Acerca de mim

A minha foto
Porto, Porto, Portugal
Rua de Santos Pousada, 441, DE Telefone: 225191703; Fax: 225191701; E-mail: cabecaisdecarvalho@gmail.com

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora - 15.10.2013


Acórdãos TRE
Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
321/12.0TDEVR.E1
Relator: ANA BARATA BRITO
Descritores: ACUSAÇÃO MANIFESTAMENTE INFUNDADA

Data do Acordão: 15-10-2013
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO

Sumário:
I - Os poderes do juiz (de julgamento) sobre a acusação, antes do julgamento, são limitados.

II - O conceito de acusação “manifestamente infundada”, assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate.

III - Mas a alínea d), do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.

IV - Se os factos narrados realizam crime segundo uma corrente jurisprudencial significativa, não pode a acusação ser considerada como manifestamente infundada. [1]


Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Criminal:

1. No Processo n.º 321/12.0TDEVR do 2º juízo criminal do Tribunal Judicial de Évora foi proferido despacho em que se decidiu rejeitar a acusação por crime de desobediência dos artigos 348º, n.º 1, al. a), do Código Penal, e artigos 100°, nº 1, e 106°, nº 1, do D.L. nº 555/99, de 16 de Dezembro, deduzida pelo Ministério Público contra A. e B...S.A., por ser manifestamente infundada

Inconformado com o assim decidido, recorreu o Ministério Público, concluindo que:

“1. A Lei n.º 169/99 de 18/09 é a lei-quadro de competências e regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias que define a base do regime jurídico em causa.

2. 0 art.º 68° da referida Lei prevê as competências do presidente da câmara municipal.

3. 0 art.º 69°, n° 2 prevê expressamente a possibilidade de delegação e subdelegação dos poderes de competência própria ou delegada do presidente da câmara municipal.

4. 0 legislador na Lei 169/99 pretendeu claramente atribuir ao presidente da câmara municipal a decisão de delegar quaisquer das suas competências, sem impor limites, ao contrário do que sucede com as competências da própria câmara municipal, titular de competências indelegáveis.

5. A Lei 169/99 constitui lei de valor reforçado, as quais estão previstas no art. 112°, n°3 da Constituição da República Portuguesa.

6. Ainda que a Lei 169/99 não pudesse ser considerada como lei de valor reforçado nos termos do art. 112°, n°3 da Constituição da República Portuguesa, por ser uma lei que define a base do regime jurídico em causa sempre gozaria da tutela que também é reforçada no n° 2 do art°122° da Constituição da República Portuguesa que estabelece que as leis e decretos-lei têm igual valor, sem prejuízo da subordinação às correspondentes leis dos decretos-lei...que desenvolvam as bases gerais dos regimes jurídicos.

7. 0 DL 555/99 de 16/12, com as alterações introduzidas pelo DL 177/2001 de 04/06 nunca poderá limitar os poderes de delegação e subdelegação previstos na Lei 169/99.

8. A lei habilitante tem de ter o valor hierárquico formal da lei que atribui a competência originária e que no caso em apreço é a Lei 169/99, pelo que apenas esta ou outra de igual grau hierárquico poderia ser a habilitante, o que não sucede manifestamente com o DL 555/99 de 16/12, com as alterações introduzidas pelo DL 177/2001 de 04/06.

9. E se não a pode atribuir por maioria de razão não a poderá retirar.

10. 0 DL 555/99 de 16/12, com as alterações introduzidas pelo DL 177/2001 de 04/06 também não prevê expressamente a delegação da competência que é atribuída ao presidente da câmara municipal nos termos dos art°s 102, n°1, 105°, n°1, 107°, n°1, 109°, n°1, designadamente para embargar obras e trabalhos; ordenar a realização de trabalhos de correcção ou alteração da obra; para ordenar a cessação da utilização do imóvel ou fracções autónomas e para determinar a posse administrativa e execução coerciva respectivamente.

11. 0 art. 68°, n°2 , al. m) da Lei 169/99 atribui competência ao presidente da câmara municipal para embargar e ordenar a demolição de quaisquer obras, construções ou edificações efectuadas por particulares ou pessoas colectivas, sem licença ou com inobservância das condições dela constantes ou de medidas preventivas, de normas provisórias, de áreas de construção prioritária, de áreas de desenvolvimento urbano prioritário e de planos municipais de ordenamento do território plenamente eficazes.

12. A alínea n) do mesmo artigo estabelece que o presidente da câmara municipal tem competência para ordenar o despejo sumário dos prédios cuja expropriação por utilidade pública tenha sido declarada ou cuja demolição ou beneficiação tenha sido deliberada nos termos da alínea anterior e da alínea c) do n.º 5 do art.º 64, mas nesta última hipótese só quando na vistoria se verificar a existência de risco eminente de desmoronamento ou a impossibilidade de realização das obras sem grave prejuízo para os moradores dos prédios.

13. Estas competências são as que também estão previstas no DL 555/99 de 16/12, com as alterações introduzidas pelo DL 177/2001 de 04/06 nos art°s 102°, n°1, 105°, n°l, 106°, n°1, 107°, n.º 1, como supra referido, sendo que como citado no despacho de rejeição da acusação em apreço, não está previsto expressamente naquele diploma a delegação ou subdelegação de competência para tais actos.

14. Porém, aquele diploma não precisa de prever expressamente a delegação de competência ou poderes para aqueles actos porque tal delegação já está prevista no art. 69°, n°2 da Lei 169/99.

15. Estando previstas tais competências e delegação das mesmas na Lei quadro de competências e regime jurídico de funcionamento dos órgãos dos municípios e das freguesias que define a base do regime jurídico em causa, o DL 555/99 de 16/12 com as alterações introduzidas pelo DL 177/2001 de 04/06 nunca poderia limitar ou ampliar aquela disposição legal.

16. A delegação de competência do presidente da câmara municipal de Évora a favor do Vice-Presidente é juridicamente relevante e produz os seus efeitos legais.

17. É válida a ordem emitida no despacho/intimação proferido em nome da CM de Évora, assumido pelo seu Vice-Presidente, no uso das competências que lhe foram delegadas por despacho do presidente da Câmara Municipal, ao abrigo da citada legislação, ordenando aos arguidos a reposição do terreno original, tal como consta dos autos.

18. No mencionado despacho foi concedido para o efeito o prazo de 30 dias úteis a contar da respectiva notificação para cumprimento do ordenado com a advertência de que o desrespeito a tal ordem constitui crime de desobediência nos termos do art.º l00° do DL 555/91 e 348° do Código Penal.

19. Uma vez que os arguidos, devidamente notificados para o efeito nos termos supra citados, tal como resulta da matéria indiciária e acusação a tomar em consideração, não cumpriram a ordem de reposição do terreno em causa, terão cometido o crime de desobediência que lhes é imputado nos presentes autos, pelo que deverão os autos prosseguir com substituição de despacho que rejeitou a acusação, substituindo-o por outro que a receba e designe data para audiência de julgamento.

20. Subsidiariamente se refere que, mesmo que fosse discutível a legalidade do ato administrativo, o momento processual adequado à sua análise, – necessariamente em contraditório – nunca seria no despacho de recebimento da acusação.

21. Assim, na decisão recorrida foram violadas as normas constantes nos art°s 106° e 100° do DL 555/91 e DL 177/2001 de 04/06; 68°, n°2 e 69° da Lei 169/99 de 18/09 e art°348° do Código Penal e ainda o art.º 311.º do CPPenal..

22. Pelo que deve ser dado provimento ao recurso, revogando-se o despacho recorrido e em consequência serem os arguidos julgados pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo art. 348°, n°1, al. a) do Código Penal com referência aos art°s 100°, 106.º e 109°, n°1 do DL 555/9 1 de 16/12 com as alterações introduzidas pelo DL 177/2001 de 04/06 e art.º 11.º, n.º 2 al. a) do CPenal.”.

Os arguidos não responderam ao recurso.

Neste Tribunal, o Sr. Procuradora-geral Adjunto emitiu parecer no sentido da procedência.

Colhidos os Vistos, teve lugar a conferência.

2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:

“Atento o teor da acusação proferida nos autos, constante de fls. 136 e seguintes, verifica-se que aos arguidos é imputada a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348.0, n.º 1, al. a), do C.P., e artigos 100°, nº 1, e 106.°, nº 1, do D.L. n." 555/99, de 16 de Dezembro.

Suportando tal acusação, imputa-se ao arguido, além do mais, a seguinte factualidade:

"Relativamente ao assunto acima referenciado e em cumprimento do despacho do Vice-Presidente de 18.11.2010 e face à decisão do Tribunal que rejeitou a providência cautelar requerida pela vossa empresa, que pretendia suspender a eficácia do Despacho do Sr. Vice-Presidente datado de 14.10.2008, determinando a reposição do terreno original de modo a ser reposta a legalidade urbanística, vimos notificar Vas Exas. que deverão cumprir com os termos dessa intimação, estipulando um prazo adicional de 45 dias para a execução das obras necessárias, de forma a repor o terreno original. De modo a ser reposta a legalidade urbanística vimos notificar V. Exas. que deverão cumprir com os termos dessa intimação, estipulando um prazo adicional de 45 dias para a execução das obras necessárias, de forma a repor o terreno original.

A falta de cumprimento da presente notificação, dentro do prazo fixado poderá constituir crime (. .. ).

Sucede que o arguido A, agindo em nome e representação da sociedade arguida, não efectuou a reposição do imóvel conforme lhe havia sido determinado, no prazo de 45 dias.

Apesar de ter ficado ciente da ordem que foi comunicada à sociedade arguida, da qual era administrador efectivo, de que a mesma provinha de autoridade competente no exercício das suas funções, e das consequências decorrentes do seu não acatamento (. . .).

Ora, tal como decorre desde logo do texto da acusação supra transcrito, não foi o Presidente da Câmara de Évora quem ordenou a reposição do prédio em causa de acordo com o respectivo projecto e ao abrigo do disposto no artigo 106.°, n.º 1, do RGEU, sendo tal acto atribuído ao Vice- Presidente daquela Câmara Municipal.

Ora, sobre a possibilidade de delegação de poderes, rege o artigo 35°, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo que: “Os órgãos administrativos normalmente competentes para decidir em determinada matéria podem, sempre que para tal estejam habilitados por lei, permitir, através de um acto de delegação de poderes, que outro órgão ou agente pratique actos administrativos sobre a mesma matéria. “.

Conclui-se assim, que uma delegação de poderes assenta em três requisitos:

1) Estar suportado na lei (a chamada lei de habilitação);
2) Ser feita entre dois órgãos ou um órgão e um agente;
3) Com base num acto prévio de delegação.

Considerando o caso dos autos, impõe-se concluir pela não verificação do primeiro dos requisitos ora elencados.

Na verdade, tendo presente o teor do diploma em causa - D.L. n.º 555/99, de 16/12 - e concretamente a matéria das medidas de tutela da legalidade urbanística (subsecção III, artigos 102.° e seguintes), facilmente se alcança que o legislador, concedendo a competência para a prática destes actos ao Presidente da Câmara Municipal, não previu expressamente a possibilidade de delegação de tais poderes, à semelhança de outros preceitos do mesmo diploma (a exemplo, artigos 5.°, 8.°, 11.°, 19.°). Assim, a única conclusão a extrair é a de que, nesta matéria, inexiste lei de habilitação e, assim, possibilidade de delegação de poderes, tratando-se de actos reservados à competência exclusiva do Presidente da Câmara.

Perante tal impossibilidade, verifica-se que a ordem dada ao arguido foi dada por quem não tinha poderes para o efeito.

Ante o exposto, a factualidade vertida na acusação não pode integrar a prática de um crime, mormente, o crime de desobediência pelo qual os arguidos vêm acusados.

Dispõe o artigo 311º, n. ° 2, al. a), do Código de Processo Penal, que:

"Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido: de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada; (. .. )".

Por sua vez, o n.º 3, do mesmo preceito legal, prevê as situações em que a acusação se deve considerar manifestamente infundada, referindo, na sua alínea d), a circunstância dos factos narrados na acusação não constituírem a prática de qualquer crime.

Nestes termos, visto que no âmbito dos presentes autos não houve lugar a instrução, ao abrigo da indicada disposição legal, rejeito a acusação pública deduzida pelo Ministério Público, por manifestamente infundada.”

3. De acordo com as conclusões do recorrente, que delimitam o âmbito do recurso, a questão a apreciar consiste em saber se a situação processual configurada nos autos representa um caso de “acusação manifestamente infundada” e, como tal, merecedora de rejeição judicial.

Dito de outro modo, cumpre apreciar se a acusação supra transcrita se enquadra na previsão da alínea d) do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal.

Da resposta afirmativa decorrerá que o juiz de julgamento se conteve nos limites dos poderes de decisão que possui, no momento processual a que se refere o art. 311º do Código de Processo Penal. Referimo-nos à margem de actuação que decorre das “dimensões orgânico-subjectiva e material” do princípio legal e constitucional do acusatório, princípio reforçado na reforma de 1998 (Código de Processo Penal anotado, Vinício Ribeiro, p. 879. Sobre a evolução e actual sentido da norma pode ver-se ainda o Código de Processo Penal anotado por Maia Gonçalves, que teve activa intervenção na versão actual do referido nº 3).

Os casos de acusação manifestamente infundada encontram-se previstos nas três alíneas do nº 3 do art. 311º, cuja redacção (inexistente na versão originária do código) provém da Lei nº 59/98.

Esta nova versão do art. 311º fez caducar a jurisprudência anteriormente fixada pelo Acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/93, no sentido de que a “acusação manifestamente infundada” incluía a rejeição por manifesta insuficiência de prova indiciária.

Actualmente, o único verdadeiro caso de “acusação manifestamente infundada” encontra-se na al. d) (do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal) – “se os factos não constituírem crime” –, já que as situações previstas nas restantes alíneas – quando a acusação não contenha a identificação do arguido, a narração dos factos, as disposições legais aplicáveis ou as provas – configuram casos de nulidade de acusação (assim, Damião da Cunha, RPCC 18, 2 e 3, p. 211).

De todo o modo, sendo a acusação formalmente válida – ou seja, passando na triagem das als a), b) e c) do nº 3 do art. 311º –, trata-se sempre de saber – no caso da alínea d) –, se ela “merece ser discutida”. Ou seja, se há razão para sujeitar a pretensão do Ministério Público a um debate público e contraditório em julgamento ((Damião da Cunha, loc. cit.,, p. 214).

Daí que o conceito de “manifestamente infundada” implique sempre um juízo sobre o mérito da acusação que, embora formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando, por isso, o debate.

O objecto do processo delimitado na acusação, a acusação, compreende uma questão de facto e uma questão de direito, interligadas no “insolúvel círculo lógico” de que fala Castanheira Neves.

Assim, a acusação compreende a descrição dos factos e a indicação dos crimes, ou seja, das normas aplicáveis.

É hoje incontroverso que, no momento a que se refere o art. 311º do Código de Processo Penal, o juiz não pode decidir do mérito da acusação por via da sindicância da avaliação da suficiência dos indícios efectuada pelo Ministério Público.

Da estrutura acusatória do processo decorre que impende sobre o acusador a exposição total do facto e do crime que imputa ao arguido. É ao acusador que cabe a iniciativa da definição do objecto de uma acusação. E, nesta tarefa, não pode ser ajudado nem corrigido pelo juiz, sob pena de violação do modelo acusatório estruturante do processo penal.

Esse modelo impede o desvio do juiz do lugar de terceiro imparcial e supra-partes, na tríade juiz-acusador-arguido.

É a esta imparcialidade que também se refere o art. 6º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, e a estrutura acusatória do processo tem, como se sabe, garantia constitucional (art. 32º, nº 5 da Constituição da República Portuguesa).

Numa abordagem inicial, dir-se-á então que a margem de actuação do juiz de julgamento, no momento em que recebe a acusação, se confinará necessariamente ao enquadramento jurídico dos factos tidos como suficientemente indiciados pelo acusador público. Mas mesmo esta margem de conhecimento, sobre a questão de direito, limitada à valoração jurídica da factualidade imputada pelo Ministério Público, não é irrestrita. Bem pelo contrário.

Os poderes do juiz, sobre a acusação, antes do julgamento, são limitadíssimos. O sentido da jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 12 de Junho de 2013 introduziu-lhes ainda maior compressão. Essa jurisprudência vai no sentido de “a alteração, em audiência de discussão e julgamento, da interpretação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no art. 358º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal”.

Neste acórdão de fixação de jurisprudência discorre-se que o momento para o juiz decidir sobre a qualificação jurídica, “sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza”, é quando se encontra já a julgar o mérito do caso concreto. E que “cada autoridade judiciária terá de actuar no momento processual que lhe compete”.

Em voto de vencido em cuja argumentação nos revemos (a obrigação de acatamento das decisões respeita à jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça e não à argumentação desenvolvida na fundamentação), considerou-se, pelo contrário, que no início da audiência “o tribunal pode corrigir a qualificação jurídica dos factos da acusação e da pronúncia se a correcção for instrumental de qualquer outra decisão que lhe caiba proferir”.

No caso sub judice, não está em causa uma apreciação jurídica dos factos do género “mera alteração de qualificação jurídica”, mas antes um juízo sobre a própria atipicidade da conduta imputada.

Esta hipótese – de atipicidade da conduta imputada – encontra-se contemplada na previsão do art. 311º, nº 3, alínea d), e é fundamento legal expresso de rejeição da acusação, o que altera os dados do problema resolvido na fixação de jurisprudência citada.

Contudo, à interpretação do sentido da norma aplicanda (a alínea d) do nº 3 do art. 311º) não é alheia a compreensão que se assuma do modelo do processo e da concreta delimitação da margem de actuação do juiz, nos moldes expostos, sendo úteis outros elementos de que o intérprete se possa pertinentemente socorrer.

Na verdade, o Ministério Público fixa o objecto do processo, e o objecto do processo é definido pela narração dos factos e a imputação de um tipo e número de crime(s). O juiz de julgamento está absolutamente impedido de mexer nos factos dessa acusação, no momento a que se refere o art. 311º do Código de Processo Penal, e também relativamente impossibilitado de alterar a qualificação jurídica desses mesmos factos.

Assim, não o deverá fazer, quando dessa alteração (da qualificação jurídica) não decorra, imediata e claramente, uma consequência que se repercuta, também imediata e claramente, no desenrolar do próprio processo.

A estrutura acusatória do processo impede que o julgador se confunda com o acusador. O que, ainda dentro da interpretação do acórdão de fixação de jurisprudência a que fizemos referência (restritiva dos poderes do juiz, sobre a acusação, antes do julgamento), mas também ainda ao encontro da visão desenvolvida no voto de vencido na parte que releva aqui, será “manifestamente infundada” apenas a acusação cujos factos narrados não constituam claramente crime.

Dito de outro modo, a alínea d), do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal não visa dar guarida a um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório.

O tribunal é sempre livre de aplicar o direito (princípio da livre aplicação do direito), mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando esta for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.

Ora, a posição defendida no despacho recorrido sobre o mérito da causa, e que levou à rejeição da acusação, apresenta-se como altamente controversa, como o demonstra a jurisprudência de tribunais superiores em sentido oposto.

Dessa corrente jurisprudencial expressiva, que acolhe a posição defendida na sua acusação, dá conta o recorrente: acórdão STA 18-03-2010, acórdão TRP 21-11-2012, acórdão TRL 07-11-2006, acórdão TRC 16-01-85, entre outros.

E uma acusação é o conjunto dos factos e das normas aplicáveis. E se estas integram a acusação, se incorporam o objecto do processo, se fazem parte da discussão a sujeitar a julgamento, a blindagem dos factos incorporados na acusação, decorrente do acusatório, não pode deixar de afectar também os crimes imputados. Daí o regime previsto no art. 358º, nº 3 do Código de Processo Penal, que pôs normativamente termo ao tempo em que o arguido apenas se defendia de factos, quando apenas estes lhe tinham que ser comunicados, pois a acusação eram “os factos” e não “o crime”

No presente caso, não é inequívoca a tese da atipicidade da conduta imputada, prosseguida na decisão recorrida. Esta posição encontra-se, para os efeitos que agora interessam, altamente neutralizada pela jurisprudência existente em sentido contrário. E se os factos narrados na acusação constituem afinal crime segundo uma corrente jurisprudencial significativa, não pode aquela ser considerada como manifestamente infundada. Razão pela qual o despacho recorrido deve ser substituído por outro, que receba a acusação, sujeitando-a ao debate público e contraditório do julgamento, resolvendo-se oportunamente, e livremente, a questão de facto e a questão de direito, na sentença.

4. Face ao exposto, acordam as juízas da Secção Criminal em julgar procedente o recurso, anulando-se a decisão recorrida, que deverá ser substituída por outra que receba a acusação.

Sem custas.

Évora, 15.10.2013

(Ana Maria Barata de Brito)

(Maria Leonor Vasconcelos Esteves)
_________________________________________________
[1] - Sumariado pela relatora.
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/a447d2b470d54dff80257c0500362a0f?OpenDocument

Pesquisar neste blogue