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segunda-feira, 17 de junho de 2013

DEVER DE COLABORAÇÃO COM A ADMINISTRAÇÃO FISCAL DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO PROCEDIMENTO INSPECTIVO - Acórdão do Tribunal da Relação do Porto - 27.02.2013


Acórdãos TRP
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto
Processo:
15048/09.1IDPRT.P1
Nº Convencional: JTRP000
Relator: ERNESTO NASCIMENTO
Descritores: DEVER DE COLABORAÇÃO COM A ADMINISTRAÇÃO FISCAL
DIREITO À NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO
DECLARAÇÕES PRESTADAS NO PROCEDIMENTO INSPECTIVO
APROVEITAMENTO NO PROCESSO PENAL

Nº do Documento: RP2013022715048/09.1IDPRT.P1
Data do Acordão: 27-02-2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1

Meio Processual: REC PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Indicações Eventuais: 4ª SECÇÃO
Área Temática: .

Sumário: I – O exercício do dever de colaboração do contribuinte com a administração fiscal e o direito à não auto-incriminação não é, as mais das vezes, um problema contemporâneo mas apenas sequencial.
II – Quando em confronto, não se está perante uma questão de prevalência de qualquer delas, mas de compatibilidade de soluções legais, em regra para momentos temporais e processuais diversos.
III - Se na pendência do procedimento inspectivo se indiciar a prática de crime tributário, verificando-se os pressupostos do artigo 58° C. P. Penal, ex vi, artigo 3° alínea a), 2ª parte, do RGIT, o sujeito passivo tributário tem de ser constituído arguido, cessando o seu dever de colaboração.
IV – A partir de então só colaborará se, livre e esclarecidamente, assim o entender, passando a beneficiar do catálogo de garantias constitucionais do artigo 32° da CRP assegurando-se-lhe o exercício de direitos e deveres legais constantes dos artigos 57° a 67° C P Penal, nomeadamente do direito de não responder a perguntas feitas por qualquer entidade sobre factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar.
V – A falta de explicitação deste direito tem como consequência que as declarações, prestadas posteriormente, não podem ser utilizadas como prova, ocorrendo proibição de valoração, artigo 58°/2 e 5 C P Penal.
VI - As declarações de que fala a lei não abrangem a prova documental.
VII - Operada a transição do processo inspectivo tributário para o processo penal, a “Declaração” do sujeito passivo naquele processo enquanto depoimento nada vale; enquanto “documento”, se aportada ao processo inspectivo de modo legal, vale como prova documental no processo penal, não se vislumbrando obstáculo à sua aquisição processual.
Reclamações:

Decisão Texto Integral: Processo comum singular 15048/09.1IDPRT do 1º Juízo Criminal de Vila do Conde

Relator - Ernesto Nascimento
Adjuntos – António Gama, Presidente da secção e Artur Oliveira

Acordam, em audiência, na 2ª secção criminal do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório

I. 1. Efectuado o julgamento foi proferida sentença, que decretou a condenação dos arguidos

B… e C…, como co-autores de um crime de abuso de confiança fiscal, na forma continuada, p. e p. pelos artigos 6º, 30º e 105º/1 do RGIT na pena, cada um deles, de 250 dias de multa a taxa diária de € 7,00, o que perfaz o montante global de € 1.750,00 e,

D…, Lda., como autora de um crime de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 7º e 105º/1 do RGIT na pena de 350 dias de multa a taxa diária de € 8,00, num total de € 2.800,00, sendo solidária a responsabilidade daqueles por este pagamento, nos termos do artigo 8º/7 do RGIT.

I. 2. Inconformado com o assim decidido, recorreu o arguido B… – pugnando pela sua absolvição e, mais requerendo a realização de audiência para debate de todos os pontos da motivação - apresentando as conclusões que se passam a transcrever:

1. o recorrente entende que a prova obtida e nula e não pode ser valorada pelo Tribunal, nos termos do disposto no artigo 58º/5 C P Penal, por ter sido obtida em violação do conjugadamente disposto no artigo 58º/2 e 5, 59º/1, 248º C P Penal e 40º do RCPIT, porque não obstante resultar já fundada suspeita da pratica do crime de abuso de confiança fiscal, o arguido recorrente (e os restantes arguidos) somente foram constituídos arguidos como tal e conheceram os direitos legalmente previstos no artigo 61º C P Penal em momento posterior ao da recolha, junto da sociedade arguida e fornecimento voluntário por esta de elementos que consideraram como essenciais para a prova do recebimento do IVA liquidado;
2. o recorrente considera que foram incorrectamente julgados os factos, que ao invés deveriam ter sido declarados como não provados:
“no exercício da referida actividade a sociedade arguida facturou e liquidou IVA e procedeu ao envio das declarações periódicas de IVA, quantias, porem, que não entregou nos serviços de Administração do IVA nos seguintes períodos, sem que tenha procedido a regularização dos mesmos após a notificação a que alude o artigo 105º/4 alínea a) do RGIT, nos termos e montantes infra apurados e discriminados:
Os arguidos não entregaram as quantias referidas supra dentro dos devidos prazos nos Cofres da Fazenda Nacional, nem nos 90 dias subsequentes aos aludidos prazos, integrando-as no património da sociedade arguida, não obstante saberem que aquelas não lhes pertenciam e que as não podiam utilizar em proveito da sociedade, senão para as entregar aos competentes serviços do Estado”;
3. o recorrente considera que foram incorrectamente julgados os factos julgados como não provados e que ao invés deveriam ter sido julgados como provados:
“a) os técnicos da inspecção tributaria pediram informação a sociedade arguida todos os elementos que os mesmos considerassem como fundamentais para a prova do recebimento do IVA liquidado;
b) a recolha da informação necessária, segundo os técnicos da inspecção tributaria, para a prova do recebimento do IVA precedeu, em todas as suas fases, a constituição dos arguidos nessa qualidade e a informação dos mesmos dos direitos que legalmente lhes esta assegurado;
c) os técnicos tributários não confirmaram o recebimento efectivo dos valores registados contabilisticamente como pagos;
d) os técnicos tributários não confirmaram o recebimento efectivo do IVA liquidado nas facturas na data de envio de cada uma das declarações periódicas de IVA, nem, do mesmo modo, nos 90 dias posteriores ou ate ao termo do prazo fixado pela notificação da alínea b) do n.º 4 do artigo 105º do RGIT;
e) que a data de entrega das declarações periódicas de IVA dos períodos em questão nos autos fixada na lei foi respeitada pela sociedade arguida”;
4. o recorrente considera que foram incorrectamete julgados os factos que se não julgou e que deveriam ter sido julgados como não provados:
“a) o recebimento do IVA liquidado em todas as facturas emitidas pela sociedade arguida e o recebimento de todas as facturas ate ao dia 10 do segundo mês seguinte aquele a que o período de imposto diz respeito”;
5. entre outras, são as seguintes as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, pelas razoes que ficaram desenvolvidas no texto desta motivação:
- declarações da testemunha E…, prestadas na sessão do julgamento que teve lugar no dia 3OUT2011, que foram gravadas entre as 14:43 e terminou as 14:46 horas, com particular realce para o segmento acima transcrito, registado na gravação as rotações 01:58 a 02:29;
- declarações da testemunha F…, prestadas na sessão do julgamento que teve lugar no dia 3OUT2011, que foram gravadas entre as 14:50 e terminou as 15:07 horas, com particular realce para os segmentos acima transcritos, registado na gravação as rotações 00:48 a 01:22, 04:31 a 05:48, 06:21 a 10:29;
- declarações da testemunha G…, prestadas na sessão do julgamento que teve lugar no dia 3OUT2011, que foram gravadas entre as 15:08 e as 15:17 horas, com particular realce para os segmentos acima transcritos, registados na gravação as rotações 01:49 a 01:51, 05:39 a 06:23, 06:37 a 08:41;
- documentos juntos a fls. 76 a 96 dos autos;
6. da analise destes meios probatórios, que ficou feita no texto e para onde se remete, resulta que o tribunal a quo incorreu em erro de julgamento, por incorrecta fixação, avaliação e valoração da prova e ofensa irreparavel das regras da experiência comum, afastando-se e violando os critérios da livre apreciação, tal como estão prescritos no artigo 127º C P Penal;
7. o recorrente considera que existe erro na aplicação do direito pois o tribunal a quo erradamente,
aplicou o n.º 1 do artigo 105º do RGIT a situações de não entrega do IVA quando elemento objectivo do tipo de crime previsto no n.º 1 do artigo 105º do RGIT somente abange as situações de retenção de imposto e o IVA não e um imposto que funcione por dedução/retenção;
interpretou o disposto no n.º 2 do artigo 105º do RGIT, a considerar-se por mera cautela de patrocínio, no sentido que o recebimento a data do termo do prazo legal de entrega da declaração periódica de IVA não era relevante para efeitos de preenchimento do tipo legal de crime, quando o seu recebimento da data do termo de prazo legal e entrega da declaração periódica de IVA e elemento objectivo do tipo legal de crime previsto no n.º 2 do artigo 105º do RGIT;
8. nos termos do disposto na alínea b) do artigo 431º C P Penal, pode e deve a Relação modificar a decisão recorrida e julgar provados e não provados, respectivamente, os factos referenciados nos antecedentes n.ºs 2 a 4;
9. ainda que a matéria de facto impugnada se mantenha inalterada, tem de ser alterada a decisão em sede de subsunção jurídica por não se verificar o preenchimento dos elementos objectivos do tipo legal do crime, p. e p. pelo artigo 105º/1 ou 2 do RGIT, que lhe foi imputado e pelo qual foi condenado, nem de qualquer outro crime, resultando que o recorrente tem de ser absolvido do crime p. e p. pelo artigo 105º/1 do RGIT, que lhe foi imputado e pelo qual foi condenado.

I. 3. Na resposta que apresentou, o Magistrado do MP. defendeu o não provimento do recurso.

II. Subidos os autos a este Tribunal o representante do MP, da mesma forma, subscrevendo aquela resposta, emitiu parecer no sentido do não provimento do recurso.

Seguiram-se os vistos legais.

Teve lugar a audiência.

Cumpre agora apreciar e decidir.

III. Fundamentação

III. 1. Como é por todos consabido, são as conclusões, resumo das razões do pedido, extraídas pelo recorrente, a partir da sua motivação, que define e delimita o objecto do recurso, artigo 412º/1 C P Penal.
No caso presente, de harmonia com o que o arguido designou de conclusões, podemos, enunciar que para apreciação, foram suscitadas as seguintes questões:

saber se a prova obtida é nula e não pode ser valorada pelo Tribunal, nos termos do disposto no artigo 58º/5 C P Penal, por ter sido obtida em violação do conjugadamente disposto no artigo 58º/2 e 5, 59º/1, 248º C P Penal e 40º do RCPIT;
saber se será caso de modificação do julgamento da matéria de facto – não provada, ou por erro de julgamento, ou com base no vício do erro da fixação da matéria de facto e,
erro na aplicação do Direito.

Donde resulta, que, por um lado,
apesar de ter sido abordada no corpo da motivação, não foi levada ao capítulo reservado às conclusões - tendo-se que entender que foi deixada cair - e, por isso não pode ser abrangida pelo âmbito de cognição deste Tribunal, a questão da nulidade da sentença, por alegada falta de indicação da prova que serviu para formar a convicção do tribunal e,
por outro, apesar de constar das conclusões – que comummente se traduzem no resumo das razões do pedido – o que não constar do corpo da motivação, não se podendo considerar como o resumo de coisa alguma, da mesma forma, se não pode ter como incluído no âmbito de cognição do tribunal de recurso - o que acontece no caso concreto, com os alegados erros de julgamento, para além dos reportados aos pontos 5. e 7. dos factos provados.

III. 2. Vejamos, então, para começar, a matéria de facto definida pelo Tribunal recorrido.

Factos provados
“1. A sociedade arguida é uma sociedade comercial por quotas, constituída em 1990, encontrando-se matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Vila do Conde, sob a matrícula ………, com o objecto social de importação e comercialização de máquinas industriais, acessórios e produtos de apoio às indústrias de lavandaria, têxtil, confecção, calçado e alimentar, e no transporte e manutenção dos equipamentos comercializados.
2. A sociedade arguida encontra-se enquadrada no regime mensal de IVA.
3. A gerência de tal sociedade está atribuída, desde a sua constituição, de forma conjunta aos arguidos B… e C…, sendo necessário para obrigar a sociedade arguida a assinatura de ambos os gerentes, ou de um gerente e um procurador com poderes para o acto.
4. Eram os arguidos B… e C… quem, pelo menos desde 2004, gerindo a empresa, sendo aqueles quem pratica os actos de comércio e gestão, obrigando a sociedade por si representada, assinando cheques, efectuando pagamentos, contratando e despedindo trabalhadores, auferindo os proventos decorrentes de tal actividade e decidindo sobre a afectação dos recursos ao pagamento das obrigações.
5. No exercício da referida actividade a sociedade arguida facturou e liquidou IVA e procedeu ao envio das declarações periódicas de IVA, quantias porém que não entregou nos Serviços de Administração do Imposto Sobre o Valor Acrescentado nos seguintes períodos, sem que tenha precedido à regularização dos mesmos após a notificação a que alude o artigo 105°/4 a) do RGIT, nos termos e montantes infra apurados e discriminados:
Período de imposto IVA apurado a pagar IVA ainda em dívida
2008-4 € 12.173,65 € 7.499
2008-11 € 21.505,91 € 21.505,91
2008-12 € 25.423,04 € 25.423,04
2009-1 € 9.032,93 € 7.499
2009-3 € 8.535,85 € 7413
2009-6 € 11.799,18 € 11.799,18
2009-9 € 24.450,76 € 27.450,76
6. Tais quantias, num total de € 115.775,16 deveriam ter sido entregues nos Serviços da Administração Fiscal até ao 10° dia do 2º mês seguinte ao mês a que dizem respeito as operações.
7. Os arguidos não entregaram as quantias referidas supra dentro dos devidos prazos nos Cofres da Fazenda Nacional, nem nos 90 dias subsquentes aos aludidos prazos, integrando-as no património da sociedade arguida, não obstante saberem que aquelas lhes não pertenciam e que não as podiam utilizar em proveito da sociedade, senão para as entregar aos competentes serviços do Estado.
8. Essas omissões de entrega dos montantes do IVA ocorreram porque em data concretamente não determinada, mas situada antes de Abril de 2008, os arguidos B… e C… optaram por responder a dificuldades de tesouraria sentidas pela sociedade arguida com a afectação de quantias recebidas por via de cobrança de imposto sobre o valor acrescentado, utilizando essas quantias para o pagamento de salários, fornecedores e demais despesas relativas ao giro comercial da empresa, optando por afectar tais quantias a estes pagamentos para permitir manter a sociedade a laborar, apesar de saberem que estavam obrigados a entregá-Ias aos cofres da Fazenda Pública e que tal actuação implicava consequências penais, opção essa que foram renovando devido à manutenção das dificuldades económicas da empresa e ao fácil acesso que tinham às quantias relativas ao IVA que iam recebendo dos clientes.
9. Os arguidos actuaram ainda aproveitando a oportunidade favorável à prática dos factos descritos, dado que, após a prática dos primeiros factos, não foram alvo de qualquer fiscalização ou penalização e verificaram persistir a possibilidade de repetirem as suas condutas.
10. Os arguidos, em data prévia à notificação referida em 4° procederam a pagamentos parciais com referência aos períodos Abril de 2008, Janeiro de 2009 e Março de 2009, nos montantes, respectivamente, de € 4.744,31; € 2.150,30 e € 1.122,85, pelo que ficaram em dívida relativamente ao mês de Abril de 2008 € 7.499,00; relativamente ao mês de Janeiro € 7.499,00 e relativamente ao mês de Março de 2009 € 7.413,00.
11. Os arguidos B… e C… agiram, em comunhão de esforços e intentos, em nome e no interesse da sociedade arguida, de forma voluntária, livre e consciente, bem sabendo que as condutas acima descritas eram proibidas e punidas por lei, com intenção de obter, como obtiveram, para a sociedade por si representada, vantagens patrimoniais, em detrimento do Estado Português, apropriando-se daquelas importâncias, apesar de saberem que não lhes pertenciam, e que as deviam entregar ao Serviço de Cobrança do IVA - Fazenda Nacional, o que não fizeram.
12. Mais sabiam que se encontravam obrigados a proceder à entrega dos montantes de imposto cobrado e retido e, mesmo assim, não se coibiram de os reter em detrimento da Fazenda Nacional.
13. Os arguidos foram notificados, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 105°/4, alínea b), do RGIT, a 10 de Março de 2010 e a 31 de Agosto de 2010, mantendo-se no entanto os montantes relativos às contribuições retidas, relacionadas com falta de pagamento de IVA, em dívida, nos termos e valores sobreditos, com excepção dos valores referidos em 10.
14. Os arguidos efectuaram acordos de pagamento de outras dívidas fiscais relativas a períodos fiscais anteriores aos aqui em causa, a partir de 2005, tendo efectuado pagamentos parciais de algumas dessas quantias.
15. Para o efeito, os arguidos recorreram ao crédito bancário tendo celebrado mútuos garantidos por hipoteca das suas habitações próprias e desponilizaram valores que tinham em PPRs.
16. A maior parte desses valores pagos foi, no entanto, consumida no pagamento de juros e coimas, abatendo o remanescente ao capital em dívida.
17. Os funcionários da sociedade arguida sempre receberam os ordenados.
18. A sociedade está encerrada desde Dezembro de 2010.
19. Os arguidos não têm antecedentes criminais.
20. O arguido B… está desempregado, não auferindo qualquer tipo de rendimentos. É divorciado, mas partilha ainda a casa de morada de família com a mulher, estando em incumprimento relativamente ao contrato de mútuo. Tem 2 filhos a frequentar o Ensino superior e vivem com a ajuda da família Tem o 5º ano da Escola Industrial.
21. O arguido C… está desempregado, vive com a mulher na casa de morada de família, estando em incumprimento relativamente ao contrato de mútuo. Tem uma filha com 15 anos. Tem o 7° ano da Escola lndustrial”.

Factos não provados

“Os arguidos B… e C… tenham integrado as quantias de IVA recebido e não entregue no seu património pessoal”.

Porque tal questão releva igualmente para a discussão do recurso, vejamos, também, o que em sede de fundamentação se deixou exarado no que concerne à convicção assim formada pelo Tribunal.

“O tribunal formou a sua convicção analisando a prova de forma global e critica. Relativamente à constituição da sociedade D…, ao seu objecto social, à data da constituição, à nomeação dos gerentes da mesma e à forma de a obrigar valorou-se a Certidão de Matricula de fls. 28 a 30.
Quanto à forma de tributação em sede de IVA, à entrega das declarações e às não entregas dos valores devidos a título de IVA, bem como à forma como os montantes em dívida foram apurados valoraram-se os depoimentos da testemunha F…, inspector tributário o qual afirmou ter estado nas instalações da empresa e ter contactado com a funcionária H… a quem deixou a notificação de fls. 230 e 232 para identificação dos sócios gerentes e para solicitação da entrega dos elementos contabilísticos que comprovassem o recebimento do IVA liquidado relativo aos períodos de Abril, Novembro e Dezembro de 2008, em causa nos autos, tendo aquela ficha sido devolvida já preenchida com os nomes dos sócios-gerentes. Depois contactou com o TOC e os elementos foram-lhe entregues para anáfise.
Verificou os extractos da conta-corrente dos clientes onde consta as datas de pagamento das facturas e verificou quais os montantes que tinham sido efectivamente recebidos e, não entregues, só tendo considerado esses valores.
Confirma a existência de um pagamento parcelar relativamente ao mês de Abril de 2008 mas já em sede de execução fiscal.
A testemunha G…, técnica superior no Serviço de Finanças do Porto, afirma que efectuou a inspecção à sociedade arguida relativamente aos períodos de Janeiro, Março, Junho e Setembro de 2009, em causa nos autos.
Afirma que recebeu uma ordem de serviço para efectuar uma inspecção relativa àqueles períodos concretos e solicitou à sociedade arguida o envio dos elementos contabilísticos para comprovar o recebimento do IVA naqueles valores, a sociedade enviou os elementos, incluindo conta-corrente e recibos.
Aliás, uma das respostas da sociedade arguida consta da carta de fls. 41, onde refere que envia: “a relação de facturas, recibos de quitação das verbas recebidas relativas a essas facturas, declaração periódica do IVA, bem como elementos de suporte para o seu preenchimento.
A testemunha afirma que relativamente ao recebimento valorou os elementos enviados pela sociedade, tais como os recibos existentes e juntos de fls. 332 a 422 e ainda a análise da conta-corrente e elementos juntos a fls. 44 ss.
Quanto aos pagamentos parciais relativos a estes períodos também foram confirmados pela testemunha.
Ambas as testemunhas afirmaram que tiveram colaboração por parte da sociedade que facultou o que lhes era pedido.
As testemunhas depuseram de forma isenta, objectiva e segura denotando absoluto conhecimentos sobre os factos.
Relativamente à gerência de facto da sociedade os arguidos não quiseram prestar declarações, tendo vindo todavia, no seguimento do depoimento da testemunha I…, juntar os elementos documentais de fls. 448 a 579.
Ouvida a testemunha J… que nos períodos em causa nos autos era formalmente a Técnico Oficial de Contas da sociedade afirmou que o era apenas formalmente já que era a sua mãe quem, na prática exercia tais funções, limitando-se a testemunha a assinar a documentação porque a sua esteve impedida de o fazer devido a um problema de equivalência de habilitações.
A testemunha I… afirma que desde Junho de 2008 prestava serviços de TOC à sociedade arguida, embora formalmente só assine como TOC a partir de Dezembro de 2010, sendo a sua filha quem assinava anteriormente a documentação.
A testemunha afirma que eram os arguidos C… e B… quem geria a empresa desde que ela prestou serviços para a sociedade. Era com eles que contactava, indo à empresa todas as semanas, às vezes mais do que uma vez por semana.
Eram eles quem tomava as decisões.
Afirma que fez várias reuniões com os arguidos dando-lhes conta da situação fiscal da mesma.
Esclarece que os arguidos ainda pagaram alguns períodos de IVA em falta e fizeram empréstimos com hipoteca das suas casas para efectuar pagamentos parciais. Disponibilizaram ainda dinheiro de PPRs que tinham, só que o valor dos juros e das coimas consumiam tudo e a testemunha aconselhou-os a encerrar a empresa, pois, não havia viabilidade, o que veio a acontecer em Dezembro de 2010.
Ainda fizeram um pedido de pagamento prestacional gIobal ao Serviço de Finanças mas nunca obtiveram resposta.
Afirma que todos os elementos que foram fornecidos aos inspectores eram dados que constavam da contabilidade da empresa.
A testemunha depôs de forma isenta, objectiva e absolutamente segura, chegando a dizer que foi até contra a realização de empréstimo com hipoteca das casas próprias dos arguidos porque sabia que aquiIo não ia resolver nada, atendendo aos valores que estavam em divida.
Não sabe quais as causas que originaram o não pagamento do IVA no período anterior à sua entrada para a empresa.
Ora, os arguidos não quiseram prestar declarações e não produziram qualquer prova sobre o porquê de a situação fiscal ter chegado onde chegou.
Apenas se sabe, por ter sido esclarecido pela testemunha I… que o volume de negócios da empresa, no período em que lá prestava serviços, não chegava para se poder pagar os impostos e as demais despesas, pois, a sociedade tinha que importar as máquinas que comercializava de Itália e tinha que adiantar o dinheiro para as pagar senão não lhas forneciam.
Mais afirmou que os arguidos estavam esperançados em conseguir ultrapassar aquela fase e, por isso, investiam dinheiro próprio na empresa que ia directamente para pagamento de impostos.
Ora, destas afirmações resulta que os arguidos optaram por canalizar as quantias de IVA recebido e não entregue para pode pagar os salários e as despesas mais prementes com fornecedores e outras que se mostrassem essenciais para manter a empresa a laborar, pois, estavam esperançados na recuperação da empresa e, assim sendo, poderiam vir a pagar aquelas quantias.
Aliás, o depoimento da testemunha I… quanto à gestão da empresa foi confirmado pela testemunha H…, funcionária da sociedade arguida de 2004 a 2010, exercendo as funções de administrativa. A testemunha não tem dúvidas em afirmar que eram os arguidos B… e C… quem geriam na prática a sociedade. Eram eles quem contratava funcionários, assinavam cheques para efectuar pagamentos, davam ordens aos funcionários, não existindo mais ninguém na empresa que desse ordens.
A testemunha depôs de forma isenta, objectiva e segura, afirmando que os salários sempre foram pagos.
Aliás, a atitude dos arguidos ao diligenciarem pelo pagamento dos impostos só se entende vinda de gerentes da empresa.
Relativamente à situação económica dos arguidos valeram as declarações dos mesmos que se afiguraram credíveis.
Valoraram-se os documentos que constituem os anexos e os documentos de fls. 448 a 579.
Valorou-se ainda o CRC dos arguidos”.

III. 3. Apreciemos.

III. 3. 1. A nulidade da prova.

III. 3. 1. 1. As razões do arguido.

Entende o recorrente que a prova obtida é nula e não pode ser valorada pelo Tribunal, nos termos do disposto no artigo 58º/5 C P Penal, por ter sido obtida em violação do conjugadamente disposto no artigo 58º/2 e 5, 59º/1, 248º C P Penal e 40º do RCPIT, porque não obstante resultar já fundada suspeita da prática do crime de abuso de confiança fiscal, o arguido recorrente (e os restantes arguidos) somente foram constituídos arguidos como tal e conheceram os direitos legalmente previstos no artigo 61º C P Penal em momento posterior ao da recolha, junto da sociedade arguida e fornecimento voluntário por esta de elementos que consideraram como essenciais para a prova do recebimento do IVA liquidado.

Neste segmento defende o recorrente que no âmbito do processo penal, com dignidade constitucional, o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença condenatória, não sendo obrigado a contribuir para a sua própria culpabilidade e que como garantia da efectivação deste direito à sua não auto-incriminação, o legislador previu que resultando fundada suspeita de crime deve, desde logo, a inquirição ser suspensa de imediato, se a pessoa que está a ser ouvida não tiver a qualidade de arguido, pois que caso contrário as declarações não podem ser utilizadas como prova, contrariamente em sede de inspecção tributária, desde logo o artigo 9º do RCPIT impõe ao sujeito passivo o dever de cooperação com a administração tributária, resultando do artigo 10º do mesmo diploma que o incumprimento, ilegítimo, desse dever, pode ser fundamento da aplicação dos métodos indirectos de tributação - obrigação de colaboração esta, que compreende a enterga de documentos, bem com a prestação de declarações.
Daqui pretende o arguido que se ao abrigo do disposto no artigo 40º/2 do RGIT aos órgãos da administração tributária cabem no decurso do inquérito, os poderes e as funções que o C P Penal atribui aos OPC impõe-se então que a instauração de inquérito seja de imediato comunicada ao MP e quando a administração tributária, com competência delegada, se dirige à entidade sobre a qual existem fundadas suspeitas de que haja praticado um crime, de a constituir como arguido, nos termos do artigo 248º C P Penal, sob pena de qualquer prova que venha a obter dessa entidade antes desse momento não possa vir a ser utilizada contra ela, nos termos do n.º 5 do artigo 58º C P Penal.
Ora, continua o arguido, se no caso,
nenhum dos pedidos de informação, satisfeitos, foi precedido da constituição da sociedade e dos seus gerentes como arguidos,
só a resposta aos pedidos serviu de base à conclusão e, mesmo confissão de que o IVA facturado tinha sido recebido;
só depois da resposta é que os arguidos foram constituídos como tal,
quando o deveriam ter sido imediatamente, com a comunicação do inerente direito ao silêncio,
então a prova assim obtida é ilegal – seja, as declarações - documentos entregues pela sociedade e confissão de recebimento do valor das facturas, e não podia ser valorada, como foi.

III. 3. 1. 2. Atentemos.

Sobre este tema – que se pode traduzir no dever de colaboração do obrigado tributário com a autoridade tributária versus o direito ao silêncio, presunção da inocência e direito à não auto-incriminação - debuçou-se recentemente o Sr. Presidente desta secção criminal que em intervenção oral [1] proferida no Curso de Especialização Temas de Direito Fiscal Penal, organizado pelo Centro de Estudos Judiciários, em Lisboa, em 15, 22 e 29 de Junho e 6 de Julho de 2012, consultável in site daquela instituição, teceu as considerações - com os habituais brilhantismo e sagacidade, tais, que importa aqui realçar, salientar - que, porque a elas aderimos, sem qualquer reserva, passamos com a devida vénia a citar e transcrever.

Conforme resulta do preâmbulo do Decreto Lei 413/98, de 31DEZ, que estabeleceu o Regime Complementar de Procedimento da Inspecção Tributária - pretendendo-se um sistema que garanta proporcionalidade, segurança dos sujeitos passivos e obrigados tributários e a própria participação destes na formação das decisões - a inspecção tributária e os particulares estão sujeitos a um conjunto de regras
Nos artigos 5º a 9º afirmam-se e consagram-se os princípios da verdade material, da proporcionalidade, do contraditório e da cooperação.
O dever de colaboração ou de cooperação fiscal por parte dos contribuintes está ainda, desde logo, expresso na Lei Geral Tributária, artigo 59°/1, “os órgãos da administração tributária e os contribuintes estão sujeitos a um dever de colaboração mútua”, estando, a inspecção tributária e os sujeitos passivos da obrigação tributária, adstritos a um dever mútuo de cooperação, adequado e proporcional aos objectivos a prosseguir, artigo 63º/4 da LGT. Uma das obrigações acessórias do sujeito passivo é a apresentação de declarações, exibição de documentos, contabilidade ou escrita e a prestação de informações, artigo 31º da LGT.
A falta de cooperação, quando ilegítima, constitui fundamento de aplicação de métodos indirectos de tributação, artigo 10º do Regime Complementar de Procedimento da Inspecção Tributária e 87º da Lei Geral Tributária, faz incorrer o infractor em responsabilidade disciplinar, contra-ordenacional ou criminal, artigos 59º/4 da Lei Geral Tributária, 48º/2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário e 113º do RGIT.
Também, segundo o artigo 48°/2 do Código de Procedimento e de Processo Tributário, aprovado pelo Decrecto Lei 433/99, de 26OUT, “o contribuinte cooperará de boa fé na instrução do procedimento, esclarecendo de modo completo e verdadeiro os factos de que tenha conhecimento e oferecendo os meios de prova a que tenha acesso”.

Por seu lado, como é sabido, no processo penal comum o arguido goza do direito ao silêncio, da presunção de inocência e do direito à não auto-incriminação.
O princípio nemo tenetur se ipsum accusare - “ninguém tem que acusar-se a si mesmo”, “ninguém deve ser obrigado a contribuir para a sua própria incriminação”, tem como corolários o direito ao silêncio e o direito de não facultar meios de prova e reporta-se à dignidade da pessoa humana, à liberdade de acção e à presunção de inocência e está consagrado nos artigos 20º/4 da CRP- que reconhece o direito a um processo equitativoe – e 32º - que afirma as garantias da defesa no processo penal.
De resto, o direito do arguido ao silêncio para não se auto-incriminar também está consagrado, genericamente, no artigo 61º/1 alínea d) C P Penal – que estipula que, o arguido goza, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as excepções da lei, a não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre os factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles presta – surgindo ainda afloramentos deste direito, nos artigos 141º/4 alínea a), 343º/1, 356º/1 alínea b) e 357º/1 do mesmo diploma.
Se o arguido é obrigado a responder às perguntas sobre a sua identidade – artigos 141º/3, interrogatório judicial de arguido detido e 143º/2, interrogatório não judicial de arguido detido, já quanto aos factos imputados, tem direito ao silêncio, tem direito a prestar declarações, sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo – artigo 343º/1 C P Penal.

Coloca-se assim, a questão de saber se se verifica, ou não, uma tensão ou mesmo incompatibilidade entre o dever de colaboração com a autoridade tributária e o direito à não incriminação ou se se verifica, ou não, uma eventual dicotomia entre o dever de cooperação e o Direito á não Auto-Incriminação.
Na fase da intervenção da inspecção tributária vigoram vários direitos, mas não o direito ao silêncio.
Se a prova recolhida na fase inspectiva “transita” para o inquérito, importa questionar a relevância probatória do adquirido, qual o valor, em inquérito e julgamento, dessa prova.
A regra em matéria de prova é a admissibilidade das provas que não forem proibidas por lei, artigo 125º C P Penal. Se o adquirido na fase administrativa não constituir método proibido de prova, artigo 126º C P Penal e obedecer na sua recolha às regras aplicáveis nada obsta, em princípio, a que possa ser valorado em inquérito, instrução e julgamento.
O “constrangimento” legal do sujeito passivo a colaborar na fase inspectiva, não constitui ameaça com medida legalmente inadmissível, artigo 126º/2 alínea d) C P Penal, pois esse constrangimento e a sanção da falta de colaboração estão legalmente previstos. Nem é em abstracto desproporcionado.
Tal não invalida o dever de a administração verificar se o contribuinte deve ser constituído arguido e o direito do contribuinte, mesmo na fase administrativa, de se não auto-incriminar quando se verifiquem os pressupostos de ser constituído arguido, exigindo a sua constituição como tal.
Os documentos só não podem ser utilizados se a situação cair na previsão do artigo 126º C P Penal. Os documentos validamente obtidos pela Administração Fiscal junto dos contribuintes, ao abrigo de um dever geral de colaboração ou na sequência de deveres de informação que a estes são impostos, não constituem prova proibida, pelo que poderão ser considerados no processo criminal em que sejam arguidas as pessoas que entregaram esses documentos.
A delimitação do âmbito normativo do que é declaração é importante. Se no art.º 55º do Regime Complementar de Procedimento da Inspecção Tributária se distingue, como no processo penal comum, entre documentos e declarações, o âmbito normativo de declaração em direito tributário limita-se, em regra, a documentos, não a depoimentos.
Estas “declarações”, não são, em regra, declarações no sentido técnico jurídico-penal comum de depoimento, mas, predominantemente, informações relevantes em suporte documental oficial, aprovado e regulado legislativamente, tendo em vista possibilitar o apuramento da obrigação de imposto.
Os elementos indiciadores de crime – excluindo-se as declarações/depoimento do sujeito passivo – recolhidos na fase da inspecção tributária, recolhidos em conformidade com as regras legais daquela fase administrativa, podem posteriormente constituir elementos de prova no processo criminal.
Na fase inspectiva administrativa o catálogo dos direitos do sujeito passivo tributário, quer os reconhecidos na Constituição, artigo 32º, quer no artigo 89º do Código de Processo Administrativo, quer os consagrados na LGT, CPPT e nas leis específicas de cada imposto, em regra, não conflituam com o dever de cooperação. A antinomia pode ganhar relevância no confronto entre o dever de cooperação na fase inspectiva, artigo 9º, 32º/1 do Regime Complementar de Procedimento da Inspecção Tributária, 59º e 75º da Lei Geral Tributária e, o direito à não incriminação.
De resto, a própria CRP consagra, a par das garantias processuais penais, garantias e deveres em matéria de impostos, artigos 103º e 104º. Temos em vista o dever constitucional de pagar impostos, dever que coenvolve um facere: a cooperação do contribuinte apresentando as suas declarações. Nesta perspectiva, quer o dever de cooperação, quer o direito à não auto incriminação acabam por ter assento constitucional. Por isso parece-me redutora a solução que, perante um direito – ao silêncio, presunção de inocência e direito à não auto incriminação – e um dever de pagar impostos, arrume a questão dando prevalência irrestrita ao direito em detrimento do dever. O TEDH o TC e os outros tribunais nacionais têm dito o que é óbvio: o nemo tenutur não é absoluto. Depois ao dever de colaboração está ligado o direito de participação na formação das decisões respeitantes ao contribuinte e que o afectem, artigo 60º da Lei Geral Tributária.
A Constituição não define uma hierarquia de valores. Em caso de conflito não há que sacrificar uns aos outros; o que há, necessariamente, é encontrar uma concordância prática entre os diversos interesses que possam conflituar: em cada caso concreto, procurar encontrar a forma de sacrificar o menos possível cada um dos bens jurídicos que estejam em conflito.
A imposição do dever de colaboração visa a salvaguarda de direitos e interesses constitucionalmente protegidos. Essa restrição é necessária para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e não diminui a extensão e o alcance do conteúdo essencial do preceito constitucional que consagra o direito ao silêncio. Do dever de colaboração depende a cobrança de impostos. É com essa receita que o Estado “promove o bem-estar e a qualidade de vida do povo e a igualdade real entre os portugueses, bem como a efectivação dos direitos económicos, sociais, culturais e ambientais, mediante a transformação e modernização das estruturas económicas e sociais, tarefas fundamentais do Estado”, al. d) do artigo 9º da CRP. É com a receita dos impostos que o Estado, al. b) do artigo 81º, “promove a justiça social, assegura a igualdade de oportunidades e opera as necessárias correcções das desigualdades na distribuição da riqueza e do rendimento”.
A administração tributária exerce as suas atribuições tendo em vista a realização do interesse público, de acordo com os princípios da legalidade, da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, imparcialidade, celeridade e no respeito pelas garantias dos contribuintes, artigo 55º da Lei Geral Tributária.
O dever de colaboração tem uma dupla face, enquanto dever de colaboração e como direito já de “defesa”, de “resposta”, co-determinante/conformador da decisão da administração. A primeira finalidade do sistema fiscal é a satisfação das necessidades financeiras do estado e outras entidades públicas, artigo 103º/1 da CRP. Deste pondo de vista, interessa a eficiência e eficácia do sistema, sendo sua peça chave, o dever de colaboração. De outro modo, como se intui, seria virtualmente impossível o trabalho de comprovação da veracidade das declarações dos contribuintes e deixaria desprovido de qualquer garantia e eficácia o dever tributário que a Constituição consagra.
Já Marcello Caetano se referia a uma insubstituível colaboração do contribuinte com o fisco, através das declarações a apresentar aos serviços.
Entre um direito constitucional e um dever materialmente constitucional não se segue a prevalência do direito e o sacrifício do dever, tanto mais quando o legislador já resolveu legislativamente a sua concordância prática: na fase inspectiva vigoram os princípios da cooperação, da verdade material, da proporcionalidade e do contraditório; na fase processual penal ganha plenitude o estatuto do arguido, o direito ao silencio e à não auto-inculpação.
O exercício do dever de colaboração e do direito à não auto incriminação não é, as mais das vezes, um problema contemporâneo mas, nos casos em que ocorre, apenas sequencial. Não temos uma questão de prevalência mas de compatibilidade de soluções legais, em regra para momentos temporais e processuais diversos.
Porém se na pendência do procedimento inspectivo se indiciar crime tributário, verificando-se os pressupostos do artigo 58º C P Penal, ex vi, artigo 3º alínea a), 2ª parte, do RGIT, o sujeito passivo tributário deve ser, tem de ser constituído arguido, cessando o seu dever de colaboração; só colaborará se, livre e esclarecidamente, assim o entender, passando a beneficiar do catálogo de garantias constitucionais artigo 32º da CRP assegurando-se-lhe o exercício de direitos e deveres legais constantes dos artigos 57º a 67º C P Penal, nomeadamente do direito de não responder a perguntas feitas, por qualquer entidade, sobre factos que lhe forem imputados e sobre o conteúdo das declarações que acerca deles prestar. Como é sabido a falta de explicitação deste direito tem como consequência, que as declarações prestadas posteriormente, não podem ser utilizadas como prova, ocorrendo proibição de valoração, artigo 58º/2 e 5 C P Penal.
As declarações de que fala a lei, não abrangem a prova documental.
Em conclusão, operada a transição do processo inspectivo para o processo penal podemos assentar que no que espeita a “Declarações” do sujeito passivo, há que distinguir o que é declaração: enquanto depoimento nada vale; enquanto “documento” se aportado ao processo inspectivo de modo legal, vale como prova documental no processo penal, não se vislumbrando obstáculo à sua aquisição processual. O mesmo se passa quanto a documentos ou outra prova junta pela pela autoridade tributária: desde que não seja proibida é válida.

Há casos, no entanto, em que é legítima a falta de cooperação ou mesmo “oposição” por parte do sujeito passivo aos actos de inspecção para apuramento da situação tributária, cfr. artigo 89º do Código de Processo Administrativo, “solicitação de provas aos interessados”, que dispõe que:
1 - O órgão que dirigir a instrução pode determinar aos interessados a prestação de informações, a apresentação de documentos ou coisas, a sujeição a inspecções e a colaboração noutros meios de prova.
2 - É legítima a recusa às determinações previstas no número anterior, quando a obediência às mesmas:
a) Envolver a violação de segredo profissional;
b) Implicar o esclarecimento de factos cuja revelação esteja proibida ou dispensada por lei;
c) Importar a revelação de factos puníveis, praticados pelo próprio interessado, pelo seu cônjuge ou por seu ascendente ou descendente, irmão ou afim nos mesmos graus;
d) For susceptível de causar dano moral ou material ao próprio interessado ou a alguma das pessoas referidas na alínea anterior.
Nos casos em que a actividade é desenvolvida na habitação.
a) Falta de credenciação dos funcionários incumbidos da execução dos actos de inspecção, artigo 47º do RCPIT;
b) Acesso sem mandado à “habitação” do contribuinte, artigo 63º/5 alínea a) da Lei Geral Tributária, ou do TOC;
c) A consulta de elementos abrangidos pelo segredo profissional ou outro dever de sigilo legalmente regulado, à excepção do segredo bancário, realizada nos termos dos artigos 63º-A, B e C da LGT;
d) Acesso a factos da vida íntima dos cidadãos, artigo 63º/5 alínea c) da Lei Geral Tributária;
e) Violação dos direitos de personalidade e outros, liberdades e garantias dos cidadãos, previstos da Constituição e na lei, artigo 126º C P Penal;
f) Verificação dos pressupostos da constituição de arguido, artigos 58º e 59º C P Penal, sem que o arguido seja constituído como tal e continue a autoridade tributária a exigir a sua colaboração - neste caso a proibição apenas abrange as declarações do arguido; quanto a documentos aplica-se o artigo 126º C P Penal.

Sobre esta temática foi chamado a pronunciar-se, já o TRG, que por 2 ocasiões, Acórdãos de 29.1.2007 e de 12.3.2012, decidiu que,
podem ser usados em processo penal os documentos validamente obtidos pela autoridade tributária na fase administrativa inspectiva ao abrigo do dever de cooperação;
tal utilização não viola os direitos consagrados do arguido, ao silêncio e à não “auto-inculpação”;
podem ser usados em processo penal documentos obtidos em inspecção tributária ao abrigo do dever de cooperação, pois que não foram conseguidos com “ameaça com medida legalmente inadmissível”, “com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto” ou “promessa de vantagem legalmente inadmissível”; ou ainda, mediante “intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular”, concluindo-se que no caso não ocorria qualquer incompatibilidade entre o dever de colaboração por um lado e o direito ao silêncio e presunção de inocência por outro.
Mais decidiu que são válidos os depoimentos dos agentes que procederam a essa inspecção.
Mais disse o TRG: os documentos e elementos recolhidos pela Administração Fiscal junto dos contribuintes, ao abrigo de um dever geral de colaboração ou na sequência de deveres de informação que a estes são impostos, não constituem prova proibida. E sendo validamente recolhidas no âmbito da fase administrativa, tais provas deverão ser tomadas em consideração no processo criminal em que sejam arguidas as pessoas que entregaram esses elementos.

Assim, há que concluir que, nada impede que possam ser utilizados em processo penal, os documentos validamente obtidos na fase administrativa inspectiva ao abrigo do dever de cooperação – pois que não viola os direitos consagrados do arguido, ao silêncio e à não “auto-inculpação.

III. 3. 2. Erros de julgamento versus vício do erro na sua fixação.

III. 3. 2. 1. As razões do arguido.

O recorrente considera que foram incorrectamente julgados os factos, tidos como provados,
1. “no exercício da referida actividade a sociedade arguida facturou e liquidou IVA e procedeu ao envio das declarações periódicas de IVA, quantias, porem, que não entregou nos serviços de Administração do IVA nos seguintes períodos, sem que tenha procedido a regularização dos mesmos após a notificação a que alude o artigo 105º/4 alínea a) do RGIT, nos termos e montantes discriminados:
Os arguidos não entregaram as quantias referidas supra dentro dos devidos prazos nos Cofres da Fazenda Nacional, nem nos 90 dias subsequentes aos aludidos prazos, integrando-as no património da sociedade arguida, não obstante saberem que aquelas não lhs pertenciam e que as não podiam utilizar em proveito da sociedade, senão para as entregar aos competentes serviços do Estado”;
que ao invés deveriam ter sido declarados como não provados.

A favor da sua tese, invoca o arguido, entre outras, como concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, as seguintes:

- declarações das testemunhas E…, F…, G… e documentos juntos a fls. 76 a 96 dos autos.

III. 3. 2. 2. Estamos perante matéria reportada à questão do recebimento do IVA, constante do ponto 5. do elenco dos factos provados, bem como quanto à sua não entrega, constante do ponto 7, do mesmo elenco dos factos provados, cumpre dizer - questão relacionada com a abordada anteriormente, de resto – que,
conforme resulta da motivação da sentença, o tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção sobre esta matéria nos depoimentos da testemunhas, Inspectores Tributários, F… e G…, aquele que esteve nas instalações da sociedade arguida, para solicitar a entrega de elementos contabilísticos, que veio a receber, depois de ter contactado com o TOC, tendo, procedido, então, à análise dos extractos da conta-corrente dos cliente, onde constam as datas de pagamento das facturas, tendo verificado que os montantes tinham sido efectivamente recebidos e, não entregues – “só tendo considerado esses valores, de resto” - e esta que efectuou a inspecção à sociedade arguida relativamente ao ano de 2009, tendo da mesma forma pedido o envio dos elementos contabilísticos que recebeu, incluindo os conta-correntes e os recibos.
Ora foi com base nos elementos que a arguida fez chegar – ao abrigo do apontado dever de colaboração ou cooperação fiscais - aos serviços da inspecção tributária, que foi possível determinar os valores do IVA em causa e que foram tomados como bons pelo Fisco, não podendo, aqui e agora, o arguido, gerente daquela - apesar de não ter prestado declarações, em audiência - vir colocá-los em causa.
Com efeito, as verbas ali mencionadas foram inscritas pela sociedade arguida, de acordo com as regras da contabilidade pública, sendo certo que nos termos do artigo 75° da Lei Geral Tributária, aprovada pelo Decreto Lei 398/98, de 17DEZ “presumem-se verdadeiras e de boa fé as declarações dos contribuintes apresentadas nos termos previstos na presente lei, bem como os dados e apuramentos inscritos na sua contabilidade ou escrita, quando estas estiverem organizadas de acordo com a legislação comercial e fiscal”.

Donde não existe nem erro na fixação da matéria de facto – muito menos notório. Vício este, que de resto, apenas pode resultar do texto da decisão, ainda que conjugado com as regras da experiência comum, não podendo recorrer-se para o afirmar - como faz o arguido - a elementos a ela estranhos, como são os depoimentos de testemunhas.

III. 3. 2. 3. O recorrente estrutura a sua pretensão – de revogação da decisão recorrida e da sua consequente absolvição - no facto de, na sua óptica, não ter sido produzida prova válida - passando, depois a invocar excertos da pessoal, acabando, no entanto, por concluir que fundamenta a procedência do recurso, na verificação dos vícios da decisão.
Grande e, já agora, indesculpável, confusão, se evidencia nos termos e fundamentos do recurso.
Assim, se na cogitação do recorrente, está - seguramente pelos termos e forma como, em substância, se exprimiu – a pretensão de impugnar a matéria de facto, isto porque no corpo da motivação, dá integral cumprimento aos requisitos do artigo 412º/3 e 4 C P Penal, especificando os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, bem como as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e analisando, desde logo, excertos de vários depoimentos das testemunhas (o que está vedado para a apreciação dos vícios do artigo 410º/2 C P Penal, como é sabido), que transcreve, na parte que lhe interessará – o certo é que nas conclusões vem a enquadrar o fundamento do recurso no apontado vício da sentença.

Como é sabido, sem prejuízo do disposto no artigo 410º, a decisão, da 1ª instância, relativa à matéria de facto pode ser modificada - artigo 431º alínea b) C P Penal - quando a prova tiver sido impugnada de acordo com o disposto no artigo 412º/3 do mesmo diploma.
Estamos, então, perante 2 vias que podem conduzir à modificação/alteração do julgamento da matéria de facto.
O erro de julgamento não se confunde com o vício da decisão. O erro de julgamento da matéria de facto tem a ver com a apreciação da prova produzida em audiência em conexão com o princípio da livre apreciação da prova constante do artigo 127º C P Penal, e existe quando o tribunal dá como provado certo facto relativamente ao qual não foi feita prova bastante e que, por isso, deveria ser considerado não provado, ou então o inverso.
Já os vícios do n.º 2 do artigo 410º C P Penal são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento.
O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas. Embora em ambos se esteja no domínio da sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, verifica-se em momento anterior à elaboração do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto.

Labora, então, o recorrente em manifesto e incompreensível equívoco – enquadrando em termos processuais na existência de um vício da decisão, aquilo que em substância trata como erros de julgamento.

Se no caso do artigo 412º C P Penal - impugnação da matéria de facto – estamos perante erros de julgamento, no caso dos vícios do artigo 410º/2 C P Penal estamos perante vícios da decisão.
Qualquer das situações referidas no artigo 410º/2 C P Penal, traduzem-se, sobretudo em deficiências na construção e estruturação da decisão e ou dos seus fundamentos, maxime na sua perspectiva interna, não sendo por isso o domínio adequado para discutir os diversos sentidos a conferir à prova.
Qualquer um dos vícios previstos no n.º 2 do referido artigo 410º C P Penal, é inerente ao silogismo da decisão e apenas dela pode ser apurado, nos termos do artigo 410º/2 C P Penal - não sendo possível o recurso a outros elementos que não o texto da decisão, para sua afirmação - ainda que conjugado com as regras da experiência, sendo a consequência lógica e imediata, da sua existência, salvo o caso de ser possível conhecer da causa, o reenvio do processo, artigo 426º C P Penal.
Na sequência lógica destes pressupostos, a sua emergência, como resulta expressamente referido no artigo 410º/2 C P Penal terá que ser detectada do texto da decisão recorrida, por si ou conjugada com as regras da experiência comum.
Em sede de apreciação dos vícios do artigo 410º C P Penal, não está em causa a possibilidade de se discutir a bondade do que se considerou provado ou não provado, a maior ou menor abundância de prova para sustentar um facto.
Qualquer dos vícios do artigo 410º/2 C P Penal, pressupõe uma outra evidência e a argumentação do recorrente gira, então, em volta de uma melhor avaliação, ponderação e, quiçá, interpretação dos depoimentos das apontadas testemunhas, donde o recorrente estrutura a existência daquele apontado vício, não numa análise da decisão na sua componente interna, de racionalidade, de lógica e de coerência das diversas asserções dadas como provadas, mas antes, numa perspectiva de expressar o seu inconformismo com o resultado do julgamento da matéria de facto, que lhe foi desfavorável - ainda por cima, baseado na argumentação, que carece de fundamento de prova ilegal.
Os vícios do artigo 410º/2 C P Penal não podem ser confundidos com uma suposta insuficiência dos meios de prova para a decisão tomada em sede de matéria de facto, nem pode emergir da mera divergência entre a convicção pessoal da recorrente sobre a prova produzida em julgamento e a convicção que o tribunal firmou sobre os factos, no respeito pelo princípio da livre apreciação da prova inserto no artigo 127º C P Penal - aqui poderá haver erro de julgamento, sindicável, nos termos definidos no artigo 412º C P Penal.

A valoração da prova em sentido diverso - fora o caso de erro notório - ao pugnado pelo recorrente, merece tratamento em sede erro de julgamento, nos termos do artigo 412º C P Penal, através do controlo do erro na apreciação das provas (sobre a sua admissibilidade e valoração dos meios de prova) e a consequência imediata da sua procedência, é a modificação da matéria de facto, artigo 431º C P Penal.
Cremos ser evidente que a forma como o recorrente pretende obter a modificação do julgado, está longe de ser modelar, pois que trata questões atinentes à impugnação da matéria de facto, não em sede de erro de julgamento, seja no âmbito do artigo 412º C P Penal, mas antes, no âmbito do artigo 410º C P Penal, que se reporta, de resto, a vícios da decisão, do conhecimento oficioso.
Cremos que erradamente.
Andou, por isso mal, ao dar a veste processual que deu, a esta sua, pretensão, desde logo, com base na própria, valoração e apreciação sobre a prova produzida, de forma diversa, oposta, daquela que foi feita pela entidade competente, o tribunal.
Todas as invocações feitas no sentido da existência do vício do erro na fixação dos factos – que só pode ser entendido como alusão ao vício do erro notório, do artigo 410º/2 C P Penal - feitas pelo recorrente laboram em manifesto erro e confusão de conceitos, dado que a sua existência vem estruturada tão só, como corolário da discordância que patenteia com a forma como foi feita a valoração da prova na decisão recorrida – que tem por proibida, em grande parte.
Assim, perante este manifesto erro de enfoque feito pela recorrente, ao qualificar como vícios do artigo 410º/2 C P Penal, que a existirem constituiriam vícios da decisão, pretensão esta, estruturada no facto de o tribunal a quo não ter valorado, na sua perspectiva, correctamente a prova produzida, de natureza pessoal, o que, a ocorrer, constituiria erro de julgamento, temos que concluir, então, que perante os termos do recurso, está este Tribunal obrigado, a conhecer, quer, da existência do apontado vício da decisão – sendo que de resto, como é sabido, o conhecimento dos vícios do n.º 2 do artigo 410º C P Penal, são do conhecimento oficioso – quer da impugnação da matéria de facto, por alegados erros de julgamento.

Começando por ali, devemos desde já referir que, da leitura da decisão e, designadamente dos segmentos dos factos provados e da motivação, caldeada com as regras da experiência comum, pois que a outros elementos não pode o Tribunal socorrer-se, não se vislumbra que se patenteie, qualquer um dos vícios previstos no n.º 2 do artigo 410º C P Penal.
Não existem, dede logo, pontos de facto fixados na decisão recorrida, tão manifestamente arbitrários, contraditórios ou violadores das regras da experiência comum.

III. 3. 2. 4. Nem existe erro de julgamento, na fixação de tais factos.
Antes de avançarmos na consideração mais aprofundada desta temática, justifica-se fazer um breve parêntesis aos poderes conferidos às Relações em termos de modificação da matéria de facto apurada em 1.ª instância.
É que não se trata, como à primeira vista poderia resultar de uma leitura mais imediata dos correspondentes preceitos processuais, de poderes que traduzam um conhecimento ilimitado dessa mesma factualidade.
Para isso concorre, essencialmente, a concepção adoptada no nosso ordenamento adjectivo que concebe os recursos como “remédio jurídico” para os vícios de julgamento, ou se se quiser, o seu entendimento como juízos de censura crítica e não como “novos julgamentos”, bem como ainda, as decorrências do princípio da livre apreciação da prova, artigo 127º C. P Penal e bem assim o natural privilegiamento que compreensivelmente se há-de conferir à decisão que foi proferida numa relação de maior imediação e proximidade com a sua própria produção.
Por via de regra, o tribunal de recurso não vai à procura de uma convicção autónoma fundada na sua própria interpretação da prova, mas antes verificar se a factualidade definida na decisão em apreciação se mostra adequadamente ancorada na análise crítica efectuada das provas.
Da mesma maneira, a alteração solicitada em recurso de um qualquer facto só é de proceder, quando de forma clara e convincente o juízo alternativo apresentado sobre a sua definição como provado ou não provado, evidencie o seu melhor fundamento em relação ao apresentado pela instância.
A questão, suscitada pelo recorrente, nesta sede, tem, desde logo, subjacente o controlo sobre a admissibilidade e valoração dos meios de prova de que depende em última análise, a fixação dos factos materiais da causa.

A circunstância de o tribunal, perante duas versões distintas – o que no caso, nem sequer acontece, pois que o arguido não prestou declarações - dar crédito a uma em detrimento da outra, tem a ver com o exercício do princípio da livre apreciação da prova, artigo 127º C P Penal, segundo o qual o julgador deve proceder à avaliação e ponderação dos meios de prova sem vinculação a um quadro pré-definido de valoração das provas, sujeito apenas às regras da experiência comum e ao dever de dar explicação concisa das razões da relevância atribuída à cada prova e do percurso racional que levou à decisão tomada.

Se assim é, se o Tribunal da Relação não procede a um segundo julgamento de facto, pois que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância, não pressupõe a reanálise pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzida, mas tão-só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido mencionados no recurso e das provas, indicadas pelo recorrente, que imponham (e não apenas, sugiram ou permitam) decisão diversa, estamos perante uma reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o mesmo entende incorrectamente julgados e às razões dessa discordância.
Os poderes para alteração da matéria de facto conferidos ao tribunal de recurso constituem apenas um remédio a utilizar nos casos em que os elementos constantes dos autos apontam inequivocamente para uma resposta diferente da que foi dada pela 1ª instância. E já não naqueles em que, existindo versões contraditórias, o tribunal recorrido, beneficiando da oralidade e da imediação, firmou a sua convicção numa delas (ou na parte de cada uma delas que se apresentou como coerente e plausível).

De resto, a consagração de um efectivo duplo grau de jurisdição em matéria de facto, pode vir a transformar o julgamento na 2ª instância, num jogo de palavras vazio do pulsar da vida, da percepção dos sentidos e sentimentos.
Na verdade, não podemos esquecer que, ao apreciar a matéria de facto, o Tribunal da 2ª instância está condicionado pelo facto de não ter com os participantes do processo, aquela relação de proximidade comunicante que lhe permite obter uma percepção própria do material que há-de ter como base da sua decisão. Só os princípios da oralidade e da imediação permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido, a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem, por outro lado, avaliar o mais contritamente possível da credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais. Tal relação estabeleceu-se com o Tribunal de 1ª instância e daí que a alteração da matéria de facto fixada, deverá ter como pressuposto a existência de elemento que, pela sua irrefutabilidade, não possa ser afectado pelo funcionamento do princípio da imediação. [2]

A este propósito convém, então, referir que, nos termos do artigo 127º C P Penal, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
A maior parte das vezes, os recursos, quanto a esta concreta questão, de impugnação da credibilidade dos elementos de prova, demonstram um evidente equívoco - o da pretensão de equivalência entre a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto e o exercício, juridicamente ilegítimo, por irrelevante, do que corresponde ao princípio da livre apreciação da prova, exercício este que, para ser legítimo, logo juridicamente relevante, por imposição do artigo 127º C P Penal, somente ao tribunal, entidade competente, notoriamente, incumbe.
Não pode é, a convicção da recorrente sobrepor-se à do julgador.
Se, como é certo,
a convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando seja obtida através de provas ilegais ou proibidas, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou, então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum;
desde que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum, se deve acolher a opção do julgador da 1ª instância,
então, não merece acolhimento, na generalidade, a crítica que é dirigida ao decidido.
A apontada prova documental e o que sobre ela disseram as testemunhas inspectores tributários – mesmo perante o silêncio dos arguidos gerentes da sociedade – exigiam que se tivesse afirmado esta factualidade – aqui sim, sob pena de erro manifesto na sua apreciação.

III. 3. 3. Erros na aplicação do Direito.

Nem erro na aplicação do Direito, existe, já agora.
Neste segmento, considera o recorrente que existe erro na aplicação do direito pois que, erradamente,
foi aplicado o n.º 1 do artigo 105º do RGIT a situações de não entrega do IVA quando o elemento objectivo do tipo de crime ali previsto, somente abange as situações de retenção de imposto e o IVA não é um imposto que funcione por dedução/retenção;
se interpretou o disposto no n.º 2 do artigo 105º do RGIT, no sentido que o recebimento a data do termo do prazo legal de entrega da declaração periódica de IVA não era relevante para efeitos de preenchimento do tipo legal de crime, quando o seu recebimento da data do termo de prazo legal de entrega da declaração periódica de IVA é elemento objectivo do tipo legal de crime previsto no n.º 2 do artigo 105º do RGIT;
ainda que a matéria de facto impugnada se mantenha inalterada, tem de ser alterada a decisão em sede de subsunção jurídica por não se verificar o preenchimento dos elementos objectivos do tipo legal do crime, p. e p. pelo artigo 105º/1 ou 2 do RGIT, que lhe foi imputado e pelo qual foi condenado, nem de qualquer outro crime, resultando que o recorrente tem de ser absolvido.

Com efeito, os valores reportados ao IVA foram efectivamente, deduzidos, recebidos e não entregues, total ou parcialmente, nos prazos legais.
Questão que de resto vem sendo debatido, anualmente, aquando da preparação do OGE e que se relaciona com o “IVA de caixa”, mas que não mereceu ainda consagração legal, no que à situação dos autos se refere.
Donde mesmo que não tivessem sido recebidos os valores insertos nas facturas, o certo é que a arguida sempre estaria obrigada a entregar o valor do IVA deduzido, à administração fiscal, aquando da entrega da declaração periódica.
Assim nenhum relevo assume a data de pagamento das facturas, reportadas, quer às datas de entrega das declarações periódicas do IVA, para o cumprimento voluntário da obrigação tributária, quer às datas das condições objectivas de punibilidade insertas no n.º 4 do artigo 105º do RGIT.
Da mesma forma e por esta ordem de razões não se verifica, o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – que o arguido invoca em simultâneo.
Dos factos provados resulta de forma inequívoca e ostensiva, mesmo, que o circunstancialismo apurado é susceptível de integrar o tipo legal de abuso de confiança fiscal, p. e p. pelo artigo 105º/1 do RGIT, que tem como factualidade típica, o facto de não entrega de prestação tributária deduzida e que o agente estava obrigado a entregar, em determinados prazos.
Existem no caso, quer a dedução, quer a não entrega total, nuns casos e parcial em outros.
Não só o Direito foi correctamente aplicado, como, da mesma forma se não verifica o invocado vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – que o arguido volta a invocar, a par do erro de Direito.

Donde, está o recurso, em todos os seus segmentos, votado ao insucesso.

IV. Dispositivo

Nestes termos e com os fundamentos mencionados, acordam os juízes que compõem este Tribunal, em negar provimento ao recurso apresentado pelo arguido B….

Taxa de justiça pelo arguido recorrente que se fixa no equivalente a 6 Uc,s.

Elaborado em computador. Revisto pelo Relator, o 1º signatário.

Porto, 2013.fevereiro.27
Ernesto de Jesus de Deus Nascimento
Artur Manuel da Silva Oliveira
______________
[1] Sob o título de “Investigação na criminalidade tributária e a prova. Especificidades na recolha da prova e a sua valoração em julgamento. Dever de colaboração do obrigado tributário versus direito ao silêncio do arguido”.
[2] Cfr. Figueiredo Dias, in Princípios Gerais do Processo Penal, 160.

http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/45212f1350ffb94f80257b33003a42c2?OpenDocument

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