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domingo, 29 de maio de 2011

DIFAMAÇÃO E CRÍTICA OBJECTIVA - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - 23/06/2010

Acórdãos TRC
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
834/08. 8TAGRD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ELISA SALES
Descritores: DIFAMAÇÃO
CRÍTICA OBJECTIVA

Data do Acordão: 23-06-2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA – 2º J
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS180º, 184º E 132º, N.º 2, AL. J) DO CÓDIGO PENAL

Sumário: Uma exposição/reclamação enviada, através de correio electrónico, ao director de um estabelecimento de saúde na qual uma utente, desagradada com a demora na marcação da consulta, afirma “sou obrigada a ir a uma consulta no privado, que como é efectuada pelos mesmos médicos que exercem funções no hospital público, não têm qualquer interesse em atender com eficiência e a celeridade, a que estão obrigados, os utentes do hospital" , constitui uma crítica ao desempenho objectivo, concretamente à forma como eram feitas as marcações naquele serviço, e não a prática de um crime de difamação.

Decisão Texto Integral: I - RELATÓRIO

M..., J..., H... e F…, assistentes nos autos, vieram interpor recurso da decisão proferida pelo Mmº Juiz de Instrução de não pronúncia da arguida I... pela prática de um crime de difamação p. e p. pelos artigos 180º, 184º e 132º, n.º 2, al. j) do Código Penal por que se encontrava acusada.


E, da respectiva motivação extraíram as seguintes as conclusões:

1. A decisão de não pronúncia funda-se na avaliação incorrecta dos factos constantes dos autos, quando considera que as expressões contidas no email enviado pela Arguida ao Director do HSM da X... integram "aquilo que se pode compreender como "critica objectiva … ".

2. Ao contrário do sustentado na douta decisão instrutória resultam dos autos indícios suficientes para ser imputado à Arguida o crime de difamação agravado de que vinha acusada.

3. Quanto à autoria do email em referência nos presentes autos e sua imputação à ora Arguida, a douta decisão recorrida não merece qualquer reparo ou censura.

4. Resulta dos autos que, no dia 13 de Fevereiro de 2008, a Arguida enviou ao Director do Hospital SM... da cidade da X..., através de correio electrónico, uma "Reclamação" que continha, entre outras afirmações, as seguintes:

"Até à presente data e após me ter deslocado à consulta de oftalmologia, fui informado que o médico especialista (oftalmologista), ainda, não se tinha dignado a fazer as marcações das consultas pendentes no sistema informático, por isso não tinha qualquer previsão da data da consulta";

"Posto isto, como é óbvio sou obrigada a ir a uma consulta no privado, que como é efectuada pelos mesmos médicos que exercem funções no hospital público, não têm qualquer interesse em atender com eficiência e a celeridade, a que estão obrigados, os utentes do hospital."

5. Os Recorrentes não pretendem questionar a matéria de facto apurada que fundamenta a decisão recorrida, mas apenas a valoração, para efeitos Jurídico-penais, do conteúdo do email, ou seja dos factos aí vertidos.

6. Com o referido email a Arguida afirmou que os Recorrentes descuravam as suas obrigações profissionais no exercício da função pública, atrasando deliberadamente a marcação das consultas, com o propósito de forçar os utentes a recorrerem aos seus consultórios privados porque aí tinham que lhes pagar as consultas.

7. Dizer-se que um médico deliberadamente impõe aos utentes do hospital, que se dirijam aos seus consultórios privados para aí receberem o dinheiro das consultas é imputar-lhe um facto, que é, por si só gravemente ofensivo da sua honra e consideração, porque representa um enorme desrespeito dos mais elementares deveres ético profissionais e até morais a que um médico deve obediência.

8. A douta decisão recorrida entende que as expressões contidas no email foram proferidas no âmbito duma "crítica objectiva", na medida em que, considera que com o referido email a Arguida se limitou "a ajuizar (ainda que não da forma correcta) quanto ao modo como o Hospital SM... acautelava os interesses dos utentes que se dirigissem ao departamento de oftalmologia",

9. Contudo, os Recorrentes não podem estar em maior desacordo com tal interpretação, pois da leitura do emeil, outra coisa não se pode concluir senão que a Arguida quis afirmar que os Recorrentes descuravam as suas obrigações profissionais, atrasando deliberadamente a marcação das consultas, com o propósito de forçar os utentes a recorrerem aos seus consultórios privados porque, aí tinham que lhes pagar as consultas.

10. A Arguida não emitiu um qualquer juízo relativo ao Serviço de Oftalmologia do Hospital SM... antes imputou aos médicos Oftalmologistas factos altamente caluniosos e difamatórios.

11. A crítica objectiva quando reportada a factos tem, por definição, que se reportar a factos verdadeiros, ou, no limite, a factos que a pessoa razoavelmente possa considerar verdadeiros.

12. No caso concreto, os factos são caluniosamente falsos, e a Arguida ao negar a sua autoria, nem sequer permite que se equacione a hipótese de ter sido induzida em erro desculpável.

13. Resulta dos documentos 2 a 5 juntos aos autos, as afirmações da Arguida desencadearam, como esta bem quis e previu que desencadeariam, um processo interno de averiguações, bastando atentar-se na expressão da Arguida quando diz no referido email "requeiro que sejam apuradas as devidas responsabilidades...".

14. A reclamação/mail da Arguida foi levada ao conhecimento de várias pessoas e entidades, como o Conselho de Administração do Hospital SM... da X... e a Inspecção Geral das Actividades da Saúde, pelo que, não se aceita que se possa afirmar, como afirma o douto despacho recorrido, que o Hospital não pode ser considerado como "terceiro" para efeitos do preenchimento do tipo de ilícito do crime de difamação

15. A honra está ligada à imagem que cada um forma de si próprio, construída interiormente mas também a partir de reflexos exteriores, repercutindo-se no apego a valores de probidade e de honestidade que não se deseja ver manchados. A reputação, por seu lado, representa a visão exterior sobre a dignidade de cada um, o apreço social, o bom nome de que cada um goza no círculo das suas relações ou, para figura públicas, no seio da comunidade local, regional ou mundial,

16. Os Recorrentes sentiram-se e sentem-se profundamente ofendidos e difamados pela Arguida, em especial no seio hospitalar, pois os factos foram amplamente discutidos e, por isso, chegaram ao conhecimento de várias pessoas.

17. Os factos imputados aos Recorrentes pela Arguida, são na sua estrita objectividade ofensivos e susceptíveis de diminuir a reputação dos visados por permitirem a terceiros questionar o comportamento ético e profissional dos Recorrentes, enquanto cidadãos e médicos.

18. Pelo que, a Arguida I... deveria ter sido pronunciada pela prática de um crime de difamação agravado p. e p pelos art°s 180º, 184° e 132°, n.º 2 al. l) do Código Penal, de que vinha acusada.

19. Ao decidir em sentido contrário, o tribunal a quo violou o disposto, entre outros nos art°s 180°, 184°, e 132° n.º 2, al. l) do CPP

TERMOS EM QUE,

revogando o douto despacho impugnado e decidindo que a Arguida deve ser pronunciada pelo crime de que vinha acusada, farão Vossas Excelências JUSTIÇA.


*


Respondeu a Magistrada do Ministério Público junto do tribunal recorrido, concluindo pela manutenção da decisão recorrida, por considerar que a mesma não merece qualquer censura.
Nesta instância a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no mesmo sentido.

Os autos tiveram os vistos legais.



***

II – FUNDAMENTAÇÃO


Vejamos como o Mmº Juiz a quo fundamentou a sua decisão de não pronúncia:

“ O MINISTÉRIO PÚBLICO deduziu acusação pública contra a arguida I..., imputando-lhe, pelos factos descritos a fls. 146 a 149 e que aqui se dão por reproduzidos, a prática de um crime de difamação, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 180.°, 184.° e 132.°/2, j), todos do Código Penal, à qual os assistentes aderiram - cfr. fls. 168/169.


*

Inconformada, a arguida requereu a abertura da instrução onde pugna pela sua não pronúncia, com base nos argumentos vertidos de fls. 172 a 176, nos quais sustenta, em síntese, que não cometeu o crime que lhe vem imputado, uma vez que não só não escreveu o email cuja autoria lhe é imputada, como nunca enviou qualquer email ao Conselho de Administração do Hospital SM... na X....

*

Como actos instrutórios, requereu a inquirição da testemunha A…, a cuja inquirição se procedeu - cfr. decorre da acta de fls. 201 a 204.

*

(…)
Pelo que, se impõe assim apurar se os indícios (enquanto verdade histórica) realmente se verificaram ou não, apreciando criticamente a prova recolhida.

Ora,

Como se viu, os presentes autos iniciaram-se com a queixa apresentada pelos assistentes que imputam à arguida o envio de um e-mail dirigido ao director do Hospital SM... onde, além do mais, consta o seguinte: "até à presente data e após me ter deslocado a consulta de oftalmologia, fui informado que o médico especialista (oftalmologista), ainda, não se tinha dignado a fazer as marcações das consultas pendentes no sistema informático, por isso não tinha qualquer previsão da data de consulta; Posto isto, como é obvio sou obrigada a ir a uma consulta no privado, que como é efectuada pelos mesmos médicos que exercem funções no hospital público, não têm qualquer interesse em atender com eficiência e a celeridade, a que estão obrigados, os utentes do hospital. "

Sustentam os assistentes que através do referido email a arguida lhes imputou, enquanto médicos especialistas do serviço de oftalmologia dessa unidade hospitalar, a prática de actos e omissões violadores das suas obrigações profissionais, referindo que a mesma quis afirmar que os mesmos descuravam as suas obrigações profissionais, atrasando deliberadamente a marcação de consultas com o propósito de encaminhar os utentes para os seus consultórios privados.

Por seu turno, a arguida muito embora confirme que se deslocou àquele Hospital a fim de marcar uma consulta para a sua filha (cfr. declarações a fls. 82), nega determinantemente que alguma vez tenha enviado qualquer email para o director daquele mesmo hospital, reportando fosse o que fosse relativamente aos assistentes.

Ora, perscrutadas as posições e argumentos esgrimidos pelos assistentes e pela arguida, importa então averiguar se tais factos se mostram indiciariamente verificados e, em caso afirmativo, se os mesmos consubstanciam ou não a prática do crime imputado.

Daí que, a questão passe inicialmente por saber se é credível a versão da arguida de que não foi ela a autora do email remetido aos assistentes.

Pois bem.

Como é sabido, vigora entre nós o princípio da livre apreciação da prova (cfr. artigo 127º do Código de Processo Penal).

Este princípio não significa que o julgador possa proceder, arbitrariamente, à avaliação da prova, ou que a lei lhe ofereça a faculdade de julgar como lhe aprouver, sem provas ou mesmo contra as provas produzidas.

Bem pelo contrário, este princípio significa, ao invés, que o tribunal deve julgar segundo a consciência que formou, sendo que, essa convicção é formada, não em obediência a regras pré-determinadas, mas através da influência que as provas produzidas exerceram no espírito do julgador, após as ter apreciado segundo critérios de valoração racional e lógica segundo a sua experiência.

Na realidade, o juízo acerca da verificação de um determinado facto não assenta, como é evidente, num puro acto de crença, mas antes num procedimento estribado em juízos racionais em que se procura reconstruir a realidade histórica, usando a razão como instrumento.

Ora, é precisamente tendo em conta tais pressupostos, que a versão que nos foi apresentada pela arguida se nos assemelha pouco provável e inverosímil.

Na verdade, diga-se desde já que, compulsados todos os elementos colhidos ao longo do inquérito, não se nos suscita qualquer dúvida em reconhecer a arguida como a autora do referido email, sobretudo articulando as declarações da arguida a fls. 81 a 83 com o teor do email remetido para o Hospital.

Senão veja-se.

Refere a arguida nas declarações prestadas em inquérito (fls. 82 e 83) que "em data que não se recorda acompanhou a sua filha D… a uma consulta no Centro de Saúde na X.... Nessa consulta foi diagnosticado à sua filha um défice na sua visão, pelo que o médico de família informou-a de que iria proceder ao pedido de marcação de consulta, via informática, ao serviço de oftalmologia do Hospital SM..., X... e que, no espaço temporal de uma semana seria informada da data da consulta ".

Além disso, acrescentou que "como neste lapso de tempo não recebera qualquer informação deslocou-se pessoalmente ao serviço de oftalmologia do Hospital SM... X..., onde questionou uma senhora - não sabendo se funcionária ou enfermeira - sobre a situação que lhe dizia respeito, sendo que esta informou-a de que ainda não havia nada marcado, referindo que perante esta resposta perguntou àquela se não a podia informar de uma data em concreta, ao que aquela lhe terá retorquido dizendo "senhora, sei lá agora quando é que o senhor doutor passa cá para marcar as consultas ", acrescentando que se tinha muita urgência tem que ir (lá fora ou ao privado) ".

Perante tal atitude, disse a arguida que se sentiu indignada e que perguntou à referida senhora se os médicos não eram os mesmos, respondendo-lhe aquela que "como é evidente os médicos não trabalham só no Hospital ".

Depois deste acontecimento, nega ter efectuado qualquer reclamação junto do Hospital SM... quanto a este caso, designadamente ter enviado o email junto aos presentes autos.

Porém, atentemos no teor do referido email.

Neste consta, além do mais já transcrito, o seguinte: "Em 2 de Janeiro de 2008, numa consulta de rotina efectuada no Centro de Saúde, à minha filha D…, foi-lhe diagnosticada um défice visual; Nessa mesma consulta, foi marcada uma consulta de oftalmologia através do sistema informático e tomei conhecimento, pelo médico de família que no prazo máximo de 8 dias seria informada da data da consulta. Com base nessa data eu decidiria qual a melhor opção, se optar pela consulta a realizar no hospital ou optar pelo privado. Até à presente data e após me ter deslocado à consulta de oftalmologia, fui informado que o médico especialista (oftalmologista), ainda, não se tinha dignado a fazer as marcações das consultas pendentes no sistema informático, por isso não tinha qualquer previsão da data da consulta. Posto isto, como é óbvio sou obrigada a ir a uma consulta no privado (...)".

Ora, conjugando todos estes factos, não se consegue vislumbrar, de forma lógica e racional, quem mais, senão a própria arguida, teria acesso a tal informação e, sobretudo, quem teria interesse em remeter um email com tal teor para o Hospital SM....

De modo que, em jeito de síntese e por tudo quanto se referiu, considera-se que os autos indiciam suficientemente que foi a arguida a autora da referida mensagem.

Porém, resolvida esta questão, permanece ainda um nódulo problemático que cumpre aprofundar e solver, e que é, justamente, a questão da qualificação jurídica, sendo que, em bom rigor, é esta que vai em último caso determinar se a arguida deve ou não ser sujeita a julgamento.

Com efeito, neste caso, mais que apurar se a arguida enviou ou não o email (pois este facto, pelo que se referiu, não se afigura controverso) importa apreciar se o teor do e-mail remetido pela arguida é ou não objectivamente difamatório, isto é, se é ou não apto a ofender a honra e consideração dos assistentes.

Sendo certo que, para alcançar tal desiderato, impõe-se, ainda que sumariamente, analisar o crime de difamação.

Ora, como prescreve o artigo 180.º, n.º 1, do Código Penal, "quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de muita até 240 dias.".

Tal norma, como se sabe, inscreve-se no capítulo dos crimes contra a honra.

No código penal, a tutela desse direito é assegurada, em primeiro plano, pelos artigos 180.° e 181.° do Código Penal que, na descrição típica, utilizam a expressão "ofensivos da honra e consideração ".

Como bem refere Beleza dos Santos, "a honra e consideração demoram anos a construir e a estabilizar, enriquecem-nos como pessoas, e quando são destruídas, demoram, por vezes, outros tantos anos a recuperar" ([1]).

Porém para se apreender o verdadeiro bem jurídico tutelado, torna-se premente definir o conceito de "honra".

A doutrina dominante adopta uma concepção dual da honra, pois, por um lado, vê-a como o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, e, por outro, perspectiva-a como a própria reputação ou consideração exterior.

No fundo, o que se protege é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, além disso, a valência deles decorrente, a sua reputação no seio da comunidade ([2]).

De forma que, neste domínio, não se poderá perder de vista o circunstancialismo envolvente, a classe social do ofendido e do ofensor, o grau de educação e instrução dos intervenientes, os hábitos de linguagem, etc.

Com efeito, uma das particularidades deste crime é precisamente a sua relatividade, ou seja, o carácter difamatório das palavras ou actos depende, em larga medida, do lugar ou ambiente em que surge, das pessoas entre quem ocorre e do modo como se processa.

Pois não se pode de forma alguma confundir a difamação com simples indelicadeza ou mesmo falta de educação, pois a difamação é bem mais do que isso.

De facto, como bem salienta o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 15/02/2006, "quando se pune um acto injurioso não se visa a protecção da susceptibilidade pessoal deste ou daquele, mas tão só da sua dignidade, da sua honra e consideração. "

Tanto mais que, como refere o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03/06/2009 ([3]), "na medida em que não seja ultrapassado o âmbito da crítica objectiva, caem fora da tipicidade de incriminações como a difamação, os juízos de apreciação e valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, e bem assim sobre os actos da administração pública; sendo que por crítica objectiva deve entender-se a valoração e censura crítica, enquanto se atêm exclusivamente às obras ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, que não serão atingidos na sua honra pessoal ou cuja honra e consideração não é atingida com a dignidade penal e a carência de tutela penal (...) sendo certo que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da verdade das apreciações subscritas, e o direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao seu teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas."

Na verdade, como salienta aquele Acórdão, "são ainda de levar à conta da atipicidade, os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do autor da obra ou da prestação em exame" sendo que, nestes casos, só se considerarão como ofensivos da honra e consideração pessoal dos visados aqueles juízos que percam todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que legitimaria a crítica objectiva.

Ora, tendo presente tão doutas posições jurisprudenciais, afigura-se-nos que a conduta da arguida, analisada à luz do contexto em que surge, muito embora possa ser considerada como indelicada ou mesmo depreciativa para os médicos que integram o departamento de oftalmologia do Hospital, certo é que tais juízos foram formulados no âmbito de uma reclamação dirigida ao Director do Hospital, num manifesto e claro exercício ao direito de reclamação dos serviços prestados.

Pelo que, tendo presente todo o referido circunstancialismo (amplamente descrito no email), considera-se que tais expressões integram ainda aquilo que se pode compreender como "crítica objectiva" ou, na pior das hipóteses, como um juízo reflexo da crítica objectiva, o qual, como se viu, será sempre atípico, mesmo nas situações em que acabe por atingir a honra do autor da prestação.

Até porque, neste caso, não se pode obnubilar o facto da arguida não se ter dirigido directamente a nenhum dos assistentes, a arguida reportou-se, de uma forma genérica, aos médicos que exercem funções no Hospital, o que torna ainda mais evidente que a arguida não pretendeu atentar contra a honra e consideração de ninguém em particular, limitando-se apenas a ajuizar (ainda que não da forma mais correcta) quanto ao modo como o Hospital SM... acautelava os interesses dos utentes que se dirigissem ao departamento de oftalmologia.

Pelo que, face a estas considerações não pudemos subscrever a posição que propugna que o teor do email tem carácter difamatório para a honra e consideração dos assistentes.

Além de que, nesta análise, uma outra questão emerge, que é a de saber se, na sequência de um exercício do direito à reclamação materializada num email, um hospital pode ser considerado como "terceiro" para efeitos do preenchimento do tipo de ilícito do crime de difamação.

Pois, salvo melhor opinião, julgamos que a resposta não poderá deixar de ser negativa.

Desde logo, porque o significado de "difamar" é espalhar, divulgar, o que leva implícito a ideia de reproduzir, fazer circular ou propagar algo que possa contender com a reputação de outrem.

No fundo, difamação significa desacreditar, afirmar algo contra a honra e/ou reputação de alguém.

Sendo que, a própria razão para que a moldura penal do crime de difamação seja mais grave do que aquela que está prevista para o crime de injúria, reside precisamente no facto de após o cometimento do crime ficar precludida a possibilidade de imediata defesa ou retorsão, por um lado, e a impotência que o difamador tem de fazer cessar posteriormente as imputações que pôs a circular, por outro.

Ora, quem apresenta uma reclamação junto do director de um hospital, explicando detalhadamente porque o faz, não actua, na perspectiva deste tribunal, com o intuito de colocar a circular factos difamatórios seja de quem for, ou como forma de atentar contra a reputação de alguém.

De modo que a questão em causa é também a própria inaptidão do meio, pois, como se convirá, o teor de uma reclamação não se difunde ou divulga pelo simples facto de existir.

E é, precisamente neste particular, que reside a grande diferença entre reproduzir factos ou insinuações relativas a determinada pessoa perante terceiros ou, ao invés, fazê-lo de um modo formal, mediante reclamação, perante o Director de um hospital público, que tem a obrigação funcional de atender às necessidades e preocupações dos seus utentes, como as de apreciar, quando surjam, as respectivas reclamações.

Pois, se no primeiro caso, se reúnem todos os elementos para difamar, compreendido, como desacreditação pública, já na segunda hipótese, tal situação dificilmente sucederá, atenta a manifesta pessoalidade da reclamação.

Daí que também por este aspecto, se consideraria estar comprometido o cometimento do crime.

De modo que, considerando tudo quanto antecede, não se vislumbra outra alternativa a este Tribunal que não seja a de proferir despacho de não pronúncia relativamente à arguida I....


*
III

DISPOSITIVO


Nestes termos, tendo em atenção as considerações produzidas e as normas legais citadas, decide-se não pronunciar a arguida I… pelos factos constantes da acusação pública contra si deduzida e que lhe imputavam o cometimento de um crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180.°, 184.° e 132.°, n.º 2, j), todos do Código Penal.
Sem custas - cfr. artigo 513º, 1, a, ambos do Código de Processo Penal, a contrario ([4]).

Notifique. ”



***

APRECIANDO


Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso e que estas limitam o seu objecto, a questão suscitada e a decidir, consiste em saber se nos autos existem indícios suficientes que justifiquem a pronúncia da arguida I... pela prática de um crime de difamação p. e p. pelos artigos 180º, 184º e 132º, n.º 2, al. j) do Código Penal.


A arguida, discordando da acusação deduzida pelo MP, a que aderiram os assistentes, requereu a abertura de instrução.

A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento (art. 286º do CPP).

E, tal como resulta dos artigos 277º, n.º 2 e 308º, n.º 1, ambos do CPP, um dos fundamentos do arquivamento do inquérito pelo MP e do despacho de não pronúncia proferido pelo Juiz de Instrução é a insuficiência dos indícios da verificação do crime ou de quem foram os seus agentes.

Com efeito, estabelece este último preceito que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”


Contrariamente ao que acontecia na vigência do CPP de 1929, fornece-nos agora a lei o conceito de indícios suficientes.

Assim, preceitua o artigo 283º, n.º 2 do CPP ([5]) que “Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.

Aliás, este era também o sentido dado por Luís Osório ([6]) quando afirmava que “devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado”.

Por sua vez, refere o Prof. Figueiredo Dias ([7]) que “os indícios só serão suficientes, e a prova bastante, quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”. Mais acrescenta que “tem razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento e, portanto, de convicção, que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença, pode ser bastante ou suficiente para a acusação”.

Com este grau de exigência, ou seja, “ao exigir-se a possibilidade razoável de condenação e não uma possibilidade remota, visa-se, por um lado, não sujeitar o arguido a vexames e incómodos inúteis e, por outro lado, não sobrecarregar a máquina judiciária com tramitações inúteis, em obediência, aliás, ao traçado nas alíneas 1 e 2 da Lei n.º 43/86, de 30 de Setembro (a Lei de autorização legislativa ao abrigo da qual foi publicado o DL n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, que aprovou o Código de Processo Penal vigente)”([8]).

Também a jurisprudência tem entendido que “nas fases preliminares do processo, não se visa alcançar a demonstração da realidade dos factos, antes tão só indícios, sinais, de que um crime foi cometido por determinado arguido, constituindo as provas reunidas nessa fase pressuposto, não da decisão de mérito, mas da decisão processual da prossecução dos autos para julgamento” – entre outros o Ac. da RP de 20-10-93, proc. 679/93-3ª.


Pretendem os recorrentes a pronúncia da arguida relativamente ao crime de difamação.

Na origem dos presentes autos está uma exposição/reclamação que a arguida enviou, através de correio electrónico, ao Director do Hospital SM..., da X....

Ora, como se observa pela leitura do aludido e-mail, a arguida desagradada com a demora na marcação da consulta de oftalmologia para a sua filha, e usando do direito à crítica pelas consequências de tal demora – o de ser obrigada a ir a uma consulta no privado – veio apresentar a sua reclamação junto do responsável máximo daquele hospital, “requerendo que sejam apuradas as devidas responsabilidades, para que futuramente outros utentes não tenham que passar pela mesma situação”.

A arguida não identifica nenhum dos médicos que exerciam funções no Serviço de Oftalmologia (os assistentes), pelo que se deve entender que as expressões utilizadas por aquela, ainda que de pendor depreciativo, constituem uma crítica ao desempenho objectivo, concretamente à forma como eram feitas as marcações naquele Serviço, não se vislumbrando que fosse intenção da arguida ofender pessoalmente os assistentes, atingindo-os na sua honra e consideração.

Como refere o Prof. Costa Andrade ([9]) o direito à crítica insere-se na liberdade de expressão, o direito que a todos assiste de participar e tomar posição (designadamente sob a forma de crítica) na discussão de todas as coisas e de todas as questões de interesse comunitário.

A reclamação apresentada pela arguida deve, assim, ser entendida como o exercício de um direito de cidadania, enquanto direito à crítica relativamente ao funcionamento de um serviço público.


Estabelece o artigo 425º, n.º 5 do CPP que “Os acórdãos absolutórios enunciados no artigo 400º, n.º 1, al. d), que confirmem decisão de 1ª instância sem qualquer declaração de voto podem limitar-se a negar provimento ao recurso, remetendo para os fundamentos da decisão impugnada”.

Muito embora, em termos técnico-jurídicos um acórdão absolutório seja distinto de um despacho de não pronúncia, este último tem o mesmo sentido/efeito de absolutório porquanto, também na não pronúncia não há responsabilização criminal de alguém. Este tem sido o entendimento dos tribunais superiores, nomeadamente do STJ: “um acórdão da Relação que confirma um despacho de não pronúncia da 1.ª instância é um acórdão absolutório” ([10]) para os efeitos do disposto na al. d), do n.º 1, do art. 400º do CPP.

Na situação dos autos, após analisar toda a prova recolhida em sede de inquérito e de instrução entendemos que o tribunal a quo fez rigorosa apreciação e valoração da mesma, não padecendo a decisão recorrida de qualquer vício.

Deste modo, remetendo para os fundamentos do despacho recorrido, com os quais concordamos na íntegra, face aos elementos de prova existentes no processo, não se advinha como possível a formulação de um juízo de probabilidade razoável de condenação, como determina o n.º 2 do artigo 283º do CPP.

Termos em que, não merece censura o despacho impugnado.



*****


III - DECISÃO
Face ao exposto, acordam os juízes da secção criminal deste Tribunal da Relação em:

- Negar provimento ao recurso, confirmando-se, consequentemente, o despacho recorrido.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça em 2 UCs.




*****

Coimbra,


[1] - In "Algumas considerações jurídicas sobre crimes de difamação e de injúria", in Revista de Legislação e Jurisprudência, anos 92 e 95.
[2] - cfr. Faria da Costa, in Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, 1999, p. 607.
[3]- Acessível in www.dgsi.pt - acórdão que segue a posição de Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal. Coimbra Editora. 1996 ..
[4] - Nesse sentido Salvador da Costa, in Regulamento das Custas Processuais, anotado e comentado, Almedina, 2009, p. 101.
[5] - Alteração da Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto.
[6] - In Comentário ao Código de Processo Penal Português, Vol. IV, pág. 411.
[7] - In Direito Processual Penal, Vol. I, págs. 133 e 155.
[8] - António Tolda Pinto, in a Tramitação Processual Penal, 2ª edição, pág. 701.
[9] - in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, uma Perspectiva Jurídico-Criminal, Coimbra Editora, 1996, pág. 269.
[10] - Ac. do STJ de 8-7-2003, proferido no Proc. n.º 2304/03 - 5.ª Secção.


http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/0635de07814be3f7802577660038352d?OpenDocument&Highlight=0,difama%C3%A7%C3%A3o

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