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segunda-feira, 28 de novembro de 2011

CONTA BANCÁRIA DEPÓSITO BANCÁRIO CONVENÇÃO DE CHEQUE - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - 18/10/2011


Acórdãos TRC
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
46/10.0T2AND.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HENRIQUE ANTUNES
Descritores: CONTA BANCÁRIA
DEPÓSITO BANCÁRIO
CONVENÇÃO DE CHEQUE
PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA RESPONSABILIDADE DO BANQUEIRO PELO PAGAMENTO DE CHEQUE FALSIFICADO

Data do Acordão: 18-10-2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DO BAIXO VOUGA – JUÍZO DE MÉDIA E PEQ. INSTÂNCIA CÍVEL DE ANADIA
Texto Integral: S

Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTºS 362º, 363º E 408º DO CÓDIGO COMERCIAL; 1º DO DL Nº 430/91, DE 2 DE NOVEMBRO; 4º E 8º, NºS 1 E 2 DO RGIC, APROVADO PELO DL Nº 298/92, DE 31 DE DEZEMBRO.

Sumário: I - A abertura de conta (bancária) é um contrato celebrado entre um banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos e diversas práticas bancárias. Trata-se de um contrato bancário nuclear ou central, que, embora sem regime legal explícito, constitui a moldura dos diversos actos bancários subsequentes.
II - O contrato de abertura de conta conclui-se pelo preenchimento de uma ficha, pela aposição da assinatura em local bem demarcado e tem por conteúdo necessário uma conta-corrente bancária, como operação associada o deposito bancário e, como elemento eventual, entre outros, o negócio de concessão de crédito por descoberto em conta.

III - O depósito bancário, proprio sensu, é um depósito em dinheiro constituído junto de um banqueiro, operação que surge sempre associada a uma abertura de conta. Tratando-se de depósitos à ordem, existe uma única convenção, anexa à abertura de conta e que vincula o banqueiro a receber, levando à conta, as diversas remessas feitas a título de dinheiro depositado.

IV - A convenção de cheque é o contrato, expresso ou tácito, pelo qual o depositante fica com o direito de dispor de uma provisão, por meio de cheque, obrigando-se o banco a pagar o cheque até ao limite da quantia disponível, quer esta resulte de um depósito antecipadamente efectuado ou de crédito concedido pelo banqueiro. Esta convenção tem por fim a atribuição ao cliente do direito de dispor de fundos por meio de um ou mais cheques: o direito de dispor de fundos por cheque equivale ao direito de sacar cheques.

V - A convenção de cheque adstringe as partes – necessariamente o banqueiro e o seu cliente – a uma pluralidade de deveres, alguns ainda que puramente acessórios.

VI - O dever principal que para o banco decorre da convenção de cheque é, naturalmente, o de pagar o cheque que seja sacado sobre a conta que detenha no seu estabelecimento, à custa de fundos que nessa conta se encontrem disponíveis. Todavia, ao lado deste dever é possível recortar, diversos deveres acessórios entre os quais se contam o dever de fiscalização e o dever de competência técnica.

VII - O banqueiro deve actuar com um elevado grau de diligência e profissionalismo nos diversos aspectos atinentes ao manuseio dos cheques: deve verificar com cuidado, por exemplo, a assinatura do cliente e deve, na dúvida, ser cauteloso, recusando o pagamento de cheques menos claros ou relativamente aos quais exista um qualquer motivo de suspeita.

VIII - A jurisprudência orienta-se nítida e maioritariamente, para a determinação da imputação do dano decorrente do pagamento cheque falsificado, pelos princípios da responsabilidade ex-contractu, assacando-a, ora ao banco ora ao cliente, de harmonia com a sua culpa.

IX - O dano decorrente do pagamento do cheque adulterado deve ser imputada em função da culpa que possa ser assacado ao banqueiro ou ao sacador, assente na violação dos deveres contratuais que para um e para outro emergem da convenção de cheque que reciprocamente os vincula. Demonstrando-se que a contribuição de ambos para produção do facto danoso, a responsabilidade deverá ser repartida proporcionalmente à respectiva culpa (artº 570 do Código Civil).

X - Por força da presunção de culpa que vulnera o banco, a este cabe, por aplicação dos princípios gerais, a prova de que cumprimento defeituoso não procede de culpa sua (artº 799 nº 1 do Código Civil). Nestas condições, para se exonerar da sua responsabilidade, o banqueiro deve fazer a prova de que a falsificação do cheque é imputável a uma culpa do cliente ou que, no caso, cumpriu deveres de diligência e cuidado cuja observância lhe era exigível e, correspondentemente, que a sua conduta não concita um juízo de censurabilidade.


Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

1. Relatório.

M… e cônjuge, H…, interpuseram recurso ordinário de apelação da sentença do Sr. Juiz de Direito do Juízo de Média e Pequena Instância Cível da Anadia, da Comarca do Baixo Vouga, que julgando improcedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, sumário pelo valor, que propuseram contra Banco …, SA, absolveu este do pedido.

Os recorrentes pedem no recurso a revogação desta decisão e a sua substituição por outra que, julgando procedente a acção, condene o recorrido a pagar-lhes a quantia de € 15.150,00, acrescida dos juros remuneratórios que deixaram de auferir.

Os recorrentes condensaram a sua discordância relativamente à sentença impugnada nas conclusões seguintes:



Na resposta, o recorrido concluiu pela improcedência do recurso.

2. Factos provados.

O tribunal de que provém o recurso julgou provados os seguintes factos:



3. Fundamentos.

3.1. Delimitação objectiva do âmbito do recurso.

Além de delimitado pelo objecto da acção e pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (artº 684 nºs 2, 1ª parte, e 3 do CPC).

Nas conclusões da sua alegação, é lícito ao recorrente restringir, expressa ou tacitamente, o objecto inicial do recurso (artº 684 nº 2 do CPC). Porém, se tiver restringido o objecto do recurso no requerimento de interposição, não pode ampliá-lo nas conclusões[1].

Maneira que, tendo em conta a vinculação temática deste Tribunal ao conteúdo das alegações do recorrente e da decisão impugnada, a questão concreta controversa que importa resolver é a de saber se a sentença impugnada deve ser revogada substituída por acórdão que condeno o apelado no pedido.

A resolução deste problema vincula ao exame do contrato ou da convenção de cheque e dos deveres que dela decorrem para o banco e para o cliente, e à determinação da natureza da responsabilidade do banqueiro pelo pagamento de cheque comprovadamente falsificado.

3.2. A convenção de cheque e os deveres do banqueiro e do cliente.

A abertura de conta e o depósito bancário são operações, rectior, contratos bancários, reservadas a banqueiros (artºs 362 do Código Comercial e 4 e 8 nºs 1 e 2 do RGIC, aprovado pelo DL nº 298/92, de 31 de Dezembro).

As operações bancárias são reguladas pelas disposições especiais respectivas aos contratos que representarem ou que afinal se resolverem (artº 363 do Código Comercial).

As noções de abertura de conta e de depósito bancário devem ser cuidadosamente recortadas e separadas.

A abertura de conta é, muitas vezes, confundida quer com a conta-corrente quer com o depósito bancário. Trata-se, porém, de realidades bem distintas.

A abertura de conta é um contrato celebrado entre um banqueiro e o seu cliente, pelo qual ambos assumem deveres recíprocos e diversas práticas bancárias[2]. Trata-se de um contrato bancário nuclear ou central, que, embora sem regime legal explícito, constitui a moldura dos diversos actos bancários subsequentes[3].

O contrato de abertura de conta conclui-se pelo preenchimento de uma ficha, pela aposição da assinatura em local bem demarcado e tem por conteúdo necessário uma conta-corrente bancária, como operação associada o deposito bancário e, como elemento eventual, entre outros, o negócio de concessão de crédito por descoberto em conta.

A conta-corrente bancária é uma conta-corrente comum mas celebrada entre o banqueiro e o cliente que se inclui no negócio jurídico mais vasto representado pela conta bancária: através dela fica assente o modo pelo qual a conta é movimentada em termos de débito e de crédito e tem por elemento nuclear o saldo, verdadeiramente autónomo em relação aos créditos que o antecedem (artº 344 do Código Comercial).

Se é perfeitamente admissível a conclusão de um contrato de abertura de conta, com a inerente conta-corrente bancária, sem um depósito inicial, a verdade é que o depósito é uma operação que surge, normalmente, associada a uma abertura de conta: aquando da conclusão deste último contrato, surge para o banqueiro, em regra, a obrigação de receber depósitos bancários.

O depósito bancário, em sentido estrito ou próprio, ou depósito de dinheiro ou disponibilidades monetárias, é o contrato pelo qual uma pessoa entrega uma quantia pecuniária a um banco, que dela passa a dispor livremente e se obriga a restituí-la, a solicitação do depositante, nas condições convencionadas (artºs 408 do Código Comercial e 1 do DL nº 430/91, de 2 de Novembro)[4].

O depósito bancário, proprio sensu, é portanto, um depósito em dinheiro constituído junto de um banqueiro, operação que surge sempre associada a uma abertura de conta. Tratando-se de depósitos à ordem, existe uma única convenção, anexa à abertura de conta e que vincula o banqueiro a receber, levando à conta, as diversas remessas feitas a título de dinheiro depositado.
A natureza jurídica precisa do depósito bancário é muito discutida. Alguma doutrina, e sobretudo a jurisprudência[5], considera-o um depósito irregular; outra sustenta que tem a natureza de mútuo[6]; finalmente há quem o encare como figura unitária, típica, autónoma, próxima do depósito irregular[7].

Um outro negócio subsequente à abertura de conta é a convenção de cheque, que tanto pode ser expressa ou meramente tácita. Em regra, a convenção de cheque surge associada a um contrato de abertura de conta. Trata-se, porém, de uma convenção autónoma e não um simples acto integrado no negócio mais vasto da abertura de conta.

De forma deliberadamente simplificadora, bem pode dizer-se que o cheque é um documento, em regra normalizado, do qual consta uma ordem de pagamento, dada por um cliente ao seu banco, para que proceda a um determinado pagamento a um terceiro, ao portador ou até ao dador dessa ordem (artº 1, 2 e 12 nº 2 da LUCh)[8].

O cheque enuncia uma ordem de pagamento que se dirige a um banqueiro, no estabelecimento do qual devem existir fundos à disposição do primeiro, em regra uma provisão constituída pelo emitente do título (artº 3 da LUCh). É assim cheque o meio pelo qual se mobilizam fundos, quer em benefício do emitente – cheque a favor do depositante – quer a favor de um terceiro. O cheque pode apresentar-se como título de crédito à ordem quando indica o nome do beneficiário da ordem de pagamento; é então correntemente denominado cheque nominativo, designação, contudo, imprópria, dado que a sua forma de transmissão é o simples endosso (artº 12, 1º § da LUCh). Quando seja ao portador, o cheque transmite-se por simples traditio (artº 5 da LUCh).

O cheque pressupõe, portanto, uma convenção de cheque e uma relação de provisão, de harmonia com a qual o banqueiro deve ter fundos à disposição do emitente do título. Não é necessário que o sacador tenha previamente depositado esses fundos no banco; basta, por exemplo, que este tenha concedido àquele um limite de crédito.

A convenção de cheque é, assim, o contrato, expresso ou tácito pelo qual o depositante fica com o direito de dispor de uma provisão, por meio de cheque, obrigando-se o banco a pagar o cheque até ao limite da quantia disponível, quer esta resulte de um depósito antecipadamente efectuado ou de crédito concedido pelo banqueiro. Esta convenção tem por fim a atribuição ao cliente do direito de dispor de fundos por meio de um ou mais cheques: o direito de dispor de fundos por cheque equivale ao direito de sacar cheques.

A convenção de cheque adstringe as partes – necessariamente o banqueiro e o seu cliente – a uma pluralidade de deveres, alguns ainda que puramente acessórios.

O dever principal que para o banco decorre da convenção de cheque é, naturalmente, o de pagar o cheque que seja sacado sobre a conta que detenha no seu estabelecimento, à custa de fundos que nessa conta se encontrem disponíveis. Todavia, ao lado deste dever é possível recortar, diversos deveres acessórios entre os quais se contam o dever de fiscalização e o dever de competência técnica[9].

Este dever de fiscalização ou de verificação – que sendo acessório é também instrumental relativamente ao dever principal do banqueiro - resolve-se no dever de verificar cuidadosamente o cheque[10], designadamente de controlar a autenticidade do módulo, a regularidade do saque e de confirmar a autoria da assinatura do cliente por semelhança com aquela que o cliente oportunamente lhe confiou. Verificação que deve ser tanto mais especiosa quanto maior for o valor do cheque, dado que é precisamente em torno da inobservância deste dever, na vertente de controlo do saque, que gira a controvérsia no caso de falsificação do cheque.

O dever acessório de competência técnica[11] - que, é aliás transversal a toda a actividade bancária, não sendo específico da convenção de cheque – projecta-se nos cuidados e cautelas que o banqueiro deve observar no pagamento do cheque e no processo da respectiva compensação. Por força deste dever, o banco deve controlar, tão rigorosamente quanto possível, o cheque e, caso não o faça, deve assumir a responsabilidade por esse facto, sempre que uma eventual falsificação do cheque seja detectável (artº 75 do RCGI).

Este dever tem ainda a virtualidade de dar medida a diligência exigível ao banqueiro no cumprimento das obrigações que para ele emergem da convenção de cheque.

Na lei civil fundamental portuguesa, o cuidado objectivamente devido e concretizado com apelo ao bom pai de família, portanto, ao cidadão normal, ao homem médio (artºs 799 nº 2 e 487 nº 2 do Código Civil). O critério definidor do esforço que é objectivamente exigível a cada pessoa é, portanto, além de normativo, objectivo e generalizador, e, portanto, não entra em linha de conta com as capacidades pessoais do agente concreto, caso estas sejam inferiores às do homem médio.

Todavia, a concretização do bom pai de família faz-se na específica área de interesses e de competência técnicas em que se insere o devedor. Ao banqueiro será, por isso, exigível – designadamente na área sensível da verificação do cheque - elevados níveis de competência técnica e de organização. A bitola do esforço exigível é, por isso, mais exigente que a comum: requer um esforço acrescido, por se dirigir a uma entidade altamente qualificada e especializada[12].

O banqueiro deve, pois, actuar com este grau de diligência e profissionalismo nos diversos aspectos atinentes ao manuseio dos cheques: deve verificar com cuidado, por exemplo, a assinatura do cliente[13] e, deve, na dúvida, ser cauteloso, recusando o pagamento de cheques menos claros ou relativamente aos quais exista um qualquer motivo de suspeita[14].

Mas é claro que da convenção ou do contrato de cheque também emergem deveres para o cliente, entre os quais avultam os deveres de adequada guarda e conservação dos módulos de cheques[15] e o de cuidado no preenchimento e na entrega do cheque aos tomadores ou beneficiários, de modo a obstar ou, ao menos, a não facilitar a adulteração por terceiro dos elementos inscritos no cheque ou desapossamentos ou descaminhos que comprometam a sua normal utilização. Todavia, o cliente está ainda vinculado a um outro dever: o de verificar os extractos bancários para aferir a sua regularidade e, em especial, os débitos dos cheques emitidos, pelo seu valor[16].

A diligência exigível ao cliente no cumprimento destes deveres, essa é aferida pelo critério geral: o do bonus pater familias.

3.3. Princípios orientadores da responsabilidade do banqueiro pelo pagamento de cheque falsificado.

Problema particularmente espinhoso é o da responsabilidade do banqueiro, no domínio extracambiário, no caso de falsificação do cheque, designadamente, na hipótese de falsidade material das suas menções, no plano da sua literalidade, nomeadamente no caso - que constitui a ocorrência mais vulgar - das referidas à quantia nele originariamente inscrita. Trata-se, portanto, de saber a quem deve ser imputado o dano resultante do pagamento pelo banco sacado de um cheque comprovadamente falso, designadamente no seu conteúdo, por não serem verdadeiros, em consequência de actos materiais, os factos nele representados, i.e., se esse prejuízo deve ser assacado ao banco ou ao sacador, ou antes repartido por um por outro.

Nem é outra, de resto, a questão em torno da qual gravita, no caso do recurso, a controvérsia das partes.

Uma primeira proposta de solução, propõe-se resolver o problema a partir da natureza jurídica do depósito bancário na qual o valor inscrito no cheque foi descontado: assentando na natureza irregular desse depósito, conclui, por aplicação do princípio res suo domino perit, que a responsabilidade pelas vicissitudes que o dinheiro depositado sofra correm por conta do depositário, sendo irrelevante a culpa deste. Ergo, o banco é responsável pelo pagamento do cheque falsificado, com inteira independência da culpa, tanto do sacador como do sacado[17].

Para uma segunda, a responsabilidade pelo pagamento do cheque falsificado deve determinar-se por aplicação dos princípios gerais da responsabilidade civil: o banqueiro só é responsável pelo pagamento do cheque no caso de culpa sua, mesmo que o cliente a não tenha[18].

Diferentemente, uma terceira, assentando no carácter irregular do depósito bancário, na natureza contratual da responsabilidade do banqueiro – e na correspondente presunção de culpa que o vulnera - sugere que o banco e, em princípio, responsável pelo pagamento do cheque falsificado, a não ser que prove a culpa do sacador (artº 799 nº 1 do Código Civil)[19].

Finalmente, outra doutrina, partindo da nulidade do cumprimento do cheque falsificado, por ter sido feito a credor aparente, remete para o sacador a prova de que o incumprimento ou cumprimento defeituoso não lhe é imputável; caso não a faça, o banco terá direito ao ressarcimento pelo dano da prestação realizada a terceiro (artº 799 nº 1 do Código Civil)[20].

Já a jurisprudência orienta-se nítida e maioritariamente, para a determinação da imputação do dano decorrente do pagamento cheque falsificado, pelos princípios da responsabilidade ex-contractu, assacando-a, ora ao banco ora ao cliente, de harmonia com a sua culpa[21]. E é esta resposta que se tem por exacta.

O dano decorrente do pagamento do cheque adulterado deve ser imputada em função da culpa que possa ser assacado ao banqueiro ou ao sacador, assente na violação dos deveres contratuais que para um e para outro emergem da convenção de cheque que reciprocamente os vincula. Demonstrando-se que a contribuição de ambos para produção do facto danoso, a responsabilidade deverá ser repartida proporcionalmente à respectiva culpa (artº 570 do Código Civil)[22].

Por força da presunção de culpa que vulnera o banco, a este cabe, por aplicação dos princípios gerais, a prova de que cumprimento defeituoso não procede de culpa sua (artº 799 nº 1 do Código Civil). Nestas condições, para se exonerar da sua responsabilidade, o banqueiro deve fazer a prova de que a falsificação do cheque é imputável a uma culpa do cliente ou que, no caso, cumpriu deveres de diligência e cuidado cuja observância lhe era exigível e, correspondentemente, que a sua conduta não concita um juízo de censurabilidade.

As dificuldades sobem, porém, de tom no caso de não se provar a culpa nem do sacador nem do banco. Nesta conjuntura, alguma jurisprudência sustenta a divisão proporcional do risco entre o sacador e o sacado, com a correspondente repartição da responsabilidade pelo dano[23].

A doutrina sugere, porém, a resolução do problema a partir da responsabilidade objectiva do banqueiro[24], sugestão a que a jurisprudência se tem mostrado sensível sublinhando, que a jurisprudência (do STJ) tem hesitado, parecendo tender para a responsabilidade objectiva dos bancos (caso se não prove a culpa do titular da conta)[25].

Estas considerações são mais que suficientes para resolver a questão concreta controversa, objecto do recurso.

3.4. Concretização.

Na espécie do recurso não oferece dúvida a vinculação recíproca dos apelantes e do apelado, designadamente pela convenção de cheque e a emissão, pela apelante, de um cheque, datado de 25 de Abril de 2005, sacado sobre a conta bancária à ordem detida pelo apelado, que sofreu, nas menções relativas à quantia que deveria ser paga uma adulteração ou viciação material: onde constava, por algarismos e por extenso, € 150.00 e Cento e cinquenta euros, fez-se constar, € 15 150,00 e Quinze mil, Cento e Cinquenta euros, respectivamente.

O cheque que foi passado à ordem do filho dos apelantes, P…, desapareceu da carteira deste, tendo sido depositado, no dia 27 de Novembro de 2007, na conta de E…, detida pela agência de Mafra do Banco ...

Na sequência de comunicação da apresentação do cheque na câmara de compensação, a apresentação a pagamento daquele cheque levantou suspeitas ao gerente do balcão do apelado na Anadia, que determinou que o apelante fosse telefonicamente para o questionar sobre o cheque. Porém, o balcão só conseguiu esse contacto no dia seguinte, portanto, depois do pagamento do cheque. O apelado debitou na conta dos apelantes a respectiva soma, do qual os últimos se viram desembolsados.

A sentença apelada foi terminante em declarar que nenhuma responsabilidade pode ser imputada ao apelado – por outra conduta, que não a tentativa de contactar o apelante, lhe não ser exigível – e em assacar aos apelantes um conduta pouco diligente em relação ao cheque, perdendo o seu rasto por mais de dois anos, sem curarem de, observando a respectiva conta bancária, e verificando que o mesmo demorava a ser descontado, saber o que lhe sucedera.

A matéria de facto é insuficiente para formular qualquer juízo sobre a cognoscibilidade da adulteração material do cheque. É, porém, clara quanto ao arco temporal que mediou entre a emissão daquele título e a sua apresentação a pagamento: 2 anos e 7 meses.

Concorda-se com a sentença quando assaca aos apelantes a violação de um dever objectivo cuidado que, no caso, sobre eles juridicamente impedia. Realmente, os recorrentes, pela simples consulta dos extractos da sua conta bancária à ordem detida pelo réu poderiam aperceber-se, com extrema facilidade do facto anormal – de harmonia com regras de experiência e critérios sociais - da não apresentação a pagamento do cheque em data próxima à da sua emissão e entrega ao filho de ambos. Todavia, como os próprios apelantes admitem na sua alegação, só depois do telefonema do réu é que tomaram conhecimento do que sucedera com o cheque. Quer dizer: durante mais de dois anos os apelantes mostraram-se inteiramente alheados e indiferentes ao destino dado ao cheque.

Portanto, esta conduta dos apelantes é nitidamente contrária ao cuidado objectivamente devido, a cuja observância estavam contratualmente vinculados: o sacador que emite um cheque e não cuida de controlar o seu débito na conta sacada infringe um dever – contratual – de cuidado, ofensa que permite fundamentar uma culpa negligente.

Todavia, os factos postos à disposição da sentença, permitem também comprovar uma culpa negligente do apelado e, correspondentemente, a vinculação daquele ao dever de reparar o dano (artº 798 do Código Civil).

Como se declara na decisão da matéria de facto, a apresentação a pagamento do cheque levantou suspeitas ao funcionário do apelado, suspeitas decerto fundadas, dado que para as dissipar, tentou, sem êxito, contactar o apelante e, apesar dessa suspeição, pagou o cheque.

Porém, essa suspeita, não obrigava o apelado apenas ao cuidado de tentar afastar ou confirmar a suspeita – mas antes lhe impunha esta cautela: não pagar o cheque. Realmente, o banqueiro que paga um cheque que julgou suspeito, viola o dever de cuidado, objectiva e contratualmente devido.

A culpa pressupõe um juízo de ilicitude, pois que aquela culpa decorre da censurabilidade que pode ser dirigida ao agente pelo facto de não se ter comportado em conformidade com um determinado dever-ser, e de ter violado, ainda que só com negligência, um imperativo, legal ou contratual

No caso, nem os apelantes nem o apelado se comportaram em conformidade com os deveres de cuidado a que estavam adstritos, constatação de que decorre o reconhecimento de que, nas circunstâncias concretas em que actuaram, poderiam ter conformado a sua conduta de molde a assegurar a satisfação daqueles dever de cuidado cujo cumprimento lhes era exigível nos mesmos condicionalismos. Tanto a conduta dos apelantes como o comportamento do recorrido são passíveis de um juízo, normativo ou valorativo, de censurabilidade. Numa palavra ambos agiram com uma culpa negligente.

Nestas condições, a responsabilidade pelo dano deve ser repartida pelos apelantes e pelos apelados, de harmonia com o seu grau de culpa (artº 570 do Código Civil).

E comprovada a culpa, tanto dos apelantes como de recorrido, está, evidentemente, prejudicada a imputação do dano ao último, com fundamento numa responsabilidade puramente objectiva.

Assim, tendo em conta a maior intensidade da violação pelo apelado do dever cuidado a que estava adstrito – resultante, desde logo, do dever acrescido de diligência a que se mostra vinculado – julga-se adequado repartir essa responsabilidade na proporção de 60% para o recorrido e de 40% para os recorrentes.

Os recorrentes pedem na acção, além da restituição do valor inscrito no cheque, os juros remuneratórios que deixaram de auferir caso tivessem depositado a quantia correspondente num depósito a prazo.

Não está demonstrado – nem, aliás, foi alegado – que os apelantes pretendiam depositar a quantia inscrita no cheque objecto da falsificação num conta a prazo com o escopo de auferirem os respectivos juros. Nestas condições, não há a mínima razão para vincular o apelado ao dever de indemnizar pelo valor correspondente aos juros remuneratórios que, eventualmente, seriam produzidos pelo depósito daquela quantia num depósito bancário a prazo.

Também não há razão para ponderar a adstrição do apelado ao dever de indemnizar pelo atraso na restituição da quantia inscrita no cheque, correspondente aos juros legais, dado que os recorrentes nem sequer formularam um tal pedido (artºs 3 nº 1 e 661 nº 1 do CPC).

De outro aspecto, o dano sofrido pelos apelantes não consiste na totalidade da quantia inscrita no cheque – mas na diferença entre a quantia originária e genuinamente inscrita no cheque e aquela que, por adulteração material, nele foi posteriormente aposta (artº 566 nº 3 do Código Civil). É que se o cheque não tivesse sido adulterado, o banqueiro sempre o teria pago pelo valor que originariamente ostentava.

O recurso deve, pois, proceder – mas apenas parcialmente.

O conjunto da argumentação disponibilizada de que decorre a procedência parcial do recurso, pode resumir-se nestas proposições conclusivas: a responsabilidade pelo pagamento de um cheque falsificado é regulada pelos princípios da responsabilidade contratual, portanto, de harmonia com o princípio da culpa; no caso de concorrência de culpas do banqueiro e do cliente, a responsabilidade dever ser repartida de harmonia com o grau de culpa que deva ser assacada a um e a outro; no caso de falsificação do cheque no tocante à quantia nele inscrita, o dano restringe-se à diferença entre o valor nele originária e genuinamente inscrito e o valor que, por adulteração material, nele foi posteriormente aposto.

As custas do recurso deverão ser suportadas pelos recorrentes e pelo recorrido, na proporção da respectiva sucumbência (artº 446 nºs 1 e 2 do CPC).

Dada a pouca complexidade do tratamento processual do objecto do recurso, a respectiva taxa de justiça deve ser fixada nos termos da Tabela I-B que integra o RCP (artº 6 nº 2).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, concede-se parcial provimento ao recurso e, consequentemente, condena-se o recorrido, Banco …, SA, a pagar aos recorrentes, a quantia de € 9 000,00.

Custas do recurso pelos recorrentes e pelo recorrido na proporção da respectiva sucumbência, devendo a taxa de justiça ser fixado nos termos da Tabela I-B integrante do RCP.


11.10.18
Henrique Antunes
Regina Rosa
Artur Dias



[1] Acs. do STJ de 16.10.86, BMJ nº 360, pág. 534 e da RC de 23.03.96, CJ, 96, II, pág.24.
[2] António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3ª edição, 2006, págs. 410 a 416.
[3] José Simões Patrício, Direito Bancário Privado, Quid Iuris, Lisboa, 2004, págs. 139 a 141 e Acs. da RC de 09.03.99, CJ, XXIV, II, pág. 21 e do STJ de 19.12.06, www.dgsi.pt; cfr. a Directiva 2002/65/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 23 de Setembro – JO L 271, de 9 de Outubro, considerando 17 e a Instrução do Banco de Portugal nº 48/96, de 17 de Junho (Boletim Oficial do Banco de Portugal nº 1/96, de 17 de Junho de 1996) relativa aos requisitos a observar pelas instituições de credito na aberturas de contas de depósito, designadamente quanto à identificação dos respectivos titulares e representantes.
[4] Cfr. Paula Ponces Camanho, Do Contrato de Depósito Bancário, Almedina, Coimbra, 1998, págs. 93 a 98 e Carlos Barata, Estudos em Honra do Professor Doutor Galvão Telles, Volume II, Direito Bancário, Almedina, Coimbra, 2002, págs. 7 a 66.
[5] V.g. Acs. do STJ de 09.02.95, CJ, STJ, III, I, pág. 75, e da RL de 07.10.99, CJ, XXXIV, IV, pág. 119.
[6] – V.g. Paula Ponces Camanho, cit. págs. 145 a 210 e Carlos Ferreira de Almeida Contratos II, Conteúdo – Contratos de Troca, Almedina, Coimbra, 2007, págs. 158 e 159.
[7] V.g. António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, cit. pág. 482.
[8] Oliveira Ascensão, Direito Comercial, Volume III, Títulos de Crédito, Lisboa, 1982, pág. 243 e 244.
[9] Paulo Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque, Almedina, Coimbra, 2009, págs. 461 e 462.
[10] Ac. da RL de 28.04.05, CJ, XXX, 2005, II, pág. 114 e Sofia de Sequeira Galvão, O Contrato de Cheque, Lex, Lisboa, 1992, pág. 51
[11] Ac. do STJ de 25.10.07, www.dgsi.pt.
[12] Paulo Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque, cit. pág. 483 e António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil,
[13] Ac. do STJ de 10.11.94, CJ, STJ, I, pág. 130.
[14] Ac. da RP de 21.09.93, BMJ nº 429, pág. 875, António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, cit., pág. 489 e Sofia de Sequeira Galvão, O Contrato de Cheque, cit. pág. 66.
[15] Ac. da RE de 13.12.90, CJ, XV, V, pág. 265
[16] Paulo Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque, cit. pág. 463.
[17] Ac. do STJ de 21.05.96, BMJ nº 457, pág. 343.
[18] Fuzeta da Ponte, “Da problemática da responsabilidade civil dos bancos decorrente do pagamento de cheques com assinaturas falsificadas, Revista da Banca, separata, 1994, pág. 81, Fernando J. Correia Gomes, A Responsabilidade civil dos bancos pelo pagamento de cheques falsificados, Vislis, Lisboa, 2004, pág. 40 e Ac. do STJ de 03.10.95, BMJ nº 485, pág. 117.
[19] L. P. Moitinho de Almeida, Responsabilidade Civil dos Bancos pelo Pagamento de Cheques Falsificados, Coimbra, 1982, pág. 76.
[20] José Maria Pires, O Cheque, Rei dos Livros, Lisboa, 1999, pág. 111.
[21] Acs. do STJ de 16.05.69, BMJ nº 187, pág. 156, de 18.03.75, BMJ nº 245, pág. 505, de 22.05.80, BMJ nº 297, pág. 368, de 16.06.81, BMJ nº 308, pág. 255, de 10.11.93, CJ, STJ, I, III, pág. 130 e de 06.09.11, www.dgsi.pt e da RC de 26.04.89, CJ, XIV, II, pág. 72.
[22] Ac. do STJ de 17.10.02, www.dgsi.pt.
[23] Ac. da RE de 13.12.90, CJ, XV, V, pág. 265.
[24] Paulo Olavo Cunha, Cheque e Convenção de Cheque, cit., págs 667 e 668, Manuel Gonçalves, “Responsabilidade civil dos bancos pelo pagamento de cheques falsos ou falsificados, RMP, Ano 10º, nº 39, Lisboa, 1989, pág. 71 e Oliveira Ascensão, Direito Comercial, vol. III, Títulos de Crédito, cit. pág. 256.
[25] Ac. do STJ de 03.03.98, BMJ nº 475, pág. 714.


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