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segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

Discurso de sua Excelência o Presidente do Supremo Tribunal de Justiça na Sessão Solene de Abertura do Ano Judicial de 2012

"Iniciamos este novo ano com a espera expectante que invade os países da União Europeia, num momento em que ninguém adivinha se estamos num mero acidente de percurso ou num tempo estrutural de viragem da história do Homem.



Enquanto isso, o ano transato não trouxe novidades de maior no funcionamento do STJ.
Tivemos, entre recursos e ações (excetuando as reclamações, como sempre fazemos) 3412 processos entrados neste Tribunal, ou seja, mais 256 do que em 2010, e foram decididos ao todo 3301 processos.
O STJ esteve, o ano passado, com o quadro de juízes incompleto durante meses por força do novo sistema de concurso de graduação e acesso, bastante moroso e que talvez se deva repensar.
Neste momento, com o quadro normalizado, o Supremo voltou à sua já tradicional velocidade de cruzeiro.
Feito este rápido bosquejo sobre a produtividade e a fluidez decisória a que o STJ já nos habituou, limitar-nos-emos a abordar sucintamente quatro pontos, alguns dos quais relacionados com compromissos internacionais assumidos pelo Estado Português.
Vejamo-los.

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O primeiro refere-se à urgente reforma do mapa judiciário, ou seja, à cartografia dos tribunais do país.
A nossa orgânica provem essencialmente de há 170 anos atrás; em 1962 fez-se uma tímida modernização do mapa e nos últimos trinta anos a criação de municípios levou à proliferação de novas comarcas, muitas delas sem litigância que o justificasse.
A estrutura do nosso mapa judiciário, com a sua distribuição de magistrados e funcionários, esteve sempre centrada numa dicotomia: Lisboa e Porto para um lado, o resto do país para o outro.
Entretanto, a adesão à União Europeia alterou completamente a radiografia da ocupação demográfica do território: a litoralização urbana acentuou-se, o Porto foi ultrapassado por Gaia em população residente e Lisboa está prestes a sê-lo por Sintra.
Apesar disso, e do crescimento exponencial de processos noutras cidades quando comparado com a distribuição processual em Lisboa e Porto, estas cidades (ou seja, Lisboa e Porto) continuaram com uma cartografia agora sobredimensionada de tribunais para as suas necessidades que foram diminuindo.
Somente com a reforma intercalar de 2008, dirigida diretamente para aquelas cidades, se tentou corrigir essa distorção: no Porto, conseguiu-se isso quase em pleno; em Lisboa não, porque as pressões sobre os poderes decisórios evitaram-no mantendo na prática tudo como dantes.
A experiência no terreno mostra-nos que a produtividade de juízes (e funcionários) diminuiu em quatro casos paradigmáticos (excetuados, claro, alguns outros de cariz menor): ou quando não há estabilidade profissional do juiz que é permanentemente transferido porque o nomadismo prejudica a produtividade (é o caso dos tribunais de 1.º acesso onde os juízes rodam anualmente); ou, nos tribunais de grande pendência, quando não há especialização porque a urgência do crime paralisa o cível (é o caso das Varas mistas que devem, simplesmente, ser especializadas); ou quando os quadros estão subdimensionados porque o juiz - ainda que trabalhe vinte cinco horas por dia - não dá vazão ao que entra; ou quando os quadros estão sobredimensionados porque, quando há gente a mais para serviço a menos, a tendência é diminuir a produtividade para que o sobredimensionamento de quadros se mantenha de modo a garantir a continuação de menor trabalho.
O que aconteceu há anos com a Pequena Instância Cível Liquidatária de Lisboa é o exemplo perfeito desta última hipótese; recentemente, um outro caso similar, ocorrido também em Lisboa, obrigou a uma intervenção urgente e corretora do CSM com efeitos penosos, confirmando as conclusões que de há muito tínhamos por assentes.
Daí que a alteração intercalar da orgânica judiciária aprovada há dois meses tenha pecado por defeito quanto à capital; esta, mesmo com a diminuição timidamente concretizada, continua com juízos, juízes e funcionários a mais nas Varas Cíveis, nas Varas Criminais, no TIC (Tribunal de Instrução Criminal), provavelmente nos Juízos Cíveis e que fazem falta noutros tribunais do Vale do Tejo.
Refazer rapidamente o leque das comarcas do país é, por isso, uma urgência inadiável.


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Tal como é - e este é o segundo ponto - a reformulação visceral do processo civil, porque, por aqui, passa a agilização da definição e da cobrança dos direitos dos credores.
O projeto de alteração do Código do Processo Civil contem muitas coisas manifestamente positivas e de aplaudir: entre outras, o reforço do poder de direção processual do juiz com um leque variado de despachos judiciais irrecorríveis, a proibição de adiamentos dos julgamentos, a responsabilidade de todos (juízes e partes) na programação e ordenação do processo e do julgamento, a inversão do contencioso, um maior controlo judicial da ação executiva, a aplicação do artigo 720 aos incidentes dilatórios em primeira instância.
No seu número de 1 de dezembro de 2011, a revista italiana "L'Espresso" fazia uma análise aprofundada do Judiciário do seu país sob o título "Ingiustizia" já que, em Itália, o tempo médio de resolução de uma ação cível anda pelos dez anos; e uma das causas que a revista apontava para tanta demora resumiu-a ela na expressão "muitos advogados, poucos juízes e a litigiosidade no limiar da falta de confiança social".
Daí que perguntemos, e mau grado o tempo da nossa litigância cível ser muito inferior, se não seria possível ir mais longe na reforma processual em curso, nomeadamente reforçando ainda mais os poderes inquisitórios de direção processual do juiz com uma cláusula geral de filosofia similar ao art.º 1041 do velho Código transformada agora em princípio nuclear, criando uma única forma de processo declarativo e uma única forma de incidentes de instância adaptáveis pelo juiz em função do fim e da complexidade concretos que a adequação formal corrigiria, dando ao juiz mais poder de iniciativa na programação do processo e da audiência, limitando não apenas o número de testemunhas (como consta do projeto) mas também as horas totais de instância atribuídas a cada parte (como se faz nos processos arbitrais) sempre com a presença de uma válvula de segurança que o juiz usaria para casos especiais.
Não se trata - note-se bem - de subalternizar o novo projeto do processo civil; trata-se de aprofundar princípios e soluções que ele já contém.


*****


O terceiro ponto é recorrente: a ação executiva.
E a estatística oficial anual dos nossos tribunais mostra-nos porquê.
Tomando por base os números de 2010 (já que os de 2011 ainda não estão disponíveis) e excluindo as execuções dos tribunais de trabalho que seguem tramitações processuais diferentes e não têm grande significado numérico (foram menos de mil) vemos que:
1º) entraram 274.020 execuções e findaram 196.594, isto é, houve um défice processual de 77.426 execuções, num modelo em que a intervenção de juiz e funcionário é quase nula;
2º) no resto - no conjunto de todos os outros processos cíveis, criminais, tutelares e de trabalho - entraram 439.616 ações e findaram 451.000 o que nos dá uma taxa de resolução positiva de 11.384 processos.
Estes números, só por si, mostram quase tudo.
Não questionamos, porém, o modelo agora proposto para a ação executiva até porque com a crise económica atual é incomportável defender aquele outro que sempre achamos melhor: o de países do norte com a desjudicialização da execução e a existência de um organismo estatal com competência administrativa coerciva para todo o território.
Mas permanece, intocada, a questão central que, aqui, abordámos o ano passado: é insustentável manter um modelo que permite aos agentes de execução agirem como verdadeiros profissionais liberais sem controlo ou com um controlo frouxo e depois responsabilizar indemnizatoriamente o estado (ou seja, todos nós) pelos atos lesivos que cometem porque são funcionalmente agentes do estado.
O hibridismo de um sistema que permite o lucro a uns e atribui a responsabilidade a outros tem que acabar; algo que só se consegue se o órgão de gestão dos agentes de execução for estatal e não corporativo.
Nunca acreditei em modelos de gestão profissional centrados na autorregulação ou na hétero-regulação; acredito, sim, na co-regulação o que significa que esse órgão de gestão estatal deverá ter uma componente não despicienda de representantes da classe.
Há um ano, nesta cerimónia, previ que iríamos "ter ações de responsabilidade civil extracontratual do Estado nas quais todos pagamos para proveito e gáudio daqueles a quem interessa tal hibridismo".
Não era difícil fazer esta previsão.
Elas aí estão, essas ações.


* * * **


Por último e para terminar, a questão dos "direitos adquiridos" que renasce como a Hidra sempre que entramos em crise económica ou social.
E a sentença dos comentaristas é quase sempre unânime: em época difícil não há direitos adquiridos, o que quer dizer que se pode atingir, ou seja, baixar, sem limites definidos, as pensões de reforma fixadas, os vencimentos ou salários estabilizados e as prestações acordadas.
Não se nega que em situações excecionais possa haver soluções excecionais, mas com limites definidos, à semelhança do que sucedeu no fim da 1.ª grande guerra quando surgiu a teoria da imprevisão abrindo brecha no princípio da estabilidade contratual; mas o curioso na opinião daqueles comentaristas é o unilateralismo do seu raciocínio incapaz de perceber os efeitos jurídicos bilaterais que ele contém e que, de certeza, muita gente recusará.
Os direitos são ou originários ou adquiridos.
Originários são praticamente tão-só os direitos de personalidade, entre os quais se contêm os direitos potestativos de aquisição de futuros direitos adquiridos; adquiridos são todos os outros.
Vale isto por dizer que direitos adquiridos não são apenas aqueles de que se fala em épocas de crise, isto é, as pensões fixadas, os salários estabilizados e as prestações acordadas; são também os direitos obrigacionais dos credores, os direitos de propriedade e os direitos societários dos sócios dominantes ou não.
Defender que não há direitos adquiridos é dizer que todos eles, mas todos, podem ser atingidos, diminuídos ou, no limite, eliminados; ou seja, é admitir o regresso ao tempo das ocupações, das autogestões ou do confisco porque estamos perante direitos adquiridos alteráveis perante situações excecionais.
Será que se está preparado para aceitar todas, mas todas, as sequelas lógico-jurídicas de quem assim pensa?
Os direitos adquiridos são o produto final de uma civilização avançada que se estruturou à volta da teoria do pacto ou do contrato social que, desde o séc. XVII foi sendo elaborada por pensadores diversos desde Hobbes, Francisco Suarez, Locke, até à obra conhecida de Rousseau, que fundamentou a legitimidade do poder no pacto social que os cidadãos aceitavam delegando o seu exercício e retirando, assim, ao príncipe a titularidade originária daquele.


A evolução posterior desta teoria levou à conceção da soberania popular delegada pelo povo nos seus representantes eleitos, isto é, levou à democracia representativa; mas, nela, permanece a noção subliminar do contrato tacitamente aceite pelo povo e que contem em si, também, a ideia de solidariedade entre os cidadãos que contratualizaram o pacto.
Quando o contrato se rompe, rompe-se também a solidariedade, porque tal rutura traz sempre consigo a violação do equilíbrio das prestações contratuais com o benefício de uns em detrimento de outros.
Num artigo publicado em 1855 no Porto e que precedeu as suas "Memórias do Cárcere", Camilo Castelo Branco escreveu isto mesmo de forma exemplar.
Veja-se esta pequena passagem desse seu texto: "A inércia da autoridade, que não se lhe perdoa, é talvez a consciência de que ninguém se deixa morrer de fome, enquanto o braço pode dedicar-se a um trabalho qualquer, embora desonroso. Ao homem desamparado não se lhe podem pedir contas do pacto social, porque a sociedade não quis aliança com ele quando o desamparou."
E termino aqui a citação porque o que se segue na escrita de Camilo é verdadeiramente perturbador.
No relatório de 2008 do Eurostat, Portugal é, na União Europeia, um dos países com maior desigualdade de rendimentos entre ricos e pobres, só ultrapassado pela Roménia, Bulgária e Letónia e logo seguido, entre os países mais desenvolvidos (e a fazer fé em Tony Judt) pela Grã-Bretanha.
O mesmo relatório adverte que, na União, 1 em cada 6 cidadãos está em risco de pobreza, número vermelho similar ao que existia em Paris por volta de 1788/1789, os anos do Rubicão; e a Dinamarca, país "insuspeito", é (na União) aquele onde o endividamento individual bruto atinge maior percentagem.
O que isto significa em termos de coesão social ou - dito de outra forma - em termos de solidariedade que, psicologicamente, sustenta o contrato social pode ser devastador.



Daí que falar na inexistência de direitos adquiridos num discurso unilateral e unipolar, ainda por cima num país de rendimentos tão desiguais, pode ser a abertura da caixa de Pandora que nos leve ao Inverno (ou ao Inferno) do nosso descontentamento.


Luis António Noronha Nascimento
Presidente do Supremo Tribunal de Justiça "

http://www.stj.pt/presidente/intervencoes/429-intrevencaopresidente2012

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