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segunda-feira, 18 de julho de 2011

CORRUPÇÃO PASSIVA PARA ACTO LÍCITO, ABUSO DE PODER, IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora - 31-05-2011

Acórdãos TRE
Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
835/04.5TAPTM.E1
Relator: ALVES DUARTE
Descritores: CORRUPÇÃO PASSIVA PARA ACTO LÍCITO
ABUSO DE PODER
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO

Data do Acordão: 31-05-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO

Sumário: I – Pretendendo impugnar a decisão da matéria de facto com fundamento na errada avaliação de depoimentos ou declarações prestados na audiência de julgamento, cada uma das passagens concretas desses depoimentos ou declarações que servem de fundamento à impugnação e onde concretamente se encontra cada um deles (isto é, a hora, minuto e segundo em que no suporte digital ou em que rotação da cassete se inicia e termina a passagem do testemunho ou da declaração).

II - Não o fazendo mas tendo interposto o recurso no prazo geral de 20 dias, não se poderá conhecer dessa questão mas apenas de questões de direito ali também suscitadas.

III - Comete o crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art.º 382.º do Código Penal, quem, sendo técnica de tanatologia, cujos deveres funcionais consistiam em coser e vestir os corpos depois de efectuadas autópsias médico-legais e clínicas, agir com o propósito de obter para si e proporcionar às agências funerárias benefícios económicos, lhes prestar informações acerca de óbitos de que tinha conhecimento por via do exercício da sua actividade, bem como dos contactos dos familiares.


Decisão Texto Integral:







Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Évora (2.ª Secção Criminal):

I - Relatório.

1. Amélia..., foi, com outros dezasseis, submetida a julgamento, no processo em epígrafe, acusada da prática de um crime de corrupção passiva para acto lícito, previsto e punível pelo art.º 373.º, n.º 1 e de um crime de corrupção passiva para acto ilícito, previsto e punível pelo art.º 372.º, n.º 1, ambos do Código Penal.

2. Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Colectivo proferiu douto Acórdão, no qual a condenaram:

 pela prática de um crime de tráfico de corrupção passiva para acto lícito, previsto e punido pelo art.º 373.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de nove meses de prisão;
 pela prática de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art.º 382.º do Código Penal, na pena de treze meses de prisão; e
 operando o cúmulo jurídico destas duas penas, na pena única de dezoito meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

3. Inconformada com o douto Acórdão que a condenou, dele recorreu aquela Arguida, pretendo, inter alia, impugnar amplamente a decisão da matéria de facto proferida pelo Tribunal a quo e, por outro lado, pretextando que não cometeu o crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art.º 382.º do Código Penal, de cuja acusação pretendo ser absolvido, rematando a motivação com as seguintes conclusões:

I. Vem o presente recurso interposto do douto acórdão de fls., que:

Julgou a acusação parcialmente procedente, por parcialmente provada, e consequentemente, além do mais, condenou a Arguida pela prática de um crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art.º 382.º do Cód. Penal, na pena de treze meses de prisão; e que, operando o cúmulo jurídico desta pena com a pena de nove meses de prisão, aplicada pela condenação pela prática de um crime de corrupção passiva para acto lícito (p. e p. pelo art.º 373.º, n.º 1 do Cód. Penal), condenou a Arguida na pena única de dezoito meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

II. Contudo, o douto Tribunal a quo julgou incorrectamente os pontos de facto constantes de XX, ZZ, AAA, G000, HHHH, 1111, PPPP, QQQQ, RRRR, TTTT e UUUU do n. 2.1. do acórdão recorrido.

III. Com efeito, das testemunhas arroladas pelo Ministério Público, a única que foi inquirida em audiência de julgamento sobre factos dados como provados, ora em crise, foi a testemunha Sr. José …, agente funerário (cfr. acta de audiência de julgamento, de 18/11/2008, a fls. 3193 a 3196 dos autos — Vol. 13).

IV, Aliás, na motivação da matéria de facto provada da decisão recorrida, refere o douto Tribunal a quo que, no que toca aos factos dados como provados, ora em crise, resultou a convicção do Tribunal do depoimento da testemunha José…, agente funerário.

V, Ora, a testemunha JM… inquirida em audiência de julgamento, limitou-se a dizer a que a Recorrente “às vezes dava (sic) informações sobre os mortos, que “às vezes quando ela sabia que era daqui ou da Mexilhoeira ou de Alvor, ou de Portimão ou assim ela dizia.” (sic). “às vezes em conversa ela dizia (...) Aquelas conversas que estávamos ali, pois, dias inteiros”(sic.) - cfr. acta de audiência de julgamento, de 18/11/2008, a fls. 3193 a 3196 dos autos — Vol. 13;

VI. Por outro lado, relativamente ao facto dado como provado que «a arguida Amélia… fez entrega a um (...) empregado do arguido Serafim, de um papel” com referências da falecida Maria…, e do local onde residia, aquela testemunha disse que não se lembrava de quem lhe tinha dado esse papel - cfr. acta de audiência de julgamento. de 18/11/2008, a fls. 3193 a 3196 dos autos Vol. 13;

VII. Assim, prova produzida em audiência de julgamento não permitia dar como provada, como foi, a matéria referida supra, em II das presentes Conclusões;

VIII. Pelo exposto, o douto Tribunal a quo julgou incorrectamente os pontos de facto referido supra enunciados (cfr. art.º 412.º, n.º 3, al. a) do Cód. de Proc. Penal);

IX. A prova produzida em audiência de julgamento impunha uma decisão diversa da tomada pelo Tribunal a quo (art.º 412.º, n.º 3, al. b) do Cód. de Proc. Penal), impunha que o douto Tribunal a quo tivesse decidido somente provado que a Recorrente, às vezes, em conversa com o Sr. José Manuel…, comentava que tinham falecido uma pessoa da Mexilhoeira, de Alvor, ou de Portimão;

X. Salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal a quo ao considerar como assentes os factos que supra se deixaram reproduzidos da douta decisão recorrida, violando o princípio da livre apreciação da prova e, consequentemente, o disposto no art.º 127.º do Cód. de Proc. Penal.

Por outro lado,
XI. Para o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de poder, p. e p. exige-se:

a) Que o funcionário abuse de poderes ou viole deveres inerentes às suas funções;
b) Que actue com intenção de obter, para si ou para terceiro, beneficio ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.

XII. Ora, o facto de a Recorrente ter prestado ao Sr. José Manuel … as “inconfidências” relativas à existência de falecidos na morgue do hospital e o local de onde provinham, não constitui, por si só, abuso de poderes no sentido de uma instrumentalização dos poderes inerentes para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo.

XIII. Por outro lado, também não constitui incumprimento de deveres funcionais.

XIV. Por outro lado, não se provou o dolo específico, ou seja, não se provou que a Recorrente tivesse qualquer intenção de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, nem se provou que tivesse qualquer intenção de causar prejuízo a outra pessoa.

XV. Com efeito, não se provou que a Recorrente tivesse praticado factos susceptíveis de enquadrar o crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art.°. 382.º do Cód. Penal.

XVI. Assim, sendo como é, não podia o douto Tribunal a quo condenar a Recorrente pela prática do crime de abuso de poder.

XVII. Logo, o douto acórdão recorrido violou expressamente o disposto no art.º 382.º, do Cód. Penal, merecendo ser revogado no sentido ora pugnado, e consequentemente deve a Recorrente ser absolvida pela prática do crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art.º 382.º do Cód. Penal.

4. Ao recurso respondeu o Ministério Público, pugnando pela sua improcedência.

5. Nesta Relação, a Exm.ª Sr.ª Procuradora-Geral Adjunta secundou a resposta ao recurso apresentada pelo Ministério Público junto do Tribunal recorrido.

6. Foi dado cumprimento ao disposto no art.º 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal, sem qualquer sequela por parte da Arguida.

7. Efectuado o exame preliminar, e colhidos os vistos, cumpre agora apreciar e decidir.
***
II - Fundamentação.
1. Da decisão recorrida.
1.1. Factos julgados provados:

A – A 1.ª arguida – Amélia… – exerceu desde data indeterminada do ano de 2003 funções na Morgue do Hospital do Barlavento Algarvio, nesta cidade e comarca de Portimão, como técnica de tanatologia, inicialmente ao serviço do Instituto Nacional de Medicina Legal e, depois de 01.05.2004, por conta e sob a direcção do Hospital do Barlavento Algarvio, cessando tal contrato em 12.08.2004.

B – No exercício dessa sua actividade pública – para o que estava habilitada com o curso de auxiliar de tanatologia – competia-lhe coser e vestir os corpos depois de efectuadas autópsias médico-legais e clínicas.

C – Para isso sendo paga pelo Estado.

D – No entanto, com vista a auferir rendimentos extra, a arguida, no decurso do espaço de tempo em que exerceu funções na morgue do HBA, exigiu aos agentes funerários diversas quantias que bem sabia não lhe serem devidas.

E – Assim, até ao final do ano de 2003, cobrava a quantia de € 25,00 para vestir os cadáveres. A partir do início de 2004, aumentou para € 30,00 o montante cobrado por esse serviço.

F – Para além disso, por vezes acrescentava ainda a exigência do pagamento de mais € 25,00 pela realização da autópsia em si.

G – Pelo que, apenas no que se refere à agência funerária “G…” e no período situado entre 11 de Abril de 2002 e 25 de Abril de 2004, recebeu o total de € 3.185,00 referente a tais trabalhos, pelos quais já era paga pelo Estado.

H – A que acresciam as quantias que cobrava às demais agências funerárias que realizavam funerais de corpos que eram autopsiados no GML de Portimão.

I – Sendo que, caso tais quantias não lhe fossem pagas, a arguida arranjava modo de atrasar a entrega dos corpos às funerárias.

J – Único motivo que levou os responsáveis por tais agências a efectuar os pagamentos.

L – Bem sabia a arguida que tais quantias não lhe eram devidas e que agia em desconformidade, quer com as obrigações decorrentes do seu estatuto profissional, quer com a lei.

M – No entanto, agindo sempre de forma deliberada, livre e consciente, servindo-se da sua posição no Gabinete Médico-Legal, da possibilidade que tinha de, querendo, atrasar a entrega dos corpos aos agentes funerários, exigia os pagamentos atrás mencionados, assim enriquecendo de forma ilegítima o seu património pessoal.

N – Bem sabendo ser essa actividade punível pela lei.
*
O – O arguido Augusto… (2.) é proprietário da agência funerária denominada “Funerária do B…”, com sede e estabelecimento na Rua…. Usava o telemóvel com o nº … (que lhe foi apreendido) e tinha instalado na sua agência o telefone com o nº …

P – O arguido José M… (3.) é proprietário da agência funerária denominada “Funerária …”, com sede na … Usava o telemóvel com o nº … (que lhe foi apreendido).

Q – O arguido Alcindo… (4.) é funcionário da agência funerária pertença do arguido anterior (agência “…”), utilizando o telemóvel com o nº … (que lhe foi apreendido).

R – A arguida Marta… (5.) é gerente da “Agência Funerária…”, com sede na … com o telemóvel nº … (que lhe foi apreendido) e com o nº …

S – O arguido Nuno… (6.), nos anos de 2004 e 2005, era colaborador da agência funerária …, trabalhando por conta da arguida Marta. Usava os telemóveis com os nºs …

T – O arguido Manuel… (7.) é agente funerário, colaborando com a arguida Marta… no exercício de funções na agência funerária …, usando o telemóvel com o nº …

U – O arguido Serafim… (8.) é sócio-gerente da agência funerária …, usando o telemóvel com o nº …

V – O arguido João… (9.) trabalha na agência funerária …, por conta do arguido Serafim…, usando o telemóvel com o nº …. (que lhe foi apreendido).

X – Estes arguidos – Augusto…, José…, Alcindo…, Marta…, Nuno…, Manuel…, Serafim… e João… – exerceram e exercem, quer como proprietários, gerentes ou empregados, funções na área funerária.

Z – Existindo por parte de todos eles interesse económico em captar o maior número de funerais a realizar pelas respectivas agências, dado o enriquecimento patrimonial que representa, quer para eles próprios, quer para as agências que gerem e para que trabalham, a realização de tais trabalhos.

AA – Sendo que bem sabiam e sabem que a actividade das agências funerárias está regulada através de um conjunto de normas que visam – tendo em conta a relevância social dos serviços que prestam – a transparência da actuação dos seus profissionais, a qualidade dos serviços e a defesa dos interesses dos consumidores.

BB – Normas que proíbem expressamente, entre o mais:

- Que elementos do pessoal das agências permaneçam nos estabelecimentos hospitalares e serviços médico-legais; e que

- Contactem, quer directamente, quer através de terceiros, as famílias dos falecidos com o intuito de obterem a encomenda da realização dos funerais, sem que os seus serviços hajam sido previamente solicitados para o efeito.

CC – O arguido João… (10.), conhecido como …, exerceu funções como técnico auxiliar de análises patológicas no Gabinete Médico-Legal de Portimão. Usava, à data em que ali exerceu funções, os telemóveis com os nºs. (que lhe foi apreendido). Foi contratado pelo Hospital do Barlavento Algarvio em 12.04.2004, para substituir a arguida Amélia… na morgue.

DD – Esta arguida – Amélia… (1.) – desempenhou funções no GML de Portimão, nos termos já atrás mencionadas, como técnica de tanatologia.

EE – O arguido António… (11.) exerce funções no HBA desde 02.09.1974, tendo, a partir de 06.08.1982 a categoria de escriturário-dactilógrafo de 1ª classe. Trabalhava no serviço de urgências. Usava os telemóveis com os nºs. (que lhe foi apreendido) e 961 233 262.

FF – O arguido Miguel… (12.) exerceu funções no HBA, como auxiliar de acção médica, entre Abril de 2001 e o final de Março de 2005, iniciando funções no Hospital da Misericórdia de Portimão a partir de 01.04.2005. Utilizava o telemóvel com o nº …, tendo também acesso ao nº de telemóvel …

GG – O arguido Vítor… (13.) tomou posse como auxiliar de acção médica no HBA no dia 09.10.1998, estando no ano de 2005 integrado no serviço de urgência daquela Hospital. Usava o telemóvel com o nº …

HH – A arguida Carla… (14.) exerce funções no HBA como auxiliar de acção médica desde 06.08.2001, sendo, em 2005, namorada do arguido Nuno…

II – Estes arguidos – Amélia, João, António, Miguel, Vítor e Carla – exerceram e alguns exercem ainda, funções no Hospital do Barlavento Algarvio e/ou no Gabinete Médico-Legal de Portimão, tendo sido contratados para o efeito e recebendo as respectivas remunerações.
JJ – O HBA faz parte do Centro Hospitalar do Barlavento Algarvio, entidade de natureza pública (entidade pública empresarial), integrada no Serviço Nacional de Saúde e sob a tutela directa do Ministério da Saúde.

LL – O GML, ali instalado, faz parte do Instituto Nacional de Medicina Legal, entidade pública dependente do Ministério da Justiça.

MM – As funções daqueles arguidos são, assim, de natureza pública, estando impedidos de as utilizar para além dos direitos e obrigações às mesmas inerentes, nomeadamente de se socorrerem dos especiais conhecimentos que têm naquele exercício para obterem ou fazerem terceiros obter proventos.

NN – Os arguidos M… (15.), P… (16.) e R… (17.) são bombeiros voluntários, pertencentes à Associação dos Bombeiros Voluntários de Portimão, instituição de utilidade pública integrada no Serviço Nacional de Bombeiros e Protecção Civil, pessoa colectiva de direito público, à qual compete, entre outros, o socorro às populações em caso de acidentes, o socorro e transporte de sinistrados e doentes, incluindo a urgência pré-hospitalar e a colaboração em outras actividades de protecção civil, no âmbito do exercício das funções específicas que lhes forem cometidas.

OO – O arguido Manuel usava o telemóvel com o nº … (que o arguido Paulo… também usou, pelo menos, por uma vez), e o arguido Ricardo… o telemóvel com o nº …

PP – Entre tais funções de interesse público contam-se as inerentes ao acompanhamento, por estes arguidos, dos membros do Instituto Nacional de Emergência Médica, aos locais onde se verificaram acidentes dos quais decorreram ferimentos ou mortes.

QQ – Bem sabiam estes arguidos não lhes ser admitido beneficiarem ou beneficiarem terceiros do conhecimento privilegiado que resultava do exercício de tais funções. Muito menos prestarem informações que sabiam destinar-se a serem utilizadas em desconformidade com a lei.

RR – Os arguidos Augusto, José, Alcindo, Marta, Nuno, Serafim e João, donos, gerentes ou funcionários de agências funerárias, tendo em conta a necessidade de obterem para si ou para as agências que geriam ou representavam proventos económicos superiores aos que resultavam das normais regras de concorrência, tomaram a resolução de, violando as regras inerentes ao exercício das funções, contactarem os funcionários hospitalares e do gabinete médico-legal e ainda dos bombeiros, para que estes lhes fornecessem elementos referentes aos óbitos acabados de ocorrer, quer em instalações hospitalares, quer em casa, quer ainda em locais públicos.

SS – Informações que abrangiam, não só o nome dos falecidos, como o local onde residiam, como ainda o nome e modo de contacto com os familiares directos dos falecidos.

TT – Tudo com vista a se anteciparem às restantes agências funerárias, contactando directamente os familiares, conseguindo obter a encomenda dos serviços fúnebres por parte destes que, fragilizados pelo falecimento, mais facilmente aceitavam as propostas que lhes eram assim feitas.

UU – Muito mais quando, muitas vezes, os arguidos em causa se intitulavam como da “agência funerária do Hospital”, de forma a darem maior credibilidade à acção que empreendiam.

VV – Para conseguirem estes intentos, os arguidos atrás mencionados, proprietários, gerentes e funcionários das agências funerárias, contactavam pessoal do HBA, do GML e dos Bombeiros, propondo-lhes que lhes prestassem as informações necessárias a tal finalidade, sendo que, pelo menos, os arguidos Marta, Nuno, Serafim e João lhes prometeram pagamentos por conta das informações que recebiam.

XX – Os arguidos Amélia, João, António, Miguel e Vítor, tendo acesso aos dados daqueles óbitos, prestaram tais informações, bem sabendo que tal exorbitava e ia contra as funções públicas que desempenhavam, mas visando e conseguindo proventos económicos dessa actividade e/ou levando a que as agências funerárias tivessem tais proventos.

ZZ – Bem sabendo que tais proventos, por violarem as normas legais que regem a actividade de tais agências funerárias, configuravam, também eles, ganhos ilícitos.

AAA – Os contactos foram estabelecidos pelos arguidos das agências funerárias, não só com os arguidos que trabalhavam no HBA, no GML e nos Bombeiros atrás identificados e acusados, mas também com outras pessoas do HBA e GML, que recusaram as propostas que lhes foram efectuadas.

BBB – No exercício da actividade atrás descrita, e no espaço de tempo compreendido entre o ano de 2003 e Novembro de 2006, mas principalmente concentrada no ano de 2005:

CCC – No que se refere à agência funerária “B…”:

O arguido Augusto, seu responsável, logrou que lhe fossem fornecidas informações acerca de inúmeros óbitos. Assim:

DDD – Através de contactos telefónicos que recebeu no seu telemóvel com o nº ….. ou na agência (através do telefone com o nº …..0) obteve diversas informações acerca de óbitos. Assim:

EEE – O arguido António indicou-lhe o nome de pessoas falecidas no HBA ou que ali deram entrada, nas seguintes data e referindo os seguintes nomes:

- 25.03.2005 – Gertrudes…, indicando depois, noutra conversa, a morada da falecida.
- 25.03.2005 – Maria, indicando o número de telefone e residência.
- 25.03.2005 – Filipe...
- 25.03.2005 – José…

FFF – Sendo que estes contactos eram efectuados depois de o arguido João ter fornecido, via SMS, o nome das pessoas falecidas.

GGG – Na verdade, o arguido João enviou para o telemóvel do arguido Augusto, pelo menos, as seguintes mensagens referentes a óbitos de que teve conhecimento no exercício das suas funções no HBA:
- 22.03.2005 – A…
- 22.03.2005 - B…
- 22.03.2005 - C…
- 22.03.2005 – D…
- 24.03.2005 – E…
- 25.03.2005 – F…
- 25.03.2005 – G…
- 25.03.2005 – H…
- 25.03.2005 – I…
- 25.03.2005 – J…
- 26.03.2005 – L…
- 28.03.2005 – M…
- 28.03.2005 – N…
- 28.03.2005 – O…
- 28.03.2005 – P…
- 28.03.2005 – Q…
- 28.03.2005 – R…
- 29.03.2005 – S…
- 29.03.2005 – T…
- 29.03.2005 – U…
- 29.03.2005 – V…
- 01.04.2005 – X…
- 02.04.2005 – Z…
- 26.04.2005 – AA…
- 26.04.2005 – AB…
- 27.04.2005 – AC…
- 04.05.2005 – AD…
- 05.05.2005 – AE…
- 06.05.2005 – AF…
- 06.05.2005 – AG…
- 09.05.2005 – AH…
- 12.05.2005 – AI…
- 12.05.2005 – AI…
- 27.05.2005 – AJ…
- 27.05.2005 – AL…
- 27.05.2005 – AM…
- 30.05.2005 – AN…
- 30.05.2005 – AO…
- 31.05.2005 – AP…
- 01.06.2005 – AQ..
- 02.06.2005 – AR…
- 02.06.2005 – AS…
- 02.06.2005 – AT…
- 06.06.2005 – AU…
- 06.06.2005 – AV…
- 06.06.2005 – AX…
- 20.06.2005 – AZ…
- 20.06.2005 – AAA…
- 20.06.2005 – AAB…
- 20.06.2005 – AAC…

HHH – Também o arguido Vítor informou o arguido Augusto de óbitos:

- no dia 06.06.2005, informou o nome do falecido (Jacinto) e o local onde estava a viver (O centro de apoio de Lagoa), fornecendo o número deste Centro, para onde depois o Augusto telefonou. Por nada se saber ali acerca do óbito, o Augusto telefonou ao arguido Vítor, o qual disse ir tentar apurar o contacto de familiares.

- no dia 16.06.2005, informou o óbito de Joaquim, sua morada e número de telefone, levando a que o arguido Augusto logo em seguida para ali telefonasse, tentando obter o serviço.

III – Igualmente o arguido Ricardo, utilizando o telemóvel do seu colega Manuel… informou o arguido Augusto do óbito de Alan…, ocorrida em 06.06.2006 no Hotel Alvor, informando qual o número do quarto em que estava instalado. O arguido João confirmou depois a chegada do corpo à morgue do HBA.

JJJ – Também no dia 06.06.2006, o arguido Manuel efectuou diversos contactos para o arguido Augusto, informando-o de que ia para uma “paragem” no sítio das Alfarrobeiras. Depois de ali chegar, voltou a telefonar para informar que a pessoa havia falecido e para aguardarem um quarto de hora, a fim de possibilitarem que os bombeiros saíssem do local.

Mais informou que a viúva iria contactar uma outra agência, propondo ao Augusto que ali se deslocasse, a fim de “lhe dar a volta”.

LLL – Em seguida, o arguido Paulo, telefonou para o Augusto, ainda no local, dando-lhe o número de telefone da viúva e o nome do falecido.

MMM – Levando o Augusto a, em seguida, telefonar para o número fornecido e, como se tratando do número de uma cunhada, voltar a telefonar para o Manuel…, o qual lhe refere não ter conhecimento de outros óbitos, o que levou o arguido Augusto a dizer que, assim, têm azar.

NNN – O arguido Augusto, depois de ter conhecimento dos óbitos, contactava pessoal ou telefonicamente os familiares dos falecidos, intitulando-se como representante da agência “de serviço ao hospital”, ou mesmo como se tratando da “agência do hospital” ou da “casa mortuária do Hospital”.

OOO – Tal ocorreu, entre outras vezes, nos dias 31.05.2005 (em que tentou até retirar o serviço a um colega), no dia 08.06.2005 e no dia 09.06.2005.

PPP – No que se refere à agência funerária “M,,,”:

Os seus responsáveis – os arguidos José e Alcindo– receberam informações de alguns dos arguidos que trabalhavam no HBA.

QQQ – Sendo que com essa actividade pretendiam e conseguiram o enriquecimento, quer da agência, quer deles próprios, nomeadamente do Alcindo…, que recebia comissão por cada funeral que conseguisse angariar.

RRR – Assim, o arguido António contactou a agência M----, na pessoa do arguido José:
- No dia 24.03.2004, pelas 16:02, informando o nome de uma falecida – S…, bem assim como o número de telefone da filha.
- No dia 22.04.2005, pelas 08:17, informando o óbito de A….
SSS – No dia 20.03.2005, em conversa que mantiveram, o arguido António referiu estar bêbado com o que o arguido José lhe pagou.

TTT – Por sua vez, o arguido João efectuou os seguintes contactos telefónicos para os arguidos José e Alcindo, nos dias indicados, informando os óbitos das pessoas a seguir indicadas:
- 20.03.2005 – A…
- 22.03.2005 – B…
- 22.03.2005 – C…
- 22.03.2005 – D…
- 22.03.2005 – E…
- 23.03.2005 – F… – com indicação do nº de telefone
- 25.03.2005 – G…
- 25.03.2005 – H…
- 25.03.2005 – I…
- 25.03.2005 – J…
- 25.03.2005 – L…
- 26.03.2005 – M…
- 28.03.2005 – N…
- 28.03.2005 – O…
- 29.03.2005 – P…
- 29.03.2005 – Q…
- 29.03.2005 – R…
- 29.03.2005 – S…
- 30.03.2005 – T…
- 01.04.2005 – U…
- 22.04.2005 – V…
- 22.04.2005 – X…
- 23.04.2005 – X…
- 26.04.2005 – Z…
- 26.04.2005 – AA…
- 26.04.2005 – AB…
- 27.04.2005 – AC…
- 28.04.2005 – AD…
- 28.04.2006 – AE…
- 29.04.2005 – AF… com indicação da morada e número de telefone
- 29.04.2005 – AG…, com indicação da morada e número de telefone
- 05.05.2005 – AH… com indicação da morada
- 05.05.2005 – AI…
- 06.05.2005 – AF…
- 06.05.2005 – AG…
- 09.05.2005 – AH…
- 09.05.2005 – AI…
- 09.05.2005 – AJ…
- 09.05.2005 – AL…
- 10.05.2005 – AM…, com indicação da morada
- 12.05.2005 – AN…
- 12.05.2005 – AO…
- 27.05.2005 – AP…
- 27.05.2005 – AQ…
- 27.05.2005 – AR…
- 27.05.2005 – AS…
- 27.05.2005 – AT…
- 30.05.2005 – AU…
- 30.05.2005 – AV…
- 31.05.2005 – AX…
- 31.05.2005 – AZ…
- 01.06.2005 – AAB…
- 05.06.2005 – AAC…
- 06.06.2005 – AAD…
- 06.06.2005 – AAE…
- 14.06.2005 – AAD…

UUU – Em muitos casos, depois de ter recebido as informações prestadas pelo arguido João, os arguidos Águas e José falavam entre si, ou remetiam-se mensagens com os nomes dos falecidos, por forma a estarem sempre os dois sabedores dos factos e melhor conseguirem contactar os familiares.

VVV – Por via destas informações, Sofia… foi contactada telefonicamente pelo arguido Águas, propondo-se este fazer o funeral da avó daquela, F…, falecida no HBA no dia 05.05.2005, tendo pago cerca de € 1000,00 depois de ter aceite a proposta que lhe foi efectuada.

XXX – Também Ilda---- recebeu telefonema do arguido Águas, a oferecer-se para fazer o funeral da sua mãe, M…, falecida no dia 20.03.2005 no HBA, acabando por aceder à proposta e tendo pago o montante de € 1.388,20.

ZZZ – O arguido José contactou telefonicamente Maria…, a quem propôs efectuar o funeral do irmão desta, S…, falecido no HBA no dia 29.03.2005, ao que aquela acedeu, ascendendo o montante do funeral a € 1.573,00.

AAAA – No dia 06.06.2005, o arguido Ricardo tentou o contacto com o arguido José, para o informar de um óbito de um cidadão de nacionalidade estrangeira ocorrido no Hotel Alvor. Como não o conseguiu contactar, acabou por telefonar ao arguido Augusto, da agência …, nos termos atrás mencionados. Depois, quando é contactado pelo arguido José, informa-o de que outra agência tomou conta do caso, referindo desconhecer de quem partiu a informação.

BBBB – No que se refere à agência funerária “A…”:

A sua responsável e respectivo colaborador – Marta… e Nuno… – anunciaram que gratificariam quem lhes prestasse informações acerca da identidade das pessoas que iam falecendo, nomeadamente no HBA.

CCCC – Assim, entre diversas informações, o arguido João enviou no dia 30.03.2005 para a agência … o nome de um falecido – J…, com a indicação da morada.

DDDD – Os arguidos Marta e Nuno, mesmo depois da instauração destes autos e de aqui terem sido constituídos como arguidos, prosseguiram a sua actividade, mantendo-se junto às urgências do HBA em Novembro de 2006, abordando funcionários daquele Hospital, prometendo-lhes o pagamento de € 200,00 por cada informação que lhes fornecessem acerca de óbitos ali ocorridos.

EEEE – Todas as actividades atrás escritas da agência “A,,,” eram levadas a cabo pelos dois arguidos dela representantes em comunhão de esforços e de intenções, bem sabendo a arguida Marta da actividade do arguido Nuno, beneficiando a sua agência com esta actividade. Também o arguido Nuno ganhava com a actividade, pois que recebia comissão por cada funeral que conseguisse angariar.

FFFF – No que se refere à agência funerária “…”:

Os seus responsáveis e empregados – S… e J… – conseguiram que, com vista a obterem proveitos económicos, lhes fossem prestadas informações privilegiadas acerca de óbitos. Desta feita:

GGGG – A arguida Amélia, prestava ao arguido Serafim informações acerca de óbitos de que tinha conhecimento por via do exercício da sua actividade, bem como dos contactos dos familiares.

HHHH – Assim, no dia 15.03.2004, obteve o arguido Serafim da arguida Amélia Braz a informação de que no HBA havia falecido M… , e do local onde residia.

IIII – Para tal fim, a arguida Amélia fez entrega a um, à data, empregado do arguido Serafim, de um papel com tais referências, o qual contactou os familiares da falecida, a mando do patrão, propondo-lhes a realização do funeral pela agência “”.

JJJJ – Por sua vez, o arguido João mandou para aqueles arguidos mensagens SMS dando conta de óbitos de que teve conhecimento por via das suas funções, nas datas e com as referências seguintes:
- 26.04.2005 – A…
- 26.04.2005 – B…
- 26.04.2005 – C…
- 04.05.2005 – D…
- 05.05.2005 – E…, com indicação da morada

LLLL – Os arguidos Serafim e João, actuando concertadamente, efectuaram pagamentos em dinheiro, em troca de informações prestadas acerca de falecimentos, designadamente, pelo arguido António.

MMMM – No dia 31.03.2005, em conversa telefónica entre ambos mantida, o António referiu ao Miguel que o pagamento por cada informação seria na ordem dos € 130,00, que seria a dividir igualmente pelos dois, caso fossem prestadas as informações.

NNNN – Assim, no dia 05.04.2005, o arguido Miguel telefonou ao arguido Pimenta a referir o nome de José…, que havia falecido, mantendo depois várias conversas, tentando apurar outros elementos que permitissem identificar os familiares.

OOOO – Bem sabia que as informações que prestava se destinavam a ser entregues a agências funerárias.

PPPP – Como bem sabiam todos os arguidos que trabalhavam no HBA ou que exerciam a profissão de bombeiros, que não lhes era lícito prestarem ou incitarem terceiros a prestar as informações que prestavam, utilizando as funções públicas em que estavam inseridos para, aproveitando-se dos especiais conhecimentos que daquelas decorria, auxiliarem terceiros que, por sua vez, violavam também os seus deveres profissionais.

QQQQ – Bem sabendo que não cabia dentro das suas funções informar terceiros, que não os familiares dos falecidos, dos óbitos.

RRRR – Visando com essa actividade obterem, como nalguns casos obtiveram, proventos económicos que também sabiam serem ilícitos.

SSSS – Sendo que também bem sabiam os arguidos das agências funerárias que não podiam, junto das pessoas que exerciam aqueles cargos, solicitar as informações que solicitavam, prometendo em troca benefícios económicos que nalguns casos acabaram mesmo por concretizar.

TTTT – Estando todos os arguidos cientes de que agiam em desconformidade com a lei, praticando actos criminalmente puníveis.

UUUU – Mas levando-os a cabo de forma deliberada, livre e consciente.

Provou-se ainda que:

VVVV – A arguida Amélia, de 45 anos de idade, é divorciada, e reside, com três dos seus quatro filhos, em apartamento arrendado, pelo qual paga € 400 mensais de renda; tem, como habilitações literárias, o 9.º ano de escolaridade, tendo efectuado formação profissional em “Técnicas de Autópsia”, em 2002; dispensada do HBA e GML de Portimão na sequência da instauração do presente processo, continuou a exercer idênticas funções, em regime de avença, no Hospital Distrital de Faro, pelo menos, até Novembro de 2008; descrita em contexto profissional como funcionária esforçada, briosa e com boa qualidade técnica; face aos factos de que é acusada, tende a neutralizar a culpa, por mecanismos de racionalização, que envolvem argumentos justificativos de negação da responsabilidade e negação do dano; foi julgada no processo nº …./06.8TAPTM, do 1º juízo criminal de Portimão, pela prática, em 2006, de um crime de falsidade de depoimento ou declaração, tendo sido condenada, por decisão datada de 04.10.2007, na pena de 230 dias de multa, à taxa diária de € 5;

XXXX – A arguida Marta, de 32 anos de idade, é solteira e, juntamente com a sua filha de 10 anos de idade, integra o agregado familiar dos seus pais, residindo em apartamento a estes pertencente; viveu no Zaire, onde os pais eram emigrantes, até aos 16 anos, regressando nessa altura a Portugal, estabelecendo-se em Lagos, onde o pai começou a exercer actividade como agente funerário; a agência funerária “…” é um projecto familiar, desenvolvido com recurso a capitais alheios, designadamente, financiamento através do Instituto do Emprego e Formação Profissional e empréstimos bancários, encontrando-se em situação económica descrita como difícil; presentemente, a arguida mantém um relacionamento amoroso com um cidadão estrangeiro, prestando apoio à actividade empresarial deste no cultivo e comercialização de fruta; relativamente ao factos referidos no presente processo, o seu sentido crítico é atenuado pela convicção de práticas de concorrência desleal, admitidas tacitamente como inevitáveis para o desenvolvimento da actividade; do seu certificado de registo criminal “nada consta”;

ZZZZ – O arguido Nuno, de 30 anos de idade, é divorciado e até há pouco tempo integrava o agregado familiar de origem, com o qual mantém uma relação forte e intensa; há cerca de cinco meses iniciou um relacionamento marital, encontrando-se a sua companheira grávida; desenvolveu desde muito jovem aptidões específicas para a actividade de agente funerário, tendo como projecto de vida estabelecer-se nesta área, por conta própria; as práticas em causa no presente processo são consideradas pelo arguido como rotineiras e usuais no funcionamento da actividade das agências funerárias; actualmente exerce actividade como repositor no hipermercado Continente, com vínculo precário; foi julgado no processo nº ---/04.3PTBGC, do 1º juízo do T.J. de Bragança, pela prática, em 22.08.2004, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, tendo sido condenado, por decisão datada de 05.04.2005, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 4;

AAAAA – O arguido Serafim, de 63 anos de idade, é casado e pai de três filhos, residindo em casa própria; privilegiou a actividade laboral como forma de melhorar as condições de vida do grupo familiar, tendo prosseguido no negócio funerário iniciado pelo seu sogro, sendo que a implementação favorável no meio, a par do empreendedorismo do arguido permitiram um crescimento e estabilização empresariais expressivos; sofreu, há 4 anos um AVC, exigindo uma recuperação terapêutica prolongada, o que foi determinante para que dois dos seus filhos passassem a exercer funções de modo permanente na agência funerária “Coelho”, encontrando-se o arguido actualmente afastado do exercício de funções operacionais; apresentando um comportamento social de aculturação ao meio socioprofissional que integra, o arguido revela uma valorização distorcida face ao ilícito criminal em causa nos autos, enquadrando-o numa prática inerente à actividade funerária; do seu certificado de registo criminal “nada consta”;

BBBBB – O arguido João, de 49 anos de idade, é casado, mas encontra-se separado da sua mulher, estando a correr processo de divórcio; tem dois filhos, ambos maiores de idade, e uma filha menor, a residir com a respectiva mãe; mantém um novo relacionamento afectivo, perspectivando refazer a sua vida com a actual namorada; reside em casa arrendada; o valor do trabalho e do empreendedorismo foi marcante no seu processo de socialização, tendo iniciado actividade profissional regular após completar um curso geral de mecânica; os factos em causa no presente processo são interpretados pelo arguido como regulares nas práticas da actividade das agências funerárias, motivo pelo qual a sua ilicitude é pelo mesmo relativizada; do seu certificado de registo criminal “nada consta”;

CCCCC – O arguido João, de 45 anos de idade, é divorciado, tendo duas filhas, já adultas; desde há cerca de 6 anos reconstituiu a sua vida familiar, com a actual companheira; o agregado, composto pelo casal, uma filha menor e uma cunhada, reside em casa arrendada, que representa um encargo mensal de € 500; tendo sido dispensado das funções que exercia no HBA e GML, o arguido trabalha, actualmente, como motorista numa agência funerária, auferindo um vencimento de € 600; o presente processo surge para o arguido como factor de stress que, aliado a outras questões desestabilizadoras do seu equilíbrio individual, contribuiu para o estado de descompensação psicopatológica presente: pouco tempo antes do início do julgamento fez uma tentativa de suicídio, mantendo actualmente acompanhamento psiquiátrico; face aos factos em causa nos autos, demarca-se de qualquer intenção criminosa, encarando o seu envolvimento com sentimentos de prejuízo e vitimização; sobre este tema, não valoriza os normativos legais, pela banalização de comportamentos semelhantes na actividade corrente da actividade das agências funerárias; do seu certificado de registo criminal “nada consta”;

DDDDD – O arguido António, de 49 anos de idade, é casado e tem dois filhos; reside com a mulher, em casa arrendada; trabalha nas urgências pediátricas do CHBA, exercendo funções como assistente administrativo principal; com boas aptidões, sociável e comunicativo, detém dos seus relacionamentos e convívios uma representação social de relevo que tende a cultivar e valorizar – neste contexto fomenta nas amizades pessoais um noção de permuta, que colide com aspectos de ética profissional; tende a desvalorizar o seu envolvimento neste processo, integrando-o numa prática corrente em actividades de prestação de serviços fúnebres; do seu certificado de registo criminal “nada consta”;

EEEEE – O arguido Miguel, de 27 anos de idade, é solteiro, mas mantém um relacionamento afectivo há 10 anos, residindo com a companheira junto do seu agregado familiar de origem, em casa própria; revela sentido de responsabilidade e empenho na actividade profissional que exerce, como auxiliar de acção médica, dispondo de situação económica estável; contextualiza o seu envolvimento nos presentes autos em factores relacionados com pressões externas; do seu certificado de registo criminal “nada consta”;

FFFFF – O arguido Vítor, de 41 anos de idade, é solteiro e integra o agregado familiar de origem, do qual nunca se desvinculou; mantém um relacionamento afectivo com perspectivas de consolidação e vivência em comum, encontrando-se a namorada presentemente grávida; é auxiliar de acção médica há mais de 20 anos, desempenhando actualmente funções no serviço de ortopedia do CHBA; desvaloriza os factos em causa nos presentes autos; do seu certificado de registo criminal “nada consta”;

GGGGG – O arguido Manuel, de 53 anos de idade, é casado e tem duas filhas; exerce profissionalmente a actividade de bombeiro, auferindo um vencimento de cerca de € 500 mensais; projecta concluir o 9º ano, aproveitando o programa “Novas Oportunidades” e pretende fazer formação que o qualifique oficialmente como massagista desportivo; relativamente aos factos em causa nos presentes autos, demarca-se de qualquer intenção criminosa e encara este envolvimento com sentimentos de prejuízo e vitimização; do seu certificado de registo criminal “nada consta”;

HHHHH – O arguido Paulo, de 42 anos de idade, é casado e tem duas filhas; o agregado reside em casa de renda económica (bairro municipal); exerce profissionalmente a actividade de bombeiro, sendo descrito em contexto profissional como um bom elemento, exemplar em termos de qualidade técnica e relacionamento interpessoal – desempenha actualmente o cargo de sub-chefe; projecta concluir o 12º ano, aderindo ao programa “Novas Oportunidades”; do seu certificado de registo criminal “nada consta”;

IIIII – O arguido Silva, de 31 anos de idade, é casado e tem um filho, do seu agregado familiar faz ainda parte um filho de anterior relação da sua mulher; reside em casa própria, adquirida com recurso ao crédito; desde 2007, é motorista de pesados da Câmara Municipal de Portimão, auferindo um vencimento na ordem dos € 520 mensais; mantém actividade como bombeiro voluntário, exercendo funções na área da emergência médica e como formador de telecomunicações; não se revê nos factos de que é acusado nos presentes autos; do seu certificado de registo criminal “nada consta”.

1.2. Factos julgados não provados:

a) O arguido Nuno tenha, ou não, exercido funções em diversas agências funerárias, ou que fosse, ou não, funcionário efectivo da agência funerária “…”;

b) O arguido Manuel tenha, ou não, tomado parte na decisão referida em RR) supra;

c) Os arguidos Augusto, José, Alcindo e Manuel tenham, ou não, prometido pagamentos em troca das informações prestadas por funcionários do HBA, do GML ou Bombeiros;

d) Os pagamentos prometidos fossem, ou não, na ordem dos € 150 – € 200;

e) A arguida Carla, funcionária do HBA, tenha, ou não, passado a contactar, a partir de Outubro de 2006, os seus colegas do HBA com vista a fornecerem aqueles elementos ao seu namorado, o arguido Nuno;

f) Nas circunstâncias referidas em AAA) supra, os arguidos tenham, ou não, contactado funcionários de Lares de terceira idade;

g) O arguido Augusto tenha, ou não, feito constar que gratificaria quem lhe prestasse informações sobre falecimentos;

h) Tenha, ou não, sido o arguido João quem forneceu a lista junta a fls. 400, com indicação dos nomes de três pessoas falecidas, ou que a mesma tenha, ou não, sido entregue ao arguido Augusto;

i) O arguido Augusto, ao usar a expressão referida em MMM) supra, quisesse, ou não, com isso significar que nada receberiam aqueles três arguidos pela informação;

j) Os arguidos José Manuel e Alcindo tenham, ou não, anunciado que gratificariam quem lhes prestasse informações acerca dos óbitos que se fossem verificando;

l) O arguido António, no dia 02.05.2005 se tenha deslocado à sede da agência “…”, na Av. João de Deus, nesta cidade, com o propósito de receber pagamentos pelas informações prestadas;

m) Por via das informações recebidas, o arguido Manuel tenha, ou não, contactado Fernando, propondo a sua agência funerária para realização do funeral da mãe daquele, Suzete …, que faleceu no HBA no dia 22.06.2005;

n) Também José… tenha, ou não, sido contactado pelo arguido Manuel que se ofereceu para realizar o funeral do seu tio, A…, falecido em 30.05.2005, no HBA;

o) O arguido Nuno tenha, ou não, contado com a colaboração da sua namorada, a arguida Carla, ou que esta tenha, ou não, fornecido o número de telefone daquele a alguns colegas, informando que por cada informação prestada acerca da ocorrência de óbito receberiam € 200;

p) Esta arguida estivesse, ou não, ciente de que não podia, sob pena de violar as suas obrigações como funcionária de um serviço público, usar a sua influência e os seus conhecimentos para favorecer o companheiro, bem sabendo que tanto a sua actividade como a actividade deste eram ilícitas, apenas por motivos independentes da sua vontade não tendo ocorrido efectiva prestação de informações;

q) A arguida Marta tenha, ou não, fornecido ao arguido Nuno os meios monetários para efectuar pagamentos aos “informadores”;

r) O arguido Serafim tenha, ou não, efectuado pagamentos na ordem dos € 75 à arguida Amélia em troca das informações por esta prestadas;

s) Os pagamentos solicitados pela arguida Amélia dissessem respeito ao embelezamento ou maquilhagem dos cadáveres;

Não se provaram também quaisquer outros factos que com os provados estejam em contradição.

1.3. Fundamentação da decisão da matéria de facto:
Os factos dados como provados resultam da análise crítica de toda a prova produzida, em conjugação e confronto entre si e com as regras de experiência comum, designadamente:

a) no que se refere aos pagamentos exigidos pela arguida Amélia (para vestir os cadáveres e pela realização das autópsias), resulta a convicção do Tribunal dos depoimentos das testemunhas José e João, ambos agentes funerários, que de forma clara e coerente confirmaram a ocorrência de tais factos (nos termos que se deram como provados), sendo certo que também a testemunha Telma (à data funcionária do GML) confirmou a existência de queixas por parte dos agentes funerários quanto a tais pagamentos (o que vem conferir credibilidade às declarações por aqueles prestadas); tais depoimentos são também apoiados pela prova documental constante dos autos, designadamente, a fls. 42 a 44 (cujo teor foi confirmado em audiência); não se divisou, na forma como tais depoimentos foram prestados, a existência de especial animosidade das testemunhas indicadas para com a arguida, nem qualquer outra circunstância susceptível de lançar suspeita sobre a respectiva genuinidade, pelo que o Tribunal aceitou tais relatos como correspondendo à verdade dos acontecimentos;

b) no que se refere à prestação de informações acerca de falecimentos por parte dos arguidos João, António, Miguel, Vítor, Manuel, Paulo e Ricardo, resulta a mesma amplamente demonstrada pelas intercepções telefónicas (abrangendo conversações e mensagens escritas) ordenadas nos presentes autos e oportunamente transcritas, e que constituem os apensos IV, V, VII e VIII, sendo certo que os telefones interceptados vieram a ser apreendidos aos arguidos (nos termos que se deram como provados) e que do respectivo teor resulta inequívoca a natureza das informações transmitidas (de resto, cotejada com as listagens de óbitos constantes dos autos a fls. 155 a 159, 247-248, 317 a 318, 328, 359 a 365, 551 e 1104), como igualmente claro fica que em nenhuma das circunstâncias registadas foi o contacto com os agentes funerários solicitado pelos familiares dos falecidos, antes foi o contacto destes fornecido para que os agentes funerários os contactassem (ora, se o propósito fosse auxiliar esses familiares num momento de aflição, o que seria natural era colocá-los em contacto com a funerária, ou transmitir a esta “o Sr. X deseja recorrer aos seus serviços” – e não incitar os agentes a contactar as famílias, chegando mesmo a recomendar-se que aguardassem a retirada do transmitente da mensagem do local).

Em suma, não tem este Tribunal dúvidas de que tais informações foram prestadas pelos arguidos, nos exactos termos que se deram como provados, tanto mais que, em complemento dos elementos apurados com recurso a intercepções telefónicas, foram prestados depoimentos consentâneos com tais factos pelas testemunhas Ilda, Maria do Rosário, Fernando, Graciana e Sofia, familiares de pessoas falecidas no HBA – todos eles dando conta de que foram contactados pelos agentes funerários sem que tivessem solicitado qualquer contacto prévio (e unanimemente afirmando a convicção de que os seus contactos apenas poderiam ter sido fornecidos pelo “hospital”), e todos manifestando perplexidade perante a rapidez com que foram contactados. Estas testemunhas nenhuma relação mantêm com qualquer dos intervenientes nos autos, prestaram depoimentos coerentes entre si e consentâneos com as regras de experiência comum, aceitando-os o Tribunal como verdadeiros;

c) Já no que se refere a informações acerca de falecimentos prestadas pela arguida Amélia, resulta a convicção do Tribunal do depoimento da testemunha José, agente funerário (tendo exercido funções em várias das agências mencionadas nos autos), que sem pejo admitiu terem ocorrido tais comunicações (quer por parte da arguida, quer por parte do arguido António), ainda que negando ter efectuado qualquer pagamento em troca (limitando-se, quanto a tal aspecto, a referir que se “ouvia dizer” que tais informações eram pagas…) – tal testemunha, pelo evidente conhecimento directo dos factos que possuía, e por se mostrar o seu depoimento consentâneo com o conjunto da prova produzida logrou convencer o Tribunal da efectiva ocorrência dos factos que relatou – apenas se registando que, muito provavelmente, não terá dito tudo quanto sabia;

d) No que se tange a pagamentos recebidos ou prometidos aos arguidos António e Miguel, e efectuados ou prometidos pelos arguidos Marta, Nuno, Serafim e João, resulta a convicção deste Tribunal, em primeira linha, do conteúdo das intercepções telefónicas, a fls. 20 e 22 do Apenso IV (sendo inequívoco o significado da conversa mantida entre os arguidos Pimenta e Miguel a esse propósito – e à qual se seguiu a efectiva transmissão de informações – resultando evidente que ambos esperavam auferir proventos económicos em consequência de tal actuação); por outro lado, as testemunhas Elisabete (amiga da arguida Marta, à qual forneceu o contacto de Margarida), Nelson, Maria Manuela, David e Margarida (todos eles auxiliares de acção médica no HBA ao tempo em que ocorreram os factos em causa nestes autos), prestaram depoimentos dos quais resulta claro que tanto a arguida Marta como o arguido Nuno efectuaram contactos com profissionais do HBA, procurando obter informações sobre falecimentos e anunciando compensações monetárias para o efeito; que estes dois arguidos actuaram concertadamente, resulta desde logo de, como reportado pelas testemunhas, se encontrarem juntos no momento em que tais contactos foram estabelecidos, actuando ambos de forma consonante entre si e sendo certo que a actividade do arguido Nuno era desenvolvida, além do seu próprio interesse, no interesse da arguida Marta e da agência que esta representava. Com tais elementos vêm, ainda, conjugar-se as mensagens enviadas pelos arguidos, documentadas a fls. 1665 a 1667 dos autos. Quanto aos arguidos Serafim e João, convenceu-se o Tribunal de que também eles prometeram (e efectuaram) pagamentos em troca de informações em resultado da análise do documento constante de fls. 949-950, apreendido na agência funerária “C” (cfr. fls. 877) – no qual se mostram descriminados os montantes a pagar, designadamente, ao arguido Manuel, indicando-se o nome de cada falecido à frente da referência a este arguido – em conjugação com o resultado das intercepções telefónicas documentado a fls. 11 a 14 do Apenso V. Decorre de tal apreciação conjugada que o arguido João, sendo receptor das informações fornecidas, por sua vez prestava contas da sua actividade ao seu empregador (o arguido Serafim…), não havendo o mínimo indício de que este rejeitasse tal actuação, pelo contrário, até o depoimento da testemunha José P… (que foi funcionário da agência “…” – cfr. fls. 1854), confirma a sintonia dos procedimentos entre um e outro dos arguidos; quanto a tal questão, também o depoimento da testemunha Elsa (administradora do CHBA, que nessa qualidade conduziu investigações internas a propósito dos factos denunciados nestes autos), pelo que reportou dos contactos tidos com o arguido Serafim, vem confirmar a atitude deste face a tais práticas – daí que o Tribunal se tenha convencido de que gerente e funcionário da agência funerária “…” desenvolveram actividade concertada, na prossecução de interesses comuns (e isso mesmo se deu, pois, como provado);

e) Também os depoimentos prestados pela testemunha Paulo (coordenador do GML de Portimão à data em que ocorreram os factos em causa nos autos) e pela já referida testemunha Elsa (administradora do CHBA), a par dos depoimentos das testemunhas Vítor, Eduardo e Nuno, elementos da Polícia Judiciária que levaram a cabo investigações no âmbito dos presentes autos, contribuíram para a formação da convicção do Tribunal, na medida em que deram conta das denúncias que foram surgindo e das indagações que a propósito efectuaram, tendo mantido contacto com vários dos arguidos – por essa via corroborando os factos por outras vias apurados e ajudando a estabelecer o “pano de fundo” em que os mesmos se desenrolaram;

f) Quanto à ausência de prova de pagamentos ou outra vantagens prometidos pelos arguidos Augusto, José, Alcindo e Manuel, decorre a mesma da fragilidade da prova a este propósito constante dos autos e produzida em audiência – com efeito, pese embora seja evidente, em face dos factos dados como provados, que foram as agências “…” e “…” que mais beneficiaram das informações prestadas por funcionários do HBA, GML e Bombeiros, a verdade é que não se apuraram concretas promessas efectuadas pelos seus responsáveis, não sendo esclarecedoras ou inequívocas as conversações transcritas a fls. 37 do Apenso VIII ou a fls. 6 e 28 do Apenso IV, como igualmente se não mostrou particularmente seguro o depoimento da testemunha Luís (que admitiu estar em litígio com o arguido Augusto) – sobram, em consequência, suspeitas, mas também dúvidas, pelo que resultou tal matéria não provada;

g) Em consequência de tal fragilidade da prova, ficou também por apurar a solicitação ou recebimento de pagamentos ou promessas de pagamentos por parte dos arguidos Amélia (apenas no que se refere a informações prestadas), João e Vítor – sendo certo que prestaram informações e, pelo menos no caso do arguido João, em elevado número, é razoável pensar que não o fariam a troco de coisa nenhuma… Todavia, como o que se exigia no caso é que se produzisse prova positiva acerca de tais factos e a mesma se mostra, como se disse, deveras fugaz, resultaram tais factos não provados;

h) De igual modo, quanto à arguida Carla, a prova produzida não é concludente no sentido de esta arguida ter desenvolvido qualquer actividade junto dos seus colegas tendo em vista a prestação de informações por parte destes, apenas se apurando ser seu “pecado” namorar à data com o arguido Nuno. É pouco, diremos, e o Tribunal não ficou, por isso, convencido;

i) Todos os arguidos se mantiveram, durante o julgamento, em silêncio, com excepção do arguido Paulo (que afirmou ter, numa única ocasião, contactado o arguido Augusto a pedido de um familiar de falecido e com intuito de ajudar essa pessoa – sendo certo que tais afirmações se mostram contraditórias com o teor da conversação mantida, como já acima tivemos ocasião de assinalar), não contribuindo, por isso, de forma alguma para o esclarecimento dos factos, nem, logicamente, para a formação da convicção do Tribunal, que, ante o exercício de tal direito, do silêncio nada extrai – assinalando-se, porém, que tal atitude, em face da prova que em julgamento se produziu, denuncia evidente ausência de arrependimento por parte de qualquer dos arguidos;

j) Quanto às testemunhas de defesa ouvidas em audiência, revelaram-se os seus depoimentos, no essencial, inócuos em face do objecto do processo, já que os factos que relataram em nenhum dos casos se mostram incompatíveis com os demais referidos na acusação (e pronúncia) e, verdadeiramente, nada acrescentam de interesse para a decisão. Ressalva-se, naturalmente, a circunstância de ao julgamento terem sido trazidas testemunhas destinadas apenas a abonar o carácter dos arguidos, cujo contributo útil foi sublinhar o que já resultava dos relatórios sociais oportunamente solicitados;

l) Foram, obviamente, relevantes todos os documentos constantes dos autos, alguns já acima referidos, mas também, designadamente, os de fls. 32, 59, 62, 63, 97, 100, 101, 105, 123 e ss., 160, 246, 249 a 266, 309 a 316, 320 a 322, 396, 401 a 410, 437 a 443, 447 e 450, 464, 493, 556 e 557, 670 a 671, 672 a 676, 681 e 682, 683 a 685, 717 a 730, 740, 742 a 751, 778, 844 a 851, 861, 863 a 867, 879 a 893, 957 a 967, 1119 a 1129, 1360, 1516 a 1527, 1529, 1577, 1584, 1744 a 1751, 1886 a 1893, 2134 a 2150 e 2206 – dos quais, entre outras circunstâncias, resultam os vínculos laborais e funções exercidas pelos arguidos, bem como as respectivas escalas de serviço e os contactos que possuíam uns dos outros, bem como a interligação entre as informações prestadas e os serviços funerários realizados pelos arguidos, complementando o mais que se apurou por outras vias;

m) Tiveram-se, ainda, em consideração os certificados de registo criminal relativos a cada um dos arguidos, bem como o teor dos respectivos relatórios sociais, a partir dos quais se respigaram os factos dados como provados no que se refere às condições pessoais dos arguidos;

Os factos dados como não provados, como já decorre do que acima se disse, resultam da ausência de prova consistente e credível quanto à respectiva ocorrência, não se mostrando possível ao Tribunal alcançar convicção segura quanto à verificação dos mesmos.

2. Poderes de cognição desta Relação e objecto do recurso.
2.1. A abrir diremos que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente que culminam as suas motivações e é por elas delimitado.[1] Mas porque as conclusões são um resumo das motivações,[2] não poderemos conhecer de questões constantes daquelas que não tenham sido explanadas nestas. Às quais acrescem as questões que são de conhecimento oficioso desta Relação enquanto Tribunal de recurso, como no caso dos vícios da sentença ou do acórdão e das suas nulidades que se não devam considerar sanadas, tudo de acordo com o disposto no art.º 410.º, n.os 2, alíneas a), b) e c) e 3 do Código de Processo Penal.[3]

Daí que as questões a apreciar neste recurso sejam as seguintes:

1.ª Pode conhecer-se da decisão proferida pelo Tribunal Colectivo sobre a matéria de facto
2.ª Podendo, deve considerar-se que errou ao julgar como provados os factos enumerados em XX, ZZ, AAA, GGGG, HHHH, IIII, PPPP, QQQQ, RRRRTTTT, UUUU?
3.ª Mesmo que assim não seja, sempre deverá a Arguida / Recorrente ser absolvida da comissão do crime de abuso de poder previsto e punido pelo art.º 382.º do Código Penal?
***
2.2. Vejamos então as questões atrás enunciadas e pela ordem em que o foram. A primeira, lembremo-lo, consistia em saber se podemos conhecer da decisão proferida pelo Tribunal Colectivo sobre a matéria de facto.
Pretendendo impugnar amplamente a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar: [4]
- Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
- As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
- As provas que devem ser renovadas.

Importa levar em linha de conta, quanto à primeira daquelas especificações (isto é, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados), que só é cabalmente cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado.[5]

No que concerne à segunda e à terceira daquelas especificações, quando as provas tenham sido gravadas fazem-se, por referência ao consignado na acta,[6] pela indicação pelo recorrente das concretas passagens em que funda a impugnação.[7] E nesse caso, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.[8] Em síntese, o recorrente tem que indicar cada uma das passagens concretas que servem de fundamento à impugnação (a partir de cada declaração ou testemunho) e ainda onde concretamente se encontra cada uma delas (isto é, a hora, minuto e segundo em que no suporte digital ou em que rotação da cassete se inicia e termina aquela declaração ou testemunho).

Com efeito, versando sobre esta temática, escreveu o Prof. Pinto de Albuquerque que «a especificação das “concretas provas” só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou de obtenção de prova que impõe decisão diversa da recorrida. Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia ou de uma escuta telefónica realizada entre duas datas ou a uma pessoa. Mais exactamente, no tocante aos depoimentos prestados na audiência, a referência aos suportes magnéticos só se cumpre com a indicação do número de “voltas” do contador em que se encontram as passagens dos depoimentos gravados que impõem diferente decisão, não bastando a indicação das rotações correspondentes ao início e ao fim de cada depoimento.»[9] O que não basta é indicar o início e o fim do depoimento onde essas passagens se encontram,[10] pois que, como vimos, a lei exige que se indique as passagens concretas e não os depoimentos propriamente ditos. Ou seja, as frases ou trechos das declarações e / ou dos depoimentos.[11]

Em suma, poderemos com segurança dizer que o ónus de especificação das concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida só é cabalmente cumprido se o recorrente especificar, de entre as faixas de gravação[12] de determinado depoimento, aquelas onde se encontram registadas as passagens relevantes para a reapreciação. Note-se que a razão de ser deste regime, como aliás vem sendo repetidamente julgado pelos nossos Tribunais superiores, está intimamente ligada à seguinte circunstância: «os n.os 3 e 4 do art.º 412.º do Código de Processo Penal limitam o julgamento da matéria de facto àqueles pontos que referem, mas não permitem o julgamento da globalidade dessa matéria de facto.»[13] É, pois, o próprio conceito de recurso, por contraposição ao de julgamento, a fazer a diferença: aqui julga-se o facto, além remedeiam-se eventuais erros desse julgamento.[14]
Por isso é que se não pode dizer que o cumprimento daquelas regras impostas pelo legislador, no sentido que acaba de se apontar, surge como desproporcionado, tanto mais que é o recorrente que, pretendendo a correcção dos erros da decisão da primeira instância, melhor que ninguém sabe indicar os motivos que a hão-de determinar.[15]

Acresce que as especificações consagradas nos n.os 3 e 4 do art.º 412.º do Código de Processo Penal não têm natureza puramente secundária ou formal. Bem pelo contrário, relacionam-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto.[16] Sendo certo que só a sua observância permitirá ao tribunal de recurso conhecer a vontade do recorrente e pronunciar-se sobre um objecto escolhido, não por si próprio, mas por quem não se conforma com uma decisão.

E isto é ainda assim mesmo quando o recorrente indique o início de cada uma das passagens das declarações ou depoimentos prestados no tribunal a quo e que pretende sejam ouvidas (e / ou vistas) pelo tribunal de recurso, pois que, como atrás já dissemos, por definição as passagens são frases ou trechos dessas declarações ou depoimentos que se iniciam num determinado momento e lugar e terminam num outro. No caso, na parte do CD em que indica cada um dos declarantes ou depoentes e a hora, minuto e segundo onde começa e acaba cada uma das passagens das declarações ou depoimentos que se indica para serem reapreciados.[17]

Baixando ao caso sub iudicio, não restam dúvidas de que a Recorrente deu cumprimento ao primeiro dos ónus supra referidos, tanto na motivação como também nas conclusões do recurso, pois que indicou expressamente os factos que impugna por considerar erradamente julgados: os factos enumerados no douto Acórdão como provados em XX, ZZ, AAA, GGGG, HHHH, IIII, PPPP, QQQQ, RRRRTTTT, UUUU. Mas já não procedeu assim quanto ao segundo dos referidos ónus, como veremos.

Lembramos que a Recorrente pretendeu cumprir aquela exigência legal alegando o seguinte, tanto na motivação como nas conclusões do recurso, com referência ao depoimento prestado pela testemunha José Manuel…: «acta de audiência de julgamento, de 18/11/2008, a folhas. 3193 a 3196 dos autos – Vol. 13» (sic).

Assim sendo, fica claro que a Arguida / Recorrente não indicou sequer a localização daquele depoimento no suporte gravado, por referência à acta mas, apenas, esta última referência. É certo que na motivação transcreve o que se supõe[18] ter sido o depoimento concreto da testemunha mas também sabemos que isso é irrelevante. Por um lado, porque desde a reforma processual penal de 2007 deixou de ter lugar a transcrição das passagens dos depoimentos que o recorrente considere imporem decisão diversa da recorrida[19] e, por outro, mesmo que essa transcrição seja feita, sempre terá que ser indicado, nos moldes atrás referidos, o local onde as mesmas se encontram. Ou seja, nunca são as transcrições que relevam e devem ser consideradas (lidas) pelo Tribunal ad quem mas, outrossim, as passagens concretas gravadas desses depoimentos que por este serão atendidas (ouvidas, se apenas tiverem sido objecto de gravação áudio e também visionadas, se tiverem sido objecto de gravação audiovisual). Para melhor apreensão do que vimos referindo, basta hipotizarmos o caso de um recorrente que transcreva inadequadamente um depoimento e cite adequadamente onde o mesmo se encontra no suporte áudio (ou audiovisual),[20] que a resposta será a seguinte: sempre o Tribunal ad quem terá que fazer é ouvir e unicamente valorizar esse depoimento[21] para decidir do eventual erro de julgamento do Tribunal ad quo.[22]

Destarte, não se poderá conhecer do recurso da decisão proferida sobre a matéria de facto em sede de impugnação ampla, tanto mais que, como é sabido, em casos como o presente em que falta a indicação das referidas menções, não só nas conclusões como na própria motivação, não há que formular qualquer convite ao aperfeiçoamento do recurso pois que a própria motivação apresenta deficiências de fundo, por não satisfazer exigências legais imperativas.[23] É que o aperfeiçoamento, neste caso, equivaleria à concessão de novo prazo para recorrer.[24]

Não se podendo conhecer da matéria de facto, porque a Recorrente não cumpriu as exigências legais, ficam resolvidas as duas primeiras questões atrás enunciadas. Poderemos, no entanto, das questões de direito suscitadas no recurso, pois que foi sido observado o prazo legalmente estabelecido para a sua interposição relativamente a essas questões.[25]
***
Apreciemos então a última das questões suscitadas no recurso interposto pela Arguida Amélia, a qual, recorda-se, consiste em saber se, face aos factos provados, esta deveria ser absolvida da comissão do crime de abuso de poder previsto e punido pelo art.º 382.º do Código Penal. E é tempo de conhecermos dessa questão pois que, importa agora dizer, não se detecta qualquer vício ou nulidade no douto Acórdão recorrido de entre os que, como atrás escrevemos, se devesse conhecer ex officio.[26]

Na tese da Recorrente, isso decorreria do seguinte:

XI. Para o preenchimento do tipo legal de crime de abuso de poder, p. e p. exige-se:

a) Que o funcionário abuse de poderes ou viole deveres inerentes às suas funções;

b) Que actue com intenção de obter, para si ou para terceiro, beneficio ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa.
XII. Ora, o facto de a Recorrente ter prestado ao Sr. José Manuel …. as “inconfidências” relativas à existência de falecidos na morgue do hospital e o local de onde provinham, não constitui, por si só, abuso de poderes no sentido de uma instrumentalização dos poderes inerentes para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo.

XIII. Por outro lado, também não constitui incumprimento de deveres funcionais.

XIV. Por outro lado, não se provou o dolo específico, ou seja, não se provou que a Recorrente tivesse qualquer intenção de obter para si ou para terceiro um benefício ilegítimo, nem se provou que tivesse qualquer intenção de causar prejuízo a outra pessoa.

XV. Com efeito, não se provou que a Recorrente tivesse praticado factos susceptíveis de enquadrar o crime de abuso de poder, previsto e punido pelo art.°. 382.º do Cód. Penal.

XVI. Assim, sendo como é, não podia o douto Tribunal a quo condenar a Recorrente pela prática do crime de abuso de poder.

Olhando para o art.º 382.º do Código Penal não temos dúvidas de quaisquer espécie em acompanhar a Recorrente na afirmação de que o tipo de crime em apreço integra tanto aquele elemento objectivo (que o funcionário abuse de poderes ou viole deveres inerentes às suas funções)[27] como também o mencionado dolo específico (que actue com intenção de obter, para si ou para terceiro, beneficio ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa).[28]

Começa a Recorrente por sustentar que a sua conduta não integra aquele elemento objectivo, não tendo realizado uma instrumentalização dos poderes inerentes para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo, tendo-se tratado, antes, de meras inconfidências relativas à existência de falecidos na morgue do hospital e de onde provinham.

O Ministério Público, junto desta Relação de Évora como do Tribunal a quo, não aceita esta tese, aparentemente benigna, da Recorrente, desta ter praticado uma mera inconfidência. Mas uma viagem ao dicionário da língua portuguesa mostraria que afinal nem a tese daquela é benigna nem o desacordo deste tem fundamento.

Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa, da Editora Domingos Barreira, Porto, 4.ª edição, de 1984, página 902, inconfidência é um substantivo feminino que tem o seguinte significado: Falta de lealdade; abuso de confiança; infidelidade; acto de revelar-se segredos de outrem. E segundo o Dicionário de Sinónimos, da Porto Editora, de 1985, página 645, inconfidência é sinónimo de deslealdade; indiscrição; infidelidade; perfídia.

Ora, os factos provados com relevo para apreciar esta questão dizem-nos o seguinte:

A – A 1.ª arguida – Amélia – exerceu desde data indeterminada do ano de 2003 funções na Morgue do Hospital do Barlavento Algarvio, nesta cidade e comarca de Portimão, como técnica de tanatologia, inicialmente ao serviço do Instituto Nacional de Medicina Legal e, depois de 01.05.2004, por conta e sob a direcção do Hospital do Barlavento Algarvio, cessando tal contrato em 12.08.2004.

B – No exercício dessa sua actividade pública – para o que estava habilitada com o curso de auxiliar de tanatologia – competia-lhe coser e vestir os corpos depois de efectuadas autópsias médico-legais e clínicas.

C – Para isso sendo paga pelo Estado.
(…)
RR – Os arguidos Augusto, José, Alcindo, Marta, Nuno, Serafim e João, donos, gerentes ou funcionários de agências funerárias, tendo em conta a necessidade de obterem para si ou para as agências que geriam ou representavam proventos económicos superiores aos que resultavam das normais regras de concorrência, tomaram a resolução de, violando as regras inerentes ao exercício das funções, contactarem os funcionários hospitalares e do gabinete médico-legal e ainda dos bombeiros, para que estes lhes fornecessem elementos referentes aos óbitos acabados de ocorrer, quer em instalações hospitalares, quer em casa, quer ainda em locais públicos.

SS – Informações que abrangiam, não só o nome dos falecidos, como o local onde residiam, como ainda o nome e modo de contacto com os familiares directos dos falecidos.

TT – Tudo com vista a se anteciparem às restantes agências funerárias, contactando directamente os familiares, conseguindo obter a encomenda dos serviços fúnebres por parte destes que, fragilizados pelo falecimento, mais facilmente aceitavam as propostas que lhes eram assim feitas.

UU – Muito mais quando, muitas vezes, os arguidos em causa se intitulavam como da “agência funerária do Hospital”, de forma a darem maior credibilidade à acção que empreendiam.

VV – Para conseguirem estes intentos, os arguidos atrás mencionados, proprietários, gerentes e funcionários das agências funerárias, contactavam pessoal do HBA, do GML e dos Bombeiros, propondo-lhes que lhes prestassem as informações necessárias a tal finalidade, sendo que, pelo menos, os arguidos Marta, Nuno, Serafim e João lhes prometeram pagamentos por conta das informações que recebiam.

XX – Os arguidos Amélia … tendo acesso aos dados daqueles óbitos, prestaram tais informações, bem sabendo que tal exorbitava e ia contra as funções públicas que desempenhavam, mas visando e conseguindo proventos económicos dessa actividade e/ou levando a que as agências funerárias tivessem tais proventos.

ZZ – Bem sabendo que tais proventos, por violarem as normas legais que regem a actividade de tais agências funerárias, configuravam, também eles, ganhos ilícitos.
(…)
BBB – No exercício da actividade atrás descrita, e no espaço de tempo compreendido entre o ano de 2003 e Novembro de 2006, mas principalmente concentrada no ano de 2005:
(…)
FFFF – No que se refere à agência funerária “…”:
Os seus responsáveis e empregados – Serafim e João – conseguiram que, com vista a obterem proveitos económicos, lhes fossem prestadas informações privilegiadas acerca de óbitos. Desta feita:

GGGG – A arguida Amélia, prestava ao arguido Serafim informações acerca de óbitos de que tinha conhecimento por via do exercício da sua actividade, bem como dos contactos dos familiares.

HHHH – Assim, no dia 15.03.2004, obteve o arguido Serafim da arguida Amélia Braz a informação de que no HBA havia falecido Maria do Carmo, e do local onde residia.

IIII – Para tal fim, a arguida Amélia fez entrega a um, à data, empregado do arguido Serafim, de um papel com tais referências, o qual contactou os familiares da falecida, a mando do patrão, propondo-lhes a realização do funeral pela agência “…”.

Assim sendo, é pacífico que os deveres funcionais da Recorrente se limitavam a coser e vestir os corpos depois de efectuadas autópsias médico-legais e clínicas. Pelo que se compreende que para isso era paga pelo Estado. E que fez ela além de cumprir as funções que o Estado lhe confiou? Mais isto:

GGGG – A arguida Amélia, prestava ao arguido Serafim informações acerca de óbitos de que tinha conhecimento por via do exercício da sua actividade, bem como dos contactos dos familiares.

HHHH – Assim, no dia 15.03.2004, obteve o arguido Serafim da arguida Amélia Braz a informação de que no HBA havia falecido Maria do Carmo, e do local onde residia.

IIII – Para tal fim, a arguida Amélia fez entrega a um, à data, empregado do arguido Serafim, de um papel com tais referências, o qual contactou os familiares da falecida, a mando do patrão, propondo-lhes a realização do funeral pela agência “…”.

Posto isto, podemos agora perguntar: agiu a Recorrente com deslealdade, indiscrição, infidelidade e perfídia para com o Estado que nela confiou que se limitasse a coser e vestir os corpos depois de efectuadas autópsias médico-legais e clínicas? Só podendo ter como resposta óbvia a que segue: claro que sim. E quando prestava ao arguido Serafim informações acerca de óbitos de que tinha conhecimento por via do exercício da sua actividade, bem como dos contactos dos familiares, tal como aconteceu, no dia 15.03.2004, acerca da informação de que no HBA havia falecido M…, e do local onde residia, não realizou uma instrumentalização dos poderes inerentes para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo? Face à norma relevante é evidente que maior instrumentalização sua era difícil perante o conteúdo funcional que lhe estava confiado. Que era apenas coser e vestir os corpos depois de efectuadas autópsias médico-legais e clínicas e não também informar os cangalheiros das mortes ocorridas no HBA e da identidade e residência dos respectivos familiares para que a estes acedessem e obtivessem a realização dos funerais, tudo isso contra a prometida prestação de dinheiro.

Pretende ainda a Recorrente que se não provou o dolo específico, traduzido, como vimos, na intenção de obter, para si ou para terceiro, benefício ilegítimo ou causar prejuízo a outra pessoa. Porém, é facto assente que a Recorrente agiu com o propósito de obter para si e proporcionar às agências funerárias benefícios económicos de forma ilícita e, por conseguinte, fica clara a sem razão do recurso, o qual, por isso, que não merece provimento.

Pelo que cumpre agora decidir em conformidade com o atrás referido.

III - Decisão.
Termos em que se acorda negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmar o douto Acórdão recorrido.

Custas pela Arguida / Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) UC´s (art.os 513.º, n.º 1 e 514º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 5 do Regulamento das Custas Processuais).

Évora, 31-05-2011.

(António José Alves Duarte - relator)

(Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz - adjunta)

__________________________________________________
[1] Art.º 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

[2] Idem. Na linha, aliás, do que desde há muito ensinou o Prof. Alberto dos Reis, no Código de Processo Civil, Anotado, volume V, reimpressão, Coimbra, 1984, página 359: «Para serem legítimas e razoáveis, as conclusões devem emergir logicamente do arrazoado feito na alegação. As conclusões são as proposições sintéticas que emanam naturalmente do que se expôs e considerou ao longo da alegação.»

[3] Que assim é decidiu o Supremo Tribunal de Justiça, em Acórdão do Plenário das Secções Criminais, de 19-10-1995, tirado no processo n.º 46.680/3.ª, publicado no Diário da República, série I-A, de 28 de Dezembro de 1995, mantendo esta jurisprudência perfeita actualidade, como se pode ver, inter alia, do Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de Justiça, de 18-06-2009, consultado em www.dgsi.pt, assim sumariado: «Continua em vigor o acórdão n.º 7/95 do plenário das secções criminais do STJ de 19-09-1995 (DR I Série - A, de 28-12-1995, e BMJ 450.º/71) que, no âmbito do sistema de revista alargada, decidiu ser oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito.» Na Doutrina e no sentido propugnado, vd. o Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição actualizada, página 1049.

[4] Art.º 412.º, n.º 3, alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal.

[5] Como refere o Prof. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, página 1121, «só se satisfaz com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado. Por exemplo, é insuficiente a indicação de todos os factos ocorridos entre duas datas ou de todos os factos ocorridos em determinado espaço fechado ou certo aglomerado urbano».

[6] O citado n.º 2 do art.º 364.º do Código de Processo Penal.

[7] Art.º 412.º, n.º 4 do Código de Processo Penal. Segundo o Dicionário da Língua Portuguesa, 6.ª Edição, Porto Editora, página 241, passagem é um substantivo feminino que, entre outras coisas irrelevantes para esta temática, significa «frase ou trecho de um discurso.»

[8] Art.º 412.º, n.º 6 do Código de Processo Penal.

[9] Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, página 1121.

[10] Neste sentido, cfr. o Acórdão da Relação de Évora, de 12-03-2008, disponível http://www.dgsi.pt, de onde se colheu a seguinte … passagem: «não satisfaz o disposto no art.º 412.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, após a revisão levada a cabo pela Lei n.º 48/2007, de 29-8, o recurso em que o recorrente se limite a indicar a que voltas e em que cassete se inicia e acaba a totalidade do depoimento das testemunhas.» No mesmo sentido e também da Relação de Évora, pode ver-se o Acórdão de 24-09-2009, consultável em http://www.dgsi.pt.

[11] Citado art.º 412.º, n.º 4 do Código de Processo Penal.

[12] No caso de gravação em suporte digital (CD ou DVD) ou do número das rotações / voltas, no caso de gravação em suporte analógico (de cassete).

[13] Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29-09-2009 e 18 de Janeiro de 2001, aquele em http://www.dgsi.pt e, este, nos Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 47.

[14] Como referem os Cons.os Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, página. 105, «na verdade — e excepção feita ao recurso de revisão — todos os recursos vêm concebidos na lei como remédios jurídicos e não como instrumentos de refinamento jurisprudencial, o que inculca que aos impugnantes seja pedido (em obediência ao princípio da lealdade processual) que indiquem qual o defeito ou vício de que padece o acto impugnado, por forma a habilitar o tribunal superior a ajuizar do mérito das razões invocadas. Ora é exactamente para isso que serve a motivação: permitir ao recorrente apontar ao Tribunal ad quem o que na sua perspectiva foi mal julgado e oferecer uma proposta de correcção para que o órgão judiciário a possa avaliar.» Trata-se de entendimento pacífico na jurisprudência, como se pode ver no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-12-2005, em http://www.dgsi.pt.

[15] Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 140/2004, de 10 de Março de 2004 – Diário da República, II Série, de 17 de Abril de 2004, quando a versão do art.º 412.º, n.os 3 e 4 do Código de Processo Penal era menos exigente do que a actual.

[16] Acórdão da Relação de Coimbra, de 22-10-2008, em http://www.dgsi.pt.

[17] Neste preciso sentido que há muito temos vindo a decidir, como foi no processo desta Relação de Évora n.º 191/08.2JELSB.E1, relatado pelo ora relator e publicado em http://www.dgsi.pt. Expressamente seguindo esta solução também decidiram, inter alia, os Acórdãos da Relação de Coimbra, de 22-09-2010, no processo n.º 305/08.2TASEI.C1, da Relação do Porto, de 19-05-2010, no processo n.º 179/04.2IDAVR.P1 e da Relação de Guimarães, de 06-12-2010, no processo n.º 569/06.6GAEPS.G1, todos publicados em http://www.dgsi.pt.

[18] O que não iremos confirmar, por tudo o que já se escreveu e irá escrever em seguida.

[19] Neste sentido se pronuncia o Prof. Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª edição, página 1121, como se pode ver do seguinte passo daí retirado: «Nada obsta a que o Recorrente, por sua iniciativa, proceda à transcrição das referidas passagens, mas não tem o dever de fazê-lo (artigo 685.º-B, n.º 2, in fine do CPC, na versão do Decreto Lei n.º 303/2007, de 24.8, por força do artigo 4.º do CPP), sendo certo que mesmo nesse caso o tribunal de recurso procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes.»

[20] O que, como atrás já escrevemos, só poderá ser feito referindo as horas, minutos e segundos onde se encontra essa passagem, por referência ao seu início e o seu fim.

[21] Desconsiderando, em absoluto, portanto, a transcrição que dele tiver sido feita.

[22] Pelo que se da transcrição consta que a testemunha afirmou x e da gravação que disse y, só o que consta da gravação importa. O único relevo que actualmente se vê da transcrição — sempre voluntária, embora — é eventualmente facilitar a exposição ao recorrente e o entendimento ao Tribunal ad quem. Mas naturalmente que se a menção das passagens não tiver sido adequadamente feita, como aconteceu no caso concreto, nunca poderá o Tribunal ad quem conhecer da impugnação ampla da decisão da matéria de facto.

[23] Neste sentido, cfr. os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 15-07-2004, da Relação de Lisboa, de 23-04-2008 e da Relação do Porto, de 12-11-2008, todos consultados http://www.dgsi.pt.

[24] Cfr. os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, de 18-06-2002, publicado no Diário da República, II série, de 13-12-2002 e da Relação de Évora, de 24-09-2009, consultável em http://www.dgsi.pt.

[25] Ou seja, 20 dias subsequentes ao depósito do Acórdão, conforme se alcança do art.º 411.º, n.º 1, alínea b) do Código de Processo Penal — o que resulta da declaração desse depósito, de 15-11-2010, a folhas 4035 e, ainda, do carimbo aposto no requerimento de interposição de recurso, de 06-12-2010, a folhas 4039. Sendo certo que este, tendo sido segunda-feira, foi o primeiro dia útil ao da verificação prazo, pelo que, atendendo ao disposto nos art.ºs 103.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 279.º, alínea e) do Código Civil, torna o acto tempestivo.

[26] Art.º 410.º, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal.

[27] Cfr. Paula Ribeiro de Faria, no Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo III, Coimbra Editora, página 775.

[28] Idem, ibidem, página 780 e o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25-10-2001, tirado no processo n.º 1262/01-5.ª, constante dos Sumários de Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 54, página 130. Além, naturalmente, do dolo genérico, ex vi do art.ºs 13.º e 14.º do Código Penal (cfr. Prof. Paulo Pinto de Albuquerque, no Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, página 905).

http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/8c5cfcef745de233802578cb003d1de8?OpenDocument

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