretamente a dada como provada no ponto 6 “se queria que lhe acontecesse alguma coisa”, não é de todo em todo apta a preencher o conceito de ameaça com um mal importante, ou o anúncio da intenção de praticar qualquer mal futuro;
2. Verifica-se que inexiste, ou não se corporiza qualquer ameaça, sendo indubitavelmente de se concluir que a tipicidade do crime de coação de que vinha acusado o arguido não se encontra preenchida;
3. Tanto mais que a conduta da assistente narrada nos autos de não procurar auxílio das forças de segurança portuguesas, da respetiva família, como assim o facto de a própria família, sabedora do que estava a suceder não ir ao seu auxílio, estando próximos, ou chamarem eles mesmos as autoridades, revela, no mínimo dos mínimos que nada do que o arguido possa ter dito foi levado a sério;
4. O percurso de horas que assistente fez por locais ermos e desabitados é bem demonstrativo da ausência de medo, de receio e decorrente não limitação da liberdade, ou mero constrangimento comportamental;
5. Por seu turno, verifica-se existir um erro notório na apreciação da prova testemunhal, concretamente do depoimento de D…, porquanto as injúrias que mesmo diz ter ouvido o arguido proferir, concretamente “Caloteira” e “Tens ar de puta” foram nos dizeres da acusação particular praticadas em Vila Pouca de Aguiar nas bombas de combustível do “E…” e não na Zona Industrial …, não podendo nessa medida ter sido assistidos pela testemunha, que quando muto poderia ter ouvido somente a expressão caloteira;
6. Decorre que é manifesto que à testemunha que se reputa como sendo importante para a condenação do arguido pela prática de um dos crimes de injúria não pode ser atribuída qualquer credibilidade;
7. Sintomático disso mesmo será o facto de desde logo a pessoa referenciada nos autos como sendo seu patrão e indivíduo das relações de amizade da assistente, a quem esta ia recorrer – F…, que também teria assistido a tudo, estranhamente ou talvez não, não foi sequer arrolada como testemunha;
8. Por último, sendo manifesto que inexistiu prova testemunhal acerca das injúrias alegadamente proferidas nas referidas bombas de gasolina, e formando-se a convicção do Digníssimo Tribunal a quo somente e tão só a versão relatada pela assistente, dado que a posição assumida pelo arguido é diametralmente oposta – negou cabalmente que tivesse dito que era “caloteira” e que “tinha ar de puta”, parece evidente que foi violado o princípio basilar do “In dubio pro reo”.
*
Na 1ª instância o Ministério Público respondeu às motivações de recurso, concluindo pela respetiva improcedência, alegando em suma que:
a) O arguido B…, face à prova produzida em audiência de julgamento, foi como se impunha condenado, pela prática do crime de coação na forma tentada e dois crimes de injúria, na pena de 1 ano e 4 meses de prisão suspensa na sua execução por igual período;
b) O Tribunal a quo considerou que se encontravam preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do crime de coação na forma tentada e não podia ser outra a decisão, pois a expressão “se queria que lhe acontecesse alguma coisa” e toda a perseguição e intimidação do arguido à assistente, foram atitudes idóneas a causar medo e perturbação e efetivamente causaram;
c) A assistente sentiu pânico e terror pela presença constante e perseguição do arguido, ficando nervosa e descontrolada, pretendeu evitar a vergonha e constrangimento do arguido estar constantemente junto a sua casa, envergonhando-a, o que a levou a percorrer bastantes quilómetros no intuito de dissuadir o arguido de a importunar junto da sua residência.
d) O arguido actuou com dolo, pretendeu intimidar a assistente, para que esta pagasse uma dívida que não existia, actuando de forma a pressionar a assistente intimidando-a com a sua presença sinistra e constante, perseguindo-a ao longo de um grande percurso, para que esta não esquecesse que ele ali estava, “ Se queria que lhe acontecesse alguma coisa”, tal expressão e toda a atitude persecutória do arguido é adequada a preencher os requisitos objectivos e subjectivos do ilícito de coacção.
e) O testemunho de D…, revelou-se credível, isento e verdadeiro, no sentido de ter ouvido o arguido, na zona industrial … a apelidar a assistente de “caloteira”. O Tribunal valorou o depoimento da referida testemunha, como se impunha.
f) No que concerne ao outro crime de injúria dado como provado e pelo qual o arguido foi condenado, as declarações da assistente revelaram-se verdadeiras e coincidentes com todo o circunstancialismo factual que no dia dos factos o arguido, em Vila Pouca de Aguiar lhe dirigiu as expressões: “Caloteira e tens ar de puta”.
g) É ao julgador que cabe emitir o seu juízo em termos livre apreciação da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, sendo que a douta sentença indica na motivação, quais os pontos concretos e depoimentos que revestem maior credibilidade, em consonância com o princípio da imediação e da oralidade.
h) Da audição dos depoimentos prestados em audiência, conjugados e correlacionados com os demais elementos de prova em que se alicerçou o tribunal e com as regras da experiência comum, resulta não haver nos autos provas que imponham decisão diversa da recorrida.
i) Não foi violado o princípio basilar da doutrina penal “ In dubio pro reu”, pois a prova testemunhal, desde logo, as declarações da assistente C…, os depoimentos de G…, H…, I… e D…, foram verdadeiras, credíveis e convincentes no sentido de formar a convicção no Tribunal de que o arguido efectivamente cometeu os crimes de que vinha acusado, inexistindo qualquer dúvida razoável que pudesse conduzir à sua absolvição.
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Neste Tribunal da Relação do Porto a Srª. Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer suscitando a questão prévia da extemporaneidade do recurso por falta de cumprimento do formalismo consignado no artº 412 nºs. 3 e 4 do C.P.P., o que deverá conduzir à sua rejeição.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do C.P.P., não foi apresentada resposta.
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Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida considerou assentes os seguintes factos: (transcrição)
1) O arguido B… é director comercial de uma empresa de gestão e recuperação de créditos, empresa esta que foi contratada para cobrar um crédito à assistente C… e marido.
2) Em data não concretamente apurada, o arguido deslocou-se à residência da assistente, sita em …, e abordou o seu marido para que pagasse a dívida ao cliente, situação que este nunca concordou por considerar que a dívida já estava paga.
3) De forma a obter o pagamento da dívida, o arguido deslocou-se várias vezes e em datas não concretamente apuradas junto da residência da assistente, estacionando um veículo de marca VW … de matrícula ..-BC-.., à porta desta com os dizeres “J…”.
4) No dia 10 de Outubro de 2008, cerca das 8h15, quando a assistente saiu de casa em direcção a Valpaços, foi perseguida pelo veículo referido em 3), onde seguia o arguido acompanhado de outro indivíduo.
5) Chegada a Valpaços, a assistente apanhou a estrada em direcção a Vila Pouca de Aguiar, continuando a ser perseguida pelo referido veículo.
6) Antes de chegar a Vila Pouca de Aguiar, a assistente parou, saiu do carro, tendo o arguido parado também o carro em que seguia, dirigindo-se à assistente, em voz alta e em tom sério, perguntando-lhe se ela ia pagar a dívida ou queria que lhe acontecesse alguma coisa.
7) Com receio que o arguido lhe fizesse alguma coisa, a assistente voltou a entrar no seu veículo e foi novamente perseguida até às bombas de combustível do E…, em Vila Pouca de Aguiar.
8) Aí chegada, como o arguido continuava a persegui-la, entrou na A24 e apenas parou junto à rotunda de Verin, quando viu uma patrulha da Guardia Civil, a quem contou o que estava a acontecer e onde foram todos identificados.
9) No regresso de Verin até Valpaços, foi novamente perseguida até à Zona Industrial …, onde parou e esperou que o marido chegasse, com receio que algo lhe pudesse acontecer.
10) Ao perseguir a assistente e ao dirigir-lhe a expressão referida em 6), agiu o arguido com a vontade livre e perfeita consciência de estar a anunciar-lhe que, caso a assistente não pagasse a suposta dívida, atentaria contra a sua integridade física, de modo idóneo a levá-la, como era sua intenção e por medo de concretização de tal promessa, a satisfazer aquela exigência, o que apenas não veio a acontecer por razões alheias à sua vontade.
11) Agiu, ainda, o arguido com perfeita consciência de que a sua conduta era proibida e punível por lei.
12) Em datas não concretamente apuradas, mas durante os meses de Setembro e Outubro de 2008, o arguido procedeu como referido em 2) e 3), abordando toda a família.
13) Por diversas vezes, nas circunstâncias referidas em 12), o arguido dirigiu-se à assistente utilizando a seguinte expressão: “caloteira”.
14) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 7), o arguido, saiu do veículo e aproximou-se da assistente e dirigiu-lhe, em tom sério e de viva voz, as seguintes expressões: “Caloteira”, “Tens ar de puta”.
15) Nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 9), a assistente parando junto a uma casa de mármores, em virtude o proprietário, F…, ser seu amigo, a quem pediu ajuda, voltou o arguido a, de viva voz, de forma a que pudesse ser ouvida pelos presentes, dirigindo-se àquela, proferir a seguinte expressão: “Caloteira”.
16) No dia 21 de Outubro de 2008, cerca das 7h45, o arguido, acompanhado do motorista, fez estacionar o veículo automóvel com a publicidade da empresa “J…”, em frente à casa da assistente e dirigindo-se a esta disse “a senhora quer pagar?”, “a senhora é uma caloteira”.
17) Em todas estas situações, o arguido aparecia acompanhado de motorista, ambos vestidos de preto, usando uma placa com a identificação da empresa “I…” e fazendo-se conduzir no veículo automóvel identificado em 3),
18) A assistente nada devia, nem ao arguido, nem à empresa que encomendou o serviço.
19) Nunca nada lhes pagou, nem foi intentada qualquer acção judicial para o efeito.
20) A assistente é considerada pessoa séria, respeitável e respeitadora.
21) A assistente sentiu vergonha, angústia, humilhação, tristeza, desgosto e sofrimento.
22) Ficou enxovalhada e sentiu-se diminuída como tal.
23) A situação foi comentada por vizinhos, familiares e amigos da assistente.
24) A assistente sentiu medo, inquietação, receio, ansiedade, susto e intranquilidade.
25) O arguido vive sozinho, auferindo uma pensão de reforma de 1 000,00€;
26) Encontra-se penhorado 1/3 da pensão de reforma;
27) Paga 300,00€ mensais de renda de casa.
28) Possui o 6.º ano de escolaridade.
29) O arguido foi, anteriormente, condenado:
- No processo 1788/00.4TDPRT do 2.º Juízo, 1.ª Secção do Tribunal Criminal do Porto, na pena de 90 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros, por sentença de 21.02.2003, pela prática, em 8.06.1999, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro.
- No processo 260/99.8SMPRT, do 1.º Juízo, 1.ª Secção do Tribunal Criminal do Porto, na pena única de 280 dias de multa à taxa diária de 2,50 euros, por sentença de 12.12.2003, pela prática em 5.03.1999, de um crime de detenção ou tráfico de armas proibidas, p. e p. pelo art.º 275.º, n.º 3 do Código Penal e de um crime de coacção, na forma tentada, p. e p. pelo art.º 154.º, n.º 1 e 2, 22.º e 23.º do Código Penal.
- No processo 593/04.3PEGDM do 2.º Juízo de Competência Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, na pena de 50 dias de multa à taxa diária de 2,50 euros, por sentença de 31.05.2004, pela prática, em 29.05.2004, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º, n.º 1 e 2 do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro.
- No processo 251/01.0PTPRT do 1.º Juízo, 2.ª Secção do Tribunal Criminal do Porto, na pena de 100 dias de multa à taxa diária de 1,50 euros, por sentença de 2.06.2004, pela prática, em 24.06.2001, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro.
- No processo 831/03.0GDGDM do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de 3,00 euros, por sentença de 20.07.2007, pela prática, em 28.04.2003, de um crime de violação de domicílio, p e p. pelo art.º 190.º do Código Penal.
- No processo 509/06.2GDGDM do 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, na pena de 300 dias de multa à taxa diária de 6,00 euros, por sentença de 7.05.2008, pela prática, em 30.05.2006, de um crime de coacção, p. e p. pelo art.º 154.º, n.º 1 e 2 do Código Penal.
- No processo 52/07.2GAMGD do Tribunal Judicial de Mogadouro, na pena de 80 dias de multa à taxa diária de 7,00 euros, por sentença de 20.05.2008, pela prática, em 8.05.2007, de um crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1 do Código Penal.
- No processo 1298/07.2TAGDM do 2.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Gondomar, na pena de 5 meses de prisão, suspensa na sua execução por um ano, subordinada ao pagamento da quantia de 500,00 euros à ANEM, por sentença de 26.11.2008, pela prática, em 1.08.2003, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo art.º 3.º do Decreto-Lei 2/98, de 3 de Janeiro.
*
A matéria de facto encontra-se motivada nos seguintes termos: (transcrição)
No que se refere à matéria de referente aos factos imputados aos arguidos, o Tribunal atendeu ao conjunto dos depoimentos prestados pelas testemunhas em conjugação com a versão apresentada pelo arguido, tudo analisado crítica e conjugadamente.[1]
Desde logo, o arguido não negou que no dia 10 de Outubro de 2008 tenha “acompanhado” a assistente, desde a sua residência, passando por Vila Pouca de Aguiar, Verin (Espanha) até à Zona Industrial …, ao longo desse dia.
Também não nega que se tenha deslocado várias vezes à residência da assistente e lhe tenha solicitado o pagamento de uma alegada dívida.
Mais referiu que falou com o marido da assistente e que fora, ele próprio, maltratado pela assistente e pela família.
O arguido confessou que a sua atividade corresponde ao serviço vulgarmente conhecido como “cobrador do fraque” e que usava a indumentária e utilizava o veículo, como foi dado por provado, designadamente a cor escura e inscrição visível “J…” quer no fato preto quer no veículo.
Mais referiu que se fazia acompanhar por outro indivíduo, necessariamente com as mesmas características por forma a criar o “ambiente” de cobrança naqueles termos.
Ora, a sua versão apenas foi considerada credível até aqui.
Desde logo, se foi ele próprio o ofendido verbalmente pela assistente, o que não se logrou provar, e, bem assim, pela sua família, tal faz inferir que o arguido não tivesse atuado com delicadeza no trato para com a assistente.
A versão desta foi considerada absolutamente credível, uma vez que as declarações que prestou, ainda que impregnadas de uma emoção que se compreende e visivelmente afetada, conseguiu circunstanciar a atividade do arguido, vivendo-a intensamente.
Explicou que o arguido se dirigia à sua residência com muita frequência e ali permanecia (no exterior) e no interior do veículo, bem como no exterior dos mesmos e sempre nas imediações da residência, tocando na campainha ou chamando por ela, falando com as pessoas que se ali se apresentavam e aludindo ao pagamento de uma dívida que segundo referiu não existia, não tendo sido intentada qualquer ação judicial para exigir a sua cobrança.
Mais referiu que a apelidava de “Caloteira” e que chegou a dizer-lhe que “parecia uma puta”.
No dia 10 de Outubro de 2008, articulou todo o percurso que teve de realizar sempre perseguida pelo arguido no veículo que outro indivíduo conduzia. De tal forma foi a minúcia que referiu que parou para encher uma garrafa de água e mesmo aí foi abordada pelo arguido fazendo-lhe crer que se não pagasse lhe havia de acontecer alguma coisa.
Percorreu o percurso de … até Vila Pouca de Aguiar e desta localidade até Verin, Espanha, concluindo o percurso na Zona Industrial …, onde pretendia encontrar o marido ou um amigo deste.
Perguntar-se-á se o motivo de, sozinha, a assistente ter percorrido vários quilómetros, sem se dirigir às autoridades policiais ou a pedir ajuda é anómala.
Ora, como bem explicou e igualmente a testemunha I…, sua filha, o que a assistente sentiu foi, além de receio e medo, uma grande humilhação e vergonha, pois que apresentar-se perante terceiros, designadamente da área da sua residência, com aquela companhia seria tal facto, ele próprio, catalizador dessa vergonha, para além de que, no contexto da situação, é compreensível que as ideias racionais cedam perante aqueles receios e vergonha.
É que o arguido não nega que tenha tentado a cobrança de uma dívida e que a tenha acompanhado, nas suas traseiras, em todo aquele percurso, o que só por si é revelador não de um incómodo mas do suportar de uma atividade que reconhecidamente pouca abona a favor dos visados.
E neste contexto, importante se revelou muito importante o depoimento da testemunha D…, o qual se encontrava na Zona Industrial, a cortar pedra, no seu ofício, quando a assistente ali acorreu, visivelmente amedrontada e assustada. Numa tarde, estava a trabalhar e apareceu a assistente, escondendo-se na casa de banho e o arguido a chamar-lhe “Puta” e “Caloteira” e a dizer que ela não saía dali enquanto não pagasse. Viu o arguido e outro indivíduo, sendo que o primeiro queria entrar e o seu patrão não o deixou entrar, estando a assistente a tremer e a telefonar, posteriormente, ao marido.
Percebeu que a assistente estava alterada, nervosa e ansiosa.
No mais quer a testemunha H…, seu marido, quer a testemunha G…, nos seus depoimentos, confirmaram, de forma assaz convincente e credível, a versão apresentada pela assistente, tendo assistido ao apelidar de caloteira, o que muito a envergonhou e humilhou perante vizinhos, amigos e familiares, causando-lhe tristeza, angústia, humilhação, desgosto e sofrimento, sentimentos e danos que o próprio tribunal constatou ainda se verificarem atualmente, atentas as declarações prestadas por aquela.
Para além disso, é inegável que a assistente sentiu medo, inquietação, receio, ansiedade, susto e intranquilidade, bem espelhada na situação verificada em 10 de Outubro de 2008, que se extrai também do receio de colocar os familiares diretos, designadamente o marido e a filha naquela situação e de, naquele dia, nunca ter tomado qualquer refeição ou sequer satisfeito as suas necessidades mais básicas.
Não colheu a versão do arguido de que nunca lhe dirigira qualquer expressão menos própria à assistente, pois mostra-se consentânea com a realidade a versão apresentada pela assistente e pelas demais testemunhas, no contexto daquela situação de tentativa de pagamento de uma alegada dívida.
O tribunal teve ainda em conta as declarações do arguido quanto à sua situação pessoal e sócio – económica, porque efetuadas, nesta parte, de forma aparentemente desinteressada.
Quanto aos antecedentes criminais do arguido o tribunal baseou a sua convicção nos CRC junto aos autos.
*
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III – O DIREITO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí sumariadas as que o tribunal de recurso tem de apreciar[2], sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente os vícios indicados no art. 410º nº 2 do C.P.P.[3].
No caso em apreço alega o recorrente que a expressão que dirigiu à assistente - “se queria que lhe acontecesse alguma coisa” – não é apta a preencher o conceito de ameaça com mal importante ou o anúncio de praticar qualquer mal futuro pelo que não se verifica a tipicidade do crime de coacção.
Alega ainda que existe erro notório na apreciação da prova testemunhal no que respeita aos crimes de injúrias, tendo o tribunal recorrido violado o princípio do in dubio pro reo.
Vejamos:
Dispõe o art. 154 (coacção) do Código Penal:
1. Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma ação ou omissão, ou a suportar uma atividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O facto não é punível:
a) Se a utilização do meio para atingir o fim visado não for censurável; ou
b) Se visar evitar suicídio ou a prática de facto ilícito típico.
(…)
O crime de coacção «constitui o tipo fundamental dos crimes contra a liberdade de decisão e de acção»[4].
Protege-se aqui a «liberdade de decisão e de ação», preenchendo-se o tipo objetivo de ilícito com a conduta de «constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma ação, omitir determinada ação, ou suportar uma ação»[5].
O núcleo essencial da ação típica consiste na conduta de constranger (coagir) outra pessoa, mediante os meios tipificados na lei, a realizar uma ação ou omissão ou a suportar uma atividade.
Os meios de execução do crime de coacção são o uso de violência ou de ameaça com mal importante.
A “violência” implica, em sentido restrito, o emprego de força física (o que se traduz num efeito corporal, acabando - se apenas considerado nesse sentido - por reduzir a pessoa praticamente à sua estrutura biológica, podendo, no entanto, ser entendida de modo mais amplo, por forma a abranger a violência psíquica, traduzindo-se esta numa pressão anímica exercida sobre a vítima, anulando, ainda que parcialmente, a sua vontade ou colocando-a numa situação de inferioridade que a impede de reagir como queria)[6].
Claro que se pode dizer que a agressão psicológica já é intimidação, ameaça mas, o entendimento de um conceito alargado de violência tem subjacente a lesão de direitos que estão garantidos à pessoa, na sua dimensão jurídica, devendo aqui ser aferida por referência ao bem jurídico em causa, que é a liberdade de ação e de decisão que, por aquele meio, é constrangida ou limitada de forma eficaz.
Por sua vez, “ameaçar” é anunciar o propósito de fazer mal a alguém, podendo abranger a coacção psicológica, traduzindo-se esta na perturbação da liberdade interior de decisão e da liberdade de ação da vítima.
Como se acentua no Ac. desta Relação de 07.01.2009[7] “com a ameaça cria-se no espírito da vítima um fundado receio de grave e iminente mal, injusto ou justo, capaz de, no caso concreto, paralisar a sua reação.
O conceito de “ameaça” pressupõe, assim, um mal que seja futuro e, além disso, é essencial que a ocorrência desse “mal futuro” «dependa (ou apareça como dependente) … da vontade do agente».
Diz Taipa de Carvalho[8] que a característica de que «a ocorrência de “mal futuro” dependa ou apareça como dependente da vontade do agente» estabelece a distinção entre a ameaça e o simples aviso ou advertência (…)».
Dá-se uma ameaça com mal importante se a ameaça é idónea a perturbar um homem sensato na sua liberdade de decisão, independentemente de se traduzir na ameaça da prática de um crime.
A ameaça de mal importante há-de ser adequada a constranger o sujeito passivo, de modo a prejudicar a sua liberdade de determinação.
A gravidade objetiva do mal ameaçado radica, na sua idoneidade para provocar na vítima um estado de temor tal, que seja induzida a escolher, como saída menos gravosa, a realização de determinado comportamento (uma ação ou omissão ou a suportar uma atividade) querido pelo agente.
“Há, portanto, que relacionar a importância ou a gravidade do mal ameaçado com a exigência típica da adequação (imputação objectiva) deste a constranger o ameaçado”[9].
O conceito de “constrangimento” implica ofensa do bem jurídico liberdade, pressupondo uma pressão sobre o coagido, através dos meios típicos da violência ou de ameaça de mal importante.
«A consumação do crime de coacção basta-se com o simples início da execução da conduta coagida», sendo a tentativa punida nos termos do nº 2 do art. 154 do CP.
Por seu turno, o tipo subjetivo exige dolo e basta-se «com a consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz é susceptível de constranger e com tal se conforme»[10].
No caso em apreço, como resulta dos factos provados, a assistente saiu de casa conduzindo o seu veículo em direção a Valpaços e foi perseguida pelo veículo de matrícula ..-BC-.., com os dizeres J… na porta, onde seguia o arguido acompanhado de outro indivíduo; chegada a Valpaços, a assistente apanhou a estrada em direcção a Vila Pouca de Aguiar, continuando a ser perseguida pelo veículo do arguido; antes de chegar a Vila Pouca de Aguiar, a assistente parou, saiu do carro, tendo o arguido parado o carro em que seguia, dirigindo-se à assistente, perguntando-lhe se ía pagar a dívida ou queria que lhe acontecesse alguma coisa; com receio que o arguido lhe fizesse alguma coisa, a assistente voltou a entrar no veículo e foi novamente perseguida até Vila Pouca de Aguiar; aí, como o arguido continuasse a persegui-la, entrou na A24 e só parou junto à rotunda de Verin, quando viu uma patrulha da Guardia Civil, a quem contou o que estava a acontecer; no regresso de Verin a Valpaços, a assistente foi de novo perseguida pelo arguido até à Zona Industrial ….
Com a atuação descrita, pretendia o arguido conseguir que a assistente procedesse ao pagamento da dívida, que aquele reclamava, o que não veio contudo a acontecer.
Refere-se na decisão recorrida (ponto 10 dos factos provados) que “ao perseguir a assistente e ao dirigir-lhe a expressão supra referida, o arguido agiu com a vontade livre e consciência de estar a anunciar-lhe que, caso não pagasse a suposta dívida, atentaria contra a sua integridade física, de modo idóneo a levá-la, como era sua intenção e por medo de concretização de tal promessa, a satisfazer aquela exigência”.
Contudo, a expressão proferida pelo arguido – “se ia pagar a dívida ou queria que lhe acontecesse alguma coisa” – mais não é do que uma afirmação genérica que não concretiza o “mal importante” exigido no tipo.
Acresce que a decisão recorrida, na própria motivação de facto, não concretiza o “mal importante” com que o arguido terá ameaçado a assistente. Apenas se diz que a assistente “referiu que parou para encher uma garrafa de água e mesmo aí foi abordada pelo arguido fazendo-lhe crer que se não pagasse lhe havia de acontecer alguma coisa”. Contudo, tal “coisa” anunciada pelo arguido tanto pode referir-se a uma agressão física, como verbal, à provocação de um prejuízo material ou mesmo a uma ação a intentar em tribunal.
Todas as hipóteses são concebíveis, já que a decisão nada concretiza.
Como é possível concluir que a assistente ficou com receio que o arguido atentasse contra a sua integridade física, se se desconhece ser esse o “mal”, a “coisa”, a que o arguido se referiu?
É até plausível que o arguido pretendesse referir-se à integridade física da assistente. Como também seria admissível que aludisse à própria vida daquela. Contudo, nem a própria assistente conseguiu concretizar “o mal” anunciado pelo arguido, limitando-se a dizer que “foi abordada pelo arguido fazendo-lhe crer que se não pagasse lha havia de acontecer alguma coisa”.
Não sendo possível determinar se tal “coisa” anunciada configura um “mal importante”, não é possível estabelecer o necessário nexo de causalidade entre a expressão proferida pelo arguido e o constrangimento eventualmente pretendido por aquele para que a assistente se visse compelida a pagar-lhe a quantia reclamada. Desconhece-se se a mesma é, objetivamente, susceptível de intimidar e, por isso, adequada a coagir, sendo certo que o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objetivo-individual.

Integrará, porém, a conduta do arguido o conceito de violência de que fala o preceito em apreço?
Como salienta Günther Jakobs[11] “a conformação típica do crime de coação encontra as suas origens «no desenvolvimento como bem protegido da liberdade geral de agir de cada um que (…) teve lugar na passagem do século XVIII para o século XIX» e no recurso à tradição histórica do crimen vis como «roupagem de que se revestiu o novo tipo da coação» para evitar os excessos punitivos a que a proteção genérica daquela liberdade poderia conduzir.
Compreende-se assim que a «violência», para efeitos de preenchimento do tipo do crime de coação, numa fase inicial, tenha sido estritamente compreendida como exercício de força física, material – como agressão corporal – sobre o respetivo sujeito passivo, mas também que um tal entendimento, face às inúmeras formas por que se pode agredir, limitando-a ou eliminando-a, a liberdade de atuação da pessoa, rapidamente tenha evoluído no sentido de uma «desmaterialização, espiritualização ou sublimação»[12]; ainda nas palavras de Jakobs: a relação «entre, por uma parte, a violência como forma delimitada de agressão e, por outra, uma proteção da liberdade calculável, tinha que repercutir-se, a largo prazo, em prejuízo da violência, ao menos no tocante à violência entendida como luta ou como anúncio de um enfrentamento»[13].
Donde, hoje em dia, para um setor significativo da doutrina, o conceito de violência deverá definir-se de forma ampla, a partir do efeito ou resultado da conduta. Exemplar neste sentido é a posição de Knodel, para quem constituirá violência «todo o comportamento destinado e adequado a superar a resistência efetiva ou esperada por parte do coagido, que lhe torne impossível, sem o seu comportamento, a formação ou atuação da sua vontade, ou lhe retire a sua liberdade de decisão mediante a inflição de um mal de certa gravidade»[14].
O conceito de violência, pois, abrange hodiernamente tanto a «intervenção da força física (absoluta ou relativa, consoante elimina, ou não, qualquer possibilidade de resistência do coagido – vis phisica absoluta ou vis phisica relativa ou compulsiva) sobre a própria pessoa do coagido (…) como também a violência psíquica (…) e condutas que, apesar de não se traduzirem na utilização da força física, todavia eliminam ou diminuem a capacidade de decisão ou de resistência da vítima (…)», tal como condutas que, com esta mesma finalidade, se dirijam contra terceiros em relação de proximidade existencial com o sujeito passivo ou mesmo coisas[15].
Nestas circunstâncias, afigura-se-nos que, do ponto de vista qualitativo a conduta do arguido integra o conceito de violência pressuposto pelo tipo do crime de coacção do artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal: se alguém pretende circular livremente por uma estrada (nacional ou auto-estrada) e se sente constantemente perseguido ao longo de cerca de 80 Kms por um outro veículo automóvel em cujo interior sabe que se encontra outra pessoa que lhe vem exigindo o pagamento de determinada quantia para, daquele modo, diminuir ou eliminar a capacidade de decisão da pessoa perseguida e assim a intimidar à prática do ato pretendido, verifica-se, ainda que não exista propriamente contato físico entre as pessoas ou os veículos envolvidos, uma interferência sobre a livre atuação da vontade individual, que é, jurídico-penalmente, susceptível de integrar o conceito de «violência» psíquica.
Por outro lado, e agora do ponto de vista quantitativo, revestindo uma tal conduta, como sucede no caso vertente, a eficácia necessária para impedir o sujeito passivo de concretizar os seus intentos (isto é, de dar execução à sua decisão volitiva), não se vislumbra qualquer razão para concluir que um tal comportamento está para além do âmbito de proteção que o Direito Penal pretende assegurar à liberdade de atuação individual através da incriminação da coação. Tanto qualitativa como quantitativamente, portanto, a conduta aqui em causa reconduz-se à noção de «violência» enquanto meio comissivo do crime previsto e punido no artigo 154.º do Código Penal.
Daí que se mostre correta a integração da conduta do arguido na previsão típica do crime de coação p. e p. no artº 154º do Cód. Penal, na sua forma tentada, na medida em que o arguido praticou todos os atos de execução de forma a constranger, por meio de violência, a assistente a pagar-lhe a quantia em dinheiro que reclamava, sem que tal pagamento viesse a concretizar-se.
Refira-se ainda que a conduta do recorrente não configura, contrariamente ao que defende, uma mera advertência ou aviso. Tal só se verificaria, caso o arguido se limitasse a dizer à assistente que, se não efetuasse o pagamento reclamado, recorreria aos meios judiciais adequados, o que, efetivamente, não ocorreu.
*
Alega ainda o recorrente que houve erro notório na apreciação da prova testemunhal, uma vez que não existe prova testemunhal acerca das injúrias alegadamente proferidas nas bombas de gasolina, tendo o tribunal formado a sua convicção somente com base na versão relatada pela assistente, diametralmente oposta à do arguido, entendendo que foi violado o princípio in dubio pro reo.
Tal afirmação do recorrente é sintomática do seu equívoco em sede de recurso.
Com efeito, constata-se que incorre no erro usual, mas incompreensível, de tratar os vícios do art.º 410º n.º2 do Código Processo Penal, como verdadeiros vícios do julgamento, o que é incorreto: os vícios do art.º 410º n.º2 do Código Processo Penal não são, nem devem ser tratados, como verdadeiros vícios do julgamento, mas sim como vícios da decisão.
Ora, sob a capa de erro notório na apreciação da prova – vício que só releva se identificável no texto da decisão recorrida, art.º 410º n.º2 do Código Processo Penal – alega o recorrente algo de muito diverso, o erro de julgamento, o que não resulta do texto da decisão recorrida, e só pode ser apurado se ocorrer impugnação da matéria de facto nos termos do art.º 412º n.º3 do Código Processo Penal.
Com efeito, pondo o recorrente em causa o julgamento e não a decisão, querendo questionar em recurso o julgamento, - saber se o julgamento da matéria de facto foi correto ou incorreto – e não apenas a decisão da matéria de facto, impunha-se apenas que deitasse mão da impugnação da matéria de facto prevista no art.º 412º n.º3 do Código Processo Penal[17].
E a esse respeito é manifestamente errado pensar que basta ao recorrente formular discordância quanto ao julgamento da matéria de facto para o tribunal de recurso fazer «um segundo julgamento», com base na gravação da prova. O poder de cognição do Tribunal da Relação, em matéria de facto, não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento e faça tábua rasa da livre apreciação da prova, da oralidade e da imediação; apenas constitui remédio para os vícios do julgamento em 1.ª instância[18].
No mesmo sentido se pronuncia Damião Cunha[19], ao afirmar que os recursos são entendidos como juízos de censura crítica – e não como “novos julgamentos”.
Com efeito, “o recurso de facto para a Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes se deve afirmar que os recursos, mesmo em matéria de facto, são remédios jurídicos destinados a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros”[20].
O nosso poder de cognição está confinado aos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados, com as especificações estatuídas no art. 412º n.º 3 e 4 do Código Processo Penal.
Ora, como realçou o S.T.J., em acórdão de 12 de Junho de 2008[21], a sindicância da matéria de facto, na impugnação ampla, ainda que debruçando-se sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre quatro tipos de limitações:
- Desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância por parte do recorrente de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorretamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorretamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso;
- a que decorre da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações;
- a que resulta da circunstância de a reponderação de facto pela Relação não constituir um segundo/novo julgamento, cingindo-se a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação;
- A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.
No caso em apreço, o que resulta das motivações do recorrente é que à versão acolhida pelo Tribunal recorrido, aquele pretende contrapor uma outra versão, refutando a apreciação que além se fez dos meios de prova produzidos.
O recorrente esquece completamente a norma nuclear contida no artº 127º do C.P.P., quanto à valoração da prova no decurso da audiência de julgamento.
No nosso sistema processual, como acontece aliás com a grande maioria dos países europeus, vigora o princípio da livre apreciação da prova, por contraposição ao sistema da prova legal. Em conformidade com o referido princípio, o juiz tem total liberdade, de acordo com a sua íntima convicção, de proceder à valoração dos meios de prova obtidos.
Assim, regra geral (e ressalvadas as excepções previstas na lei), na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, o tribunal é livre de formar a sua convicção. Normalmente o que sucede é que face à globalidade da prova produzida, o tribunal se apoie num certo conjunto de provas, em detrimento de outras, nada obstando a que esse convencimento parta de um registo mínimo, mas credível, de prova, em detrimento de vastas referências probatórias, que, contudo, não têm qualquer suporte de credibilidade.
Aliás, é constante a orientação dos nossos Tribunais Superiores segundo a qual a convicção do julgador da 1.ª instância só pode ser modificada, pelo tribunal de recurso, quando a mesma violar os seus momentos estritamente vinculados (obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova) ou então quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. Como se pode ler por exemplo, no Acórdão da Relação do Porto[22], “(…) o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova, que tem consagração expressa no art.º 127.º do CPP. A decisão do Tribunal há-de ser sempre uma “convicção pessoal – até porque nela desempenham um papel de relevo não só a atividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais” – Prof. Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, vol. I, ed. 1974, pág. 204. Por outro lado, a livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em primeira instância. Como ensinava o Prof. Alberto do Reis “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal.” - Cód. Proc. Civil Anotado, vol. IV, págs. 566 e ss. (…)” O art.º 127.º do CPP indica-nos um limite à discricionariedade do julgador: as regras da experiência comum e da lógica do homem médio suposto pela ordem jurídica (…)”.
Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, deve acolher-se a opção do julgador, até porque o mesmo beneficiou da oralidade e imediação da recolha da prova.
Da análise das motivações de recurso, confrontadas com a motivação da decisão recorrida, a conclusão que se retira é que o presente recurso de facto não se funda na desconformidade entre a prova produzida em audiência, aproveitada pelo tribunal recorrido para formar a sua convicção, e os factos que, com base nela, veio a considerar provados, mas antes no entendimento do recorrente (alias, não justificado minimamente nas motivações), de que a sua versão dos factos é que é merecedora de credibilidade, e não a versão oposta que veio a ser acolhida na sentença recorrida. Ou seja, o que o recorrente pretende é substituir a convicção alcançada pelo tribunal recorrido com base na valoração que fez sobre determinados meios de prova, à sua própria convicção fundada, obviamente, na valoração que fez dos mesmos meios de prova.
Note-se, por outro lado, que no que respeita à impugnação da matéria de facto provada, a lei refere que o recorrente deve especificar as provas que «impõem» e não as que «permitiriam» decisão diversa. A dita especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorretamente julgados, só se satisfazendo tal especificação com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. Não tendo o recorrente indicado quais as provas que impõem decisão diversa da recorrida, para conhecer do recurso em matéria de facto este tribunal teria de apreciar toda a prova produzida na audiência de julgamento, ou seja, de proceder a um novo julgamento, como se o da 1ª instância não tivesse existido, sendo certo que o recurso em matéria de facto tem em vista remediar os males do julgamento da 1ª instância e não proceder a um novo julgamento, como se aquele não existisse.
É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção.
A circunstância de o tribunal recorrido ter atribuído credibilidade ao depoimento da testemunha D… que se encontrava na Zona Industrial e que referiu ter ouvido o arguido proferir as expressões “Puta” e “caloteira”, quando a acusação particular refere que a expressão “tens ar de puta” foi proferida junto às bombas de gasolina do E…, em Vila Pouca de Aguiar, não é susceptível de abalar a credibilidade que aquela testemunha mereceu ao tribunal recorrido. Por outro lado, não existe qualquer obstáculo processual a que, no confronto entre as declarações prestadas pela assistente e as declarações do arguido, o tribunal atribua maior credibilidade a um do que a outro, na medida em que se encontram ambas sujeitas à livre apreciação do julgador.
E não se diga, como pretende o recorrente, que tendo o tribunal dado credibilidade à versão relatada pela assistente, quanto às injúrias proferidas, tendo o arguido negado terminantemente que a tivesse injuriado, foi violado o princípio “in dubio pro reo”.
Antes de mais, importa acentuar que o tribunal recorrido não se socorreu de tal princípio o qual apenas significa que perante factos incertos, a dúvida favorece o arguido, porque não teve quaisquer dúvidas da valoração da prova e ficou seguro do juízo de censura ao arguido.
No caso vertente, tal princípio só teria sido violado se da prova produzida e documentada resultasse que, ao condenar o arguido com base em tal prova, o juiz tivesse contrariado as regras da experiência comum ou atropelasse a lógica intrínseca dos fenómenos da vida, caso em que, ao contrário do decidido, deveria ter chegado a um estado de dúvida insanável e, por isso, deveria ter decidido a favor do arguido.
Ora, se a fundamentação não viola o princípio da legalidade das provas e da livre apreciação da prova, estribando-se em provas legalmente válidas e valorando-as de forma racional, lógica, objetiva, e de harmonia com a experiência comum, não pode concluir-se que a mesma prova gera factos incertos, que implique dúvida razoável que afaste a valoração efetuada pelo tribunal para que deva alterar-se a decisão de facto recorrida, sendo, por conseguinte, lícita e válida a decisão de facto.
Como vimos, no caso dos autos a livre apreciação da prova não conduziu nem poderia conduzir à subsistência de qualquer dúvida razoável sobre a existência do facto e do seu autor. Por isso, não há lugar a invocar aqui o princípio do in dubio pro reo.
Com a devida vénia transcreve-se parte do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Janeiro de 2008, in processo n.º 07P4198, acessível em www.dgsi.pt, citando Cristina Líbano Monteiro, que explica cabalmente porque é que em casos como o dos autos não ocorre a violação do aludido princípio: “De todo o modo, não haverá, na aplicação da regra processual da «livre apreciação da prova» (art.º 127.º do CPP), que lançar mão, limitando-a, do princípio «in dubio pro reo» exigido pela constitucional presunção de inocência do acusado, se a prova produzida [ainda que «indireta»], depois de avaliada segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduzir – como aqui não conduziu – «à subsistência no espírito do tribunal de uma dúvida positiva e invencível sobre a existência ou inexistência do facto». O “in dubio pro reo”, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador»[23]. […] Donde que «não seja qualquer dúvida sobre os factos que autoriza sem mais uma solução favorável ao arguido», mas apenas a chamada dúvida razoável (“a doubt for which reasons can be given”)». Pois que «nos atos humanos nunca se dá uma certeza contra a qual não militem alguns motivos de dúvida». «Pedir uma certeza absoluta para orientar a atuação seria, por conseguinte, o mesmo que exigir o impossível e, em termos práticos, paralisar as decisões morais». Enfim, «a dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» (ibidem).
Conclui-se assim que o entendimento do recorrente sobre a aplicação do princípio “in dubio pro reo” é errado e significa uma compreensão deficiente das regras de apreciação da prova, não se justificando a sua aplicação no caso em apreço.

Conclui-se assim que a decisão recorrida não patenteia os vícios apontados pelo recorrente, não merecendo qualquer censura por parte deste Tribunal, considerando-se definitivamente assente a matéria de facto dada como provada.
Improcede, assim, mais este fundamento do recurso.
*
*
IV – DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido B…, confirmando consequentemente a douta decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
*
Porto, 19 de Dezembro de 2012
(Elaborado e revisto pela 1ª signatária)
Eduarda Maria de Pinto e Lobo
António José Alves Duarte
__________________
[1] O tribunal dará cumprimento à norma (374.º, n.º2 do CPP) e tendo presente o disposto no art. 205.º da CRP, ao identificar as provas que foram produzidas ou examinadas em audiência de julgamento e ao expor as razões de forma objectiva e precisa porque é que determinadas provas serviram para alicerçar a convicção e porque é que outras não serviram. – Sérgio Poças, “Da sentença Penal – fundamentação de facto”, Revista Julgar, n.3, pág. 37.
[2] Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, "Curso de Processo Penal" III, 3ª ed., pág. 347 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada).
[3] Ac. STJ para fixação de jurisprudência nº 7/95, de 19/10/95, publicado no DR, série I-A de 28/12/95.
[4] Cfr. Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª ed. Maio de 2012, p.568.
[5] Autor e ob. cit., pág. 570.
[6] A. Taipa de Carvalho no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, p. 571, refere que “a distinção principal entre o conceito de violência e o conceito de ameaça reside na atualidade (ou na iminência) ou na futuridade do mal”.
[7] Proferido no Proc. nº 0816766, relatado pela Des. Maria do Carmo Silva Dias, disponível em www.dgsi.pt.
[8] Ob. cit, pág. 553.
[9] Taipa de Carvalho, ob. cit., p. 573. Daí que, como salienta o mesmo Autor, «o critério da importância do mal reconduz-se ao critério da sua adequação a constranger, e este, tal como aquele, é um critério objectivo-individual: objectivo, na medida em que se apela ao juízo do homem comum; individual, uma vez que se tem de ter em conta as circunstâncias concretas em que é proferida a ameaça, nomeadamente, as sub-capacidades (…) do ameaçado (quando conhecidas ou quando, se não conhecidas, o agente tinha o dever de as conhecer)».
[10] Taipa de Carvalho, ob. cit., págs. 574 e 575.
[11] Coacciones por medio de violencia, em Id., Estudios de Derecho Penal, Civitas, 1997, pág. 440-441.
[12] Cfr. Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 570.
[13] Ob. cit., pág. 443.
[14] In Der Begriff der Gewalt im Strafrecht, 1962, pág. 59, apud Juan Felipe Higuera Guimerá, El delito de coacciones, 1978, pág. 99.
[15] Taipa de Carvalho, ob. cit., págs. 570 e 571.
[16] Sobre a distinção entre a «dimensão qualitativa» e a «dimensão quantitativa» do conceito de violência, vd. Santiago Mir Puig, El delito de coacciones en el Código Penal, em Anuário de Derecho Penal y Ciências Penales, tomo XXX, fascículo II, Maio-Agosto de 1977, págs. 274 e segs.
[17] Cfr. Maria João Antunes, RPCC, ano 4º (1994), Fasc. 1, pág. 121
[18] V. Germano Marques da Silva, in Forum Iustitiae, Ano I n.º 0 Maio de 1999, pág.
[19] In “O caso Julgado Parcial…”, 2002, pág. 37.
[20] Cfr, neste sentido, Ac. do STJ de 15/12/2005, proferido no proc. nº 2951/05 e Ac. STJ de 9/3/2006, proferido no proc. nº 461/06, relatados por Simas Santos (consultado no site do ITIJ – Bases Jurídicas Documentais). Aliás, como se diz no Ac. do STJ de 21/1/2003, proferido no proc. nº 02A4324, relatado por Afonso Correia (consultado no mesmo site), a admissibilidade da alteração da matéria de facto por parte do Tribunal da Relação “mesmo quando exista prova gravada, funcionará assim, apenas, nos casos para os quais não exista qualquer sustentabilidade face à compatibilidade da resposta com a respectiva fundamentação.
Assim, por exemplo:
a) apoiar-se a prova em depoimentos de testemunhas, quando a prova só pudesse ocorrer através de outro sistema de prova vinculada;
b) apoiar-se exclusivamente em depoimento(s) de testemunha(s) que não depôs(useram) à matéria em causa ou que teve(tiveram) expressão de sinal contrário daquele que foi considerado como provado;
c) apoiar-se a prova exclusivamente em depoimentos que não sejam minimamente consistentes, ou em elementos ou documentos referidos na fundamentação, que nada tenham a ver com o conteúdo das respostas dadas.”
[21] Proferido no Proc. nº 07P4375, disponível em www.dgsi.pt
[22] Proferido em 17.09.2003, no âmbito do recurso nº 312082, disponível no site www.dgsi.pt
[23] Cfr. Cristina Líbano Monteiro, “In Dubio Pro Reo”, Coimbra, 1977.

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/45b8b67a265e3ce080257aee003f47fd?OpenDocument

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