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terça-feira, 22 de outubro de 2013

INSOLVÊNCIA DOLOSA RECONHECIMENTO JUDICIAL INSOLVÊNCIA PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO - Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra - 02.10.2013


Acórdãos TRC
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
253/05.8TAPMS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CACILDA SENA
Descritores: INSOLVÊNCIA DOLOSA
RECONHECIMENTO JUDICIAL
INSOLVÊNCIA
PRESCRIÇÃO DO PROCEDIMENTO CRIMINAL
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO

Data do Acordão: 02-10-2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE PORTO DE MÓS (1.º JUÍZO)
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 227.º, N.ºS 1, ALÍNEAS A) E B), E 2, E 120.º, N.º 1, ALÍNEA A), AMBOS DO CÓDIGO PENAL

Sumário: I - Tanto na actual como na antiga redacção do DL 48/95, de 15 de Março, sem reconhecimento judicial de insolvência o agente não pode ser perseguido pelo crime de insolvência dolosa.
II - Assim, independentemente da data em que tenham sido praticados os actos integradores daquele ilícito penal, o prazo de prescrição do procedimento criminal não pode começar a correr antes da declaração de insolvência, por a tal obstar o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 120.º do Código Penal.


Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na secção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra:
I – RELATÓRIO
No processo supra identificado, foi submetido a julgamento A..., completamente identificado nos autos, vindo a final a ser condenado: pela prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de insolvência dolosa, previsto e punido pelo artigo 227º, n.º1, alíneas a) e b) e n.º 2, do Código penal, na redacção anterior ao Decreto-lei n.º 53/2004, de 18 de Março, na pena de 280 (duzentos e oitenta) dias de multa, à taxa diária de €10,00 (dez euros), o que perfaz o montante total de €2.800,00 (dois mil oitocentos euros).
Foi ainda o mesmo arguido condenado na pena acessória de interdição de exercer a actividade de gerente ou equivalente pelo período de dois (2) anos, a contar do trânsito em julgado da presente sentença, nos termos do artigo 100º, n.ºs 1 a 3, do Código Penal.
*
Inconformado com o assim decidido, veio o arguido interpor recurso que despediu com longas conclusões que a seguir se transcrevem,
Conclusões:
1. O arguido foi condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, do crime de insolvência dolosa previsto e punido pelo artº 227º, nº 1, alíneas a) e b) e nº2 do Código Penal, na redacção anterior ao Decreto-lei nº 53/2004 de 18 de Março, na pena de 280 dias de multa, à taxa diária de € 10,00 e na interdição de exercer a actividade de gerente ou equivalente pelo período de dois anos, a contar do trânsito em julgado da sentença, nos termos do artº 100º, nº 1 a 3 do Código Penal.
2. O arguido não se conforma com a decisão proferida.
3. Por um lado, considera que existe erro na apreciação da prova, por outro, que não se verifica a circunstância agravante prevista no nº 2 do artº 227° do Código Penal e por último, considera incorrectamente julgados os pontos 29, 32, 33, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43 e 44 da matéria de facto provada.
4. Na fundamentação da decisão de facto, a Meritíssima Juiz "a quo" classifica de "esquema" (pag.15 da sentença) a conduta do arguido, concluindo (pag.16) que "todo o comportamento tido pelo arguido e espelhado na factualidade supra descrita denuncia a vontade de fazer desaparecer e dissimular o património e a contabilidade da sociedade falida, com o intuito de prejudicar os credores da mesma, impedindo que conseguissem obter a cobrança dos seus legítimos créditos à custa dos bens daquela, bem sabendo que lesava os legítimos interesses daqueles e lhes causaria, como causou, prejuízos".
5. Lida a matéria de facto e a sua fundamentação, afigura-se-nos que a Meritíssima Juiz alicerça tal conclusão, no facto do arguido em representação da falida ter celebrado em 1 de Janeiro de 2002, com a sociedade B..., S.A., o contrato de trespasse referido nos pontos 21, 22, 23, 24, 25 e 26 da matéria de facto provada.
6. É verdade que o arguido em representação da falida celebrou tal contrato de trespasse.
7. Mas daí não decorre e não decorreram as conclusões plasmadas nos pontos 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42 e 44.
8. Primeiro que tudo, à data em que foi celebrado o contrato de trespasse - 1 de Janeiro de 2002 - não tinha sido requerida a falência da O..., Lda., o que apenas sucedeu em 15 de Março de 2002.
9. Não podendo por isso, retirar-se da celebração do contrato de trespasse que o arguido actuou com o propósito de fazer desaparecer e dissimular o património da sociedade falida, no intuito de prejudicar os credores da sociedade.
10. O contrato de trespasse, conforme resulta dos pontos 21 a 26 da matéria de facto provada, importava, como é natural num contrato de trespasse, a venda do estabelecimento comercial e industrial da O..., Lda.
11. Mas naquele contrato, estipulou-se ainda, que os direitos e obrigações relacionados com fornecedores e clientes, bem como os compromissos laborais integravam o contrato, assegurando-se aos trabalhadores a manutenção dos direitos adquiridos, nomeadamente os inerentes à sua antiguidade.
12. E de facto, assim sucedeu.
13. Embora não conste da matéria de facto provada e deveria constar, os únicos credores da falida eram a Caixa de Crédito Agrícola Mutuo da Batalha; a Fazenda Nacional e a Segurança Social.
14. Sendo certo que em relação a estas duas últimas entidades à data da declaração da falência o pagamento estava a ser pontualmente cumprido através do Plano Mateus.
15. Nenhum fornecedor ou credor reclamou qualquer crédito.
16. O que só pode significar obviamente que a trespassária B..., S.A., em cumprimento do sobredito contrato de trespasse, pagou aos fornecedores e aos trabalhadores.
17.De resto, em relação a estes últimos, tal facto consta do ponto 20 da matéria de facto provada.
18. Não identificando a sentença os credores da falida, não os respectivos prejuízos, não pode concluir como faz nos pontos 36,39,40, 41 e 42.
19. Os bens da falida não só não desapareceram, como foram todos apreendidos e vendidos.
20. Pelo que, falece o requisito constante da alínea a) do artº 227º do Código Penal.
21. Igualmente se deverá ter por não preenchida a alínea b) do mesmo preceito.
22. É que conforme daquela alínea, a ocultação de documentos contabilísticos apenas releva para efeito de simulação patrimonial inferior à realidade.
23. Ora não resulta da matéria de facto provada que a alegada ocultação da contabilidade tenha visado uma simulação patrimonial inferior à realidade.
24. De resto, não se refere na sentença qual a contabilidade ocultada, com a qual tenha o arguido visado uma simulação patrimonial inferior à realidade.
25. Por outro lado, e conforme decorre do n.º 1 do citado artº 227° do CP, qualquer dos actos constantes das várias alíneas que integram aquele número, têm de visar o prejuízo dos credores.
26. A verdade é que todo o património da falida foi apreendido e vendido.
27. Se não fosse o contrato de trespasse feito pelo arguido, por força do qual, a sociedade trespassária assumiu a obrigação de pagamento aos fornecedores da falida e aos trabalhadores, os credores da falida não eram só a Fazenda Nacional, a Segurança Social e a Caixa de Crédito Agrícola Mutuo da Batalha.
28. Àqueles juntar-se-iam os fornecedores e os trabalhadores.
29. No caso dos trabalhadores, a massa insolvente teria de pagar para além dos salários, as indemnizações correspondentes a mais de três décadas de antiguidade. E estes teriam privilégio em relação aos demais credores.
30. Isto vale para dizer, que a alegada conduta do arguido, não prejudicou os credores, antes pelo contrário, pois, não só o património foi apreendido e vendido, como, por força do contrato de trespasse, não houve reclamações de fornecedores e trabalhadores.
31. Por outro lado, o arguido foi condenado pela circunstância agravante do n.o 2 do artº 227º do Cód. Penal.
32. Da decisão que declarou a falência da O..., Lda., não resulta que a falência tenha sido declarada falida em consequência da prática de qualquer dos factos a que se referem as alíneas a) e b) do nº 1 do art.º 227° do Código Penal.
33. Com efeito, lê-se naquela sentença de declaração de falência que a sociedade se encontra numa situação de insolvência, por se encontrar impossibilitada, por carência de meios financeiros, de cumprir pontualmente o passivo.
34. Esta a razão da declaração de falência. Não se referindo, pois, aquela sentença a qualquer dos factos previstos nas alíneas a) e b) do n.o 1 do artº 227° do Código Penal.
35. E assim sendo, como é, está afastada a circunstância agravante do nº 2 do art.º 227º do Código Penal.
36. O Tribunal entendeu reportar tal circunstância agravante ao ponto 38 da matéria de facto provada.
37. Contudo, para que tal circunstância se verificasse, era necessário, tal como resulta do nº 2 do artº 227º do C.P., que a falência tivesse sido declarada falida em consequência da prática de qualquer dos factos a que se referem as alíneas a) e b) do nº 1 do artº 227° do Código Penal.
38. O que não sucedeu.
39. Pelo que não pode o arguido ser condenado por tal circunstância agravada, mostrando-se violado o nº 2 do artº 227° do Código Penal.
40. Por último, o arguido considera incorrectamente julgados os pontos 29, 32, 33, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 43 e 44 da matéria de facto provada.
41.Impondo a decisão não provados, quanto ao ponto 29 da matéria de facto, os depoimentos de C...; D...; E...; F...e G...; quanto aos pontos 32 e 33, os depoimentos de H...; E... e F....
42. Quanto aos pontos 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42 e 43, tratam-se de conclusões sem sustentação fáctica.
43. Entende ainda o recorrente que da matéria de facto deveriam constar dois factos que resultaram da prova produzida em julgamento.
44. Por um lado, que o transporte dos equipamentos foi efectuado durante vários dias, em pleno dia, à vista de toda a gente.
45.Tal resulta dos depoimentos das testemunhas C... C...; I...; D...; E...; F...e G...
46. Por outro, que na porta das instalações da falida ficou afixado um escrito com a identificação do local para onde fora feita a mudança.
47. Tal resulta do depoimento das testemunhas C...; D... e F....
48. Todas as declarações das testemunhas encontram-se registadas através do sistema de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso no tribunal, tendo o CD sido registado sob o nº 199712, no Livro de Registo do 1º juízo.
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Respondeu ao recurso o digno Magistrado do Ministério Público concluindo:
1- O arguido ao celebrar o contrato de trespasse, fez desaparecer o património da O..., Lda”, tendo com tal actuação intenção de prejudicar os credores, especialmente, a “Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Batalha”.
2 – A “ O..., Lda” foi declarada falida, pois por força do contrato de arrendamento e do contrato de trespasse celebrados pelo arguido, ficou desprovida de meios de produção e, deste modo, impossibilitada de gerar receita e fazer face às suas obrigações já vencidas.
3. Razões pelas quais deverá ser mantido o decidido na douta Sentença.
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O recurso foi recebido e ordenada a sua remessa a este tribunal.
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Já nesta instância, o Ex. mo Procurador Geral Adjunto emitiu Parecer de improvimento.
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Cumprido o disposto no artº 417º nº2 do CPP, veio o arguido “ex nuovo” levantar a questão prévia da prescrição, defendendo que ela se deve contar a partir da outorga do contrato de trespasse, 1 de Janeiro de 2002, sobre o qual à data desta resposta, que deu entrada em tribunal em 12 de Junho de 2013, já haviam decorrido mais de onze anos e seis meses, sendo o prazo prescricional era de dez anos e seis meses, por força do artº 118º nº1e 121º nº3 ambos do CPP.
Quanto ao mais reiterou o que já havia alegado aquando do recurso.
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No despacho liminar, a relatora entendeu que não se verificava qualquer questão prévia que obstasse ao conhecimento do mérito do recurso.
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Corridos os vistos e realizada a conferência, cumpre agora apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO
A sentença recorrida julgou os seguintes
Factos provados:
Da pronúncia
1. O..., Lda. era uma sociedade comercial por quotas, matriculada na Conservatória do Registo Comercial da Batalha sob o n.º (...), com o NIPC (...).
2. Tinha sede no (...), freguesia e concelho da Batalha.
3. O seu objecto era a indústria metalo-mecânica.
4.Desde a fundação desta sociedade, em 17/06/1972, que o arguido é sócio-gerente da mesma.
5.Desempenhava funções como contactar clientes, proceder aos fornecimentos, dar instruções aos empregados, celebrar e/ou rescindir contratos de trabalho, fazer os contactos com fornecedores e ordenar o pagamento dos salários.
6.Em 20 de Dezembro de 2001, a sociedade comercial denominada B..., Lda., de que o arguido era sócio-gerente, transformou-se em B..., SA.
7. Esta sociedade está registada na Conservatória do Registo Comercial da Batalha sob o n.º (...).
8. Tem sede na (...), freguesia e concelho da Batalha.
9. O seu objecto social é o fabrico, importação e exportação de máquinas, equipamentos e utensílios agrícolas e jardinagem, suas partes e acessórios.
10. A partir de 23 de Outubro de 2002, o arguido foi nomeado administrador único da referida sociedade.
11. Na data de 06 de Dezembro de 2002, a sociedade O..., Lda. tinha dívidas à Fazenda Nacional nos montantes de €226.088,00 e €71.883,04.
12. Dívida à Segurança Social no valor de €563.363,87.
13. E à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Batalha, CRL no valor de €1.195.013,03.
14. Em documento elaborado pela sociedade falida, datado de 31/12/2001, intitulado “Inventário Físico Final” consta uma relação de bens móveis no valor de €385.555,96.
15. No âmbito dos autos de falência n.º298/2002, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Porto de Mós, por sentença datada de 06 de Dezembro de 2002, transitada em julgado, foi O..., Lda. declarada insolvente.
16. Na data de 31 de Março de 2003, J..., liquidatário judicial da referida sociedade deslocou-se às instalações da sociedade.
17. E verificou que inexistiam quaisquer bens móveis, nomeadamente equipamentos fabris e industriais, máquinas de produção metalomecânica, matérias-primas e mercadorias, bem como pessoas.
18. Todos os bens móveis acima referidos foram deslocados para as instalações da B..., SA, sita no (...), (...), por ordem do arguido, em data não concretamente determinada do ano de 2002.
19. Em data não concretamente determinada, o arguido propôs a todos os trabalhadores da O... que começassem a trabalhar para a B..., SA, sem perda das regalias sociais.
20. O que estes aceitaram, começando a trabalhar por conta e sob ordem desta última sociedade, que procedia ao processamento dos salários, emitia recibos e procedia aos descontos.
21. Por escrito datado de 01 de Janeiro de 2002, o arguido, na qualidade de gerente da sociedade falida, esta como “trespassante” e administrador da sociedade B..., SA, esta como “trespassária”, lavrou documento intitulado “Contrato de Trespasse”.
22. No referido escrito a sociedade falida “dá de trespasse” à sociedade B..., SA “o estabelecimento comercial e industrial, destinado ao fabrico e comercialização da maquinaria agrícola e seus componentes”.
23. Bem como “a fruição do imóvel em que se situa as instalações da empresa, bem como os utensílios, mercadorias e todos os demais elementos que integram o estabelecimento”.
24. Mais se escreveu que “os direitos e obrigações relacionados com fornecedores e clientes, o equipamento, o restante património da primeira outorgante e o material em stock integram o contrato”.
25.E que “os compromissos laborais da primeira outorgante são incluídos no presente contrato, pelo que aos trabalhadores é assegurada a manutenção dos direitos adquiridos nomeadamente os inerentes à sua antiguidade na O...”.
26.Ainda se escreveu que “o preço do trespasse é de €765.000 e o pagamento será feito em noventa prestações mensais, iguais e sucessivas de €8.500 cada uma, vencendo-se a primeira em 31 de Janeiro de 2002”.
27.Por outro escrito, datado de 01 de Janeiro de 2002 foi lavrado documento intitulado “Contrato de Arrendamento”, assinado pelo arguido na qualidade de gerente da sociedade falida, esta como primeiro outorgante e administrador da B..., SA, esta como segunda outorgante.
28. Através do qual a sociedade falida arrenda o prédio urbano composto de conjunto de construções destinadas à indústria, que confronta de norte com (...), de nascente com serventia e de sul e poente com caminho, com a área aproximada de 4.024m2, inscrito na matriz urbana da Repartição de Finanças da Batalha sob o n.º (...) e descrito na Conservatória do Registo Predial da Batalha sob o n.º (...), da Batalha, pelo preço anual de €48.000, pagos em duodécimos mensais de €4.000.
29. A sociedade B..., SA não entregou qualquer valor patrimonial à sociedade falida em consequência dos escritos acima referidos.
30.O arguido transferiu da sociedade falida para B..., SA, a produção e criação de produtos e respetiva comercialização.
31. A sociedade B..., SA tem os mesmos clientes, os mesmos fornecedores, os mesmos trabalhadores e as mesmas máquinas da sociedade falida.
32. O arguido encobriu a contabilidade da sociedade falida e deu-lhe destino desconhecido.
33. E a mesma não se encontrava nas instalações da sociedade falida em 31 de Março de 2003.
34. Após ter sido interpelado pelo liquidatário judicial e pelo Tribunal de Porto de Mós para entregar os documentos contabilísticos da sociedade falida, o arguido entregou, designadamente os modelos 22 dos anos de 1999 e 2000, balanço de exercício do ano 2000 e inventário de existências dos anos de 1999 e 2000.
35. Não existiam valores nas contas bancárias que foram abertas em instituições em nome da falida.
36.Os credores da sociedade falida ficavam, como ficaram, impedidos de obter a cobrança coerciva dos seus créditos à custa do património da empresa.
37.O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.
38. As ações supra descritas levadas a cabo por si, concretizadas na dissipação e dissimulação do património da sociedade falida foram causa direta e necessária da posterior decisão judicial de declaração de insolvência.
39. Bem como impediram qualquer credor de receber os seus créditos.
40. Atuou com o propósito de fazer desaparecer e dissimular o património da sociedade falida, de que era sócio-gerente, no intuito de prejudicar os credores da sociedade.
41. E impedir que os mesmos conseguissem obter a cobrança coerciva dos seus legítimos créditos à custa dos bens (ativos) da sociedade falida, nomeadamente através de penhora.
42. Bem sabia que as condutas por ele assumidas e praticadas lesavam os legítimos interesses dos credores da sociedade acima referida e lhes causariam, como causaram, graves prejuízos, impedidos que ficaram de cobrar os seus créditos.
43. Sabia que tinha o dever de apresentar os documentos contabilísticos da sociedade falida e deu-lhe destino desconhecido.
44. Bem como sabia que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.
45. Tinha capacidade de determinação segundo as prescrições legais.
Da contestação
46. A declaração de falência da O..., Lda. foi requerida, através de petição inicial entrada em juízo a 15 de Março de 2002.
47. Os montantes em dívida à Fazenda Nacional e supra referidos em 11 e 12 diziam respeito a quatro processos de execução fiscal, a saber: processo n.º1333-91/000530.4 e apensos; o processo n.º1333-98/100346.1 e apensos; o processo n.º1333-93/100013.6 e apensos; e o processo n.º1333-01/100224.4 e apensos.
48. No processo n.º1333-91/000530.4 e apensos o montante em dívida era de €113.150,40, incluindo €45.152,05 de juros de mora, €554,82 de custas e €1.227,04 de taxa de justiça.
49. No processo n.º1333-98/100346.1 e apensos o montante em dívida era de €157.811,43, incluindo €78.871,86 em dívida à Caixa de Previdência/CRSS e juros de mora, €531,72 de custas e €1.426,56 de taxa de justiça e €36.693,23 de juros de mora.
50. O valor em dívida à Caixa de Previdência/CRSS supra referido em 49 respeita ao período de 1988 a 1993.
51. No processo n.º1333-01/100224.4 e apensos o montante em dívida era de €41.517,45, incluindo €3.554,65 de juros de mora, €117,11 de custas e €578,61 de taxa de justiça
52. Em 28/10/2005, a sociedade falida era credora de IVA no valor de €153.409,84.
53. No montante em dívida à Segurança Social e supra referido em 13 estão incluídos os juros de mora no montante de €204.004,51.
54. No montante em dívida à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Batalha, CRL e supra referido em 14 estão incluídos juros de mora no montante de €263.055,46.
55.Até Fevereiro de 2002, a sociedade falida pagou 49 prestações, no valor unitário de €1.509,76, à Segurança Social ao abrigo do Decreto-lei n.º124/96 – Plano Mateus.
56. Até Novembro de 2002, a sociedade falida pagou 70 prestações à Fazenda Nacional ao abrigo do Decreto-lei n.º124/96 – Plano Mateus.
Das condições pessoais e sócio-económicas do arguido
57. O arguido está divorciado e vive sozinho em casa arrendada, suportando mensalmente a quantia entre €150,00 a €200,00 de renda.
58. O arguido está reformado, auferindo mensalmente de pensão a quantia aproximada de €1.000,00.
59. O arguido é administrador da B..., SA, auferindo remuneração mensal de, pelo menos, €500,00.
60. Tem dois filhos, maiores de idade e independentes.
61. Não tem quaisquer outros encargos mensais fixos.
62. Não possui bens imóveis, nem tem quaisquer outros bens móveis
63. É licenciado em engenharia de máquinas.
Dos antecedentes criminais
64. São desconhecidos em juízo antecedentes criminais ao arguido.
Factos Não Provados
Com relevância para a decisão da causa ficaram por provar os seguintes factos:
Da pronúncia
a) O mencionado em 18 dos “factos provados” ocorreu no mês Março.
b) O arguido não entregou ao liquidatário judicial qualquer documento contabilístico.
Da contestação
c) B..., SA pagou sempre os valores acordados à O..., Lda.
*
Fundamentação da Decisão de Facto
A convicção do Tribunal formou-se, concreta e globalmente, na apreciação e análise crítica da documentação constante dos autos – certidões de fls.1 a 50, 209 a 213, 241 a 219, 523 a 560, 1027 e ss. e os documentos de fls.61 a 81, 82 a 86, 90 a 116, 117 a 184, 188 a 200, 265 a 270, 272, 278 a 285, 287, 290 a 293, 774 a 776, 780 a 783, 817, 819 a 828, 876, 879 a 893 –, conjugada com a prova testemunhal produzida em sede de audiência de discussão e julgamento e as regras da experiência comum, tudo nos termos do disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal.
Assim, a prova dos factos constantes em 1 a 5 e 6 a 10 dos “factos provados” considerou o Tribunal as certidões da Conservatória do Registo Comercial junta aos autos a fls.209 a 213 e 214 a 219, em articulação com as declarações prestadas pelo arguido A... que, corroborando o teor das mesmas, confirmou a sede, o objeto social das referidas sociedades, a alteração de sociedade por quotas para sociedade anónima da B..., assim como assumiu ter sido gerente da O... desde a sua fundação e, após a transformação da B... em sociedade anónima passou a ser o administrador único.
Relativamente às tarefas desenvolvidas pelo arguido na qualidade de gerente da sociedade falida (facto provado n.º5), além das regras do normal acontecer, teve-se ainda em consideração as declarações iniciais prestadas pelas testemunhas N..., C..., I..., H..., G..., E..., F..., D... e L..., todas ex-trabalhadores da sociedade falida e atualmente trabalhadores da B..., SA, que aquando instadas se conheciam o arguido, o identificaram como sendo o “seu patrão” desde o início em que cada um começou a exercer funções para a sociedade falida. Mais esclarecerem que transitaram para a B..., SA a convite do arguido.
É certo que o arguido nas suas declarações narrou que a sociedade falida tinha um organigrama e os diretores tinham autonomia de tomar decisões no seu departamento, contudo atuavam sempre de acordo com o plano anual, aprovado em reuniões de gerência. Ora, mesmo a crer-se como verdadeiras tais declarações, as mesmas não abalam a convição do Tribunal quanto às funções desempenhadas pelo arguido. Isto porque, as ordens e instruções dadas em primeira linha provinham sempre do arguido. Como o próprio disse, a diretoria atuava de acordo com o plano anual, aprovado pela gerência!
Os montantes em dívida da sociedade falida à data de declaração de falência (factos provados n.ºs 11 a 13), advieram da análise conjunta das certidões juntas aos autos a fls.1 a 20,1061 a 1100 e dos documentos de fls.774 a 776 e 783, com o depoimento prestado pela testemunha J..., bancário a exercer funções na Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Batalha, que, dentro dos seus conhecimentos, depôs com isenção e objetividade, merecendo-se, desse modo, um juízo de credibilidade por banda do Tribunal, e asseverou que, à data da declaração de falência, a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Batalha, requerente da declaração de falência, era credora da O..., Lda. em cerca de um milhão de euros.
Disse o arguido que os valores em dívida à Fazenda Nacional, à Segurança Social e à referida instituição bancária, não respeitam apenas a capital, mas englobam juros de mora, coimas e taxas de justiças. Ainda que assim seja – aliás conforme o comprovam os documentos de fls.774 a 776 e a certidão de fls.1061 a 1100, referente às reclamações de crédito apresentadas no processo da falência –, o certo é que quer os juros de mora, quer as coimas, quer as taxas de justiça são encargos e responsabilidade daquela e, por isso, têm de ser considerados como estando em dívida.
Mais disse que a O..., à data da falência, não era devedora do montante referido à Fazenda Nacional, porquanto era credora de imposto de IVA, no montante aproximado de €150.000,00. Contudo e pese embora da prova produzida – designadamente do documento de fls.778/779 e dos depoimentos prestados pelas testemunhas J..., liquidatário judicial da sociedade falida, e P... , Técnico oficial de Contas da O... de Outubro de 2002 a Dezembro de 2002 – ter resultado apurado que a sociedade falida era credora de IVA, no montante de €153.409,84 (facto provado n.º52), a verdade é que, por um lado, da documentação junta aos autos, alguma dela pelo próprio arguido, tais como os documentos de fls.774 a 776, resulta inequivocamente que, à data da falência, a O... era simultaneamente devedora dos montantes de €226.088 e €71.883,04, e, por outro, o reembolso daquele crédito de IVA poderia ainda não se encontrar exigível.
Os factos provados sob o n.º14 resultaram do documento junto aos autos a fls.117 a 184, que o arguido confirmou respeitar à sociedade falida, e dos depoimentos das testemunhas Q..., inspetor da Polícia Judiciária que procedeu à investigação nos presentes autos, e J..., liquidatário judicial da sociedade falida, que depondo com isenção e espontaneidade, asseveraram respeitar ao imobilizado da sociedade falida que foi transferido para a B..., SA.
A declaração judicial da insolvência da O..., Lda., a respetiva data e a identificação do processo (facto provado n.º15) resultaram da certidão judicial junta aos autos a fls. 1 a 50, mormente fls.1 a 20.
Para a prova das deslocações do liquidatário judicial nomeado às instalações da falida, respetiva data e o cenário que encontrou (factos provados n.º16 e 17) valorou-se os diversos requerimentos juntos ao processo de falência n.º298/2002, do 2.º Juízo, deste Tribunal, cujas certidões constam de fls.21 a 30, 48 a 50, e teores se harmonizam com as declarações prestadas pelo próprio liquidatário judicial em sede de audiência de discussão e julgamento. Na verdade, afirmou a referida testemunha escorreitamente que quando as instalações da sociedade falida lhe foram entregues estavam desprovidas de qualquer património e equipamentos, apenas existiam alguns papéis, como projetos de máquinas e cópias de facturas, sem qualquer importância contabilística. Ora, este depoimento coaduna não só com a documentação junta aos autos, mas também com os depoimentos prestados pelas testemunhas N..., C..., I..., H..., G..., E..., F..., D... e L..., todas ex-trabalhadores da sociedade falida e atualmente trabalhadores da B..., SA, que confirmaram unanimemente a transferência de todos os equipamentos fabris e industriais, matérias-primas e mercadorias, assim como dos próprios trabalhadores, das instalações da O... para as instalações da B..., SA, na (...), isto após a feitura do contrato de trespasse referido nos autos. Acrescentando a testemunha H... que, na altura, o armazém da O... ficou vazio!
A transferência dos bens móveis da sociedade falida para as instalações da B..., SA (facto provado n.º18) apurou-se com base nos depoimentos das testemunhas acabadas de referir, que também a este propósito depuseram com isenção e coerência em si e entre si. Contudo, não souberam estas testemunhas esclarecer as concretas circunstâncias temporais em que essa transferência ocorreu, limitando-se a referir que foi após lhes ter sido comunicado o contrato de trespasse, pelo que face a estas declarações dúvidas não existem de que foi no ano de 2002, no entanto, não se logrou apurar a concreta altura do ano, assim se explicando a factualidade dada como não provada sob a alínea a) dos “factos não provados”.
A convição do Tribunal quanto ao convite aos trabalhadores da sociedade entretanto falida para passarem a trabalhar para a B..., Lda, sem perda das regalias sociais, a aceitação por estes e o começo de exercício de funções por conta desta última sociedade (factos provados n.ºs19 e 20), adveio, sobretudo, dos depoimentos prestados pelas testemunhas N..., C..., I..., H..., G..., E..., F..., D... e L... que, com conhecimento direto, de forma unânime e coerente em si e entre si, narraram que, em data que não se recordam, o arguido reuniu-se com eles, dando-lhes conhecimento da existência de um contrato de trespasse e outro de arrendamento celebrados entre a O..., Lda. e a B..., SA, sendo que no âmbito do primeiro havia sido transferido para esta última todos os equipamentos, máquinas e matérias-primas da O... e, por isso, convidava-os a trabalhar a B..., SA, o que aceitaram, uma vez que não havia perda das regalias sociais. Mais disseram que, após a transferência das máquinas e equipamentos das instalações da O... para as novas instalações da (...) passaram a exercer as respetivas funções para a B..., SA, sendo esta, a partir daí, quem processava os salários e emitia os correlativos recibos.
A celebração dos contratos de trespasse e arrendamento entre a O..., Lda. e a B..., SA, as suas datas e o clausulado (factos provados n.ºs 21 a 28) resultaram, respetivamente, da documentação junta aos autos a fls.39 a 41 e 42 a 45, que concerne precisamente ao contrato trespasse e de arrendamento celebrados, cuja feitura e subscrição o arguido confirmou.
Para a prova da não entrega de qualquer valor patrimonial pela B..., SA à falida em consequência dos contratos de trespasse e de arrendamento (facto n.º29), alicerçou-se o Tribunal na globalidade da prova produzida em conjugação com as regras do normal acontecer.
Com efeito, sufragou a testemunha Q..., que durante a investigação não foi possível apurar qualquer pagamento da B..., SA à sociedade falida por conta dos referidos contratos, desde logo, por não ter sido possível localizar os documentos contabilísticos. Por sua vez, J..., acrescentou que, desde o início de exercício de funções de liquidatário judicial nunca lhe foi entregue nenhuma prestação pecuniária pela B..., SA relativa aos contratos de trespasse e arrendamento celebrados.
Além disso, conforme resulta dos autos de apreensão de bens de fls.82 a 86 e 188 a 200 não foram apreendidos à sociedade falida quaisquer saldos ou valores bancários.
Assim e pese embora o arguido ter sufragado que a B..., SA estava a fazer os pagamentos devidos à O..., o certo é que se estivesse a efetuá-los, por um lado, continuá-los-ia a fazer, após a declaração de falência, desta feita na pessoa do liquidatário judicial, por outro, a(s) conta(s) bancária(s) da falida apresentaria(m) saldo positivo, o que não se verificou.
Ademais, os cheques de fls.265 a 270 encontram-se todos com datas anteriormente à celebração dos referidos contratos de trespasse e arrendamento e os documentos junto a fls.287 a 289 e 654 a 657, não comprovam qualquer pagamento, mas tão só movimentos de tesouraria.
Para além disso, note-se que, conforme resulta da análise conjugada das certidões de fls. 1 a 20 e 1061 e seguintes, não foi efetuado pela O... qualquer pagamento à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Batalha após 03 de Maio de 2001, para amortização da sua dívida. Ora, se a B..., SA estivesse a fazer as entregas de dinheiro acordadas nos mencionados contratos e tendo ainda em conta os valores mensais acordados – €8.500,00 e €4.000,00 – certamente que a dívida à Caixa de Crédito Agrícola havia ter sido amortizada no decurso do ano 2002.
Da conjugação do que se deixa dito com as regras do normal acontecer, convenceu-se o Tribunal de que a B..., SA não foi efetuou qualquer pagamento à sociedade falida por conta dos referidos contratos.
Por outro lado, é evidente face as regras do normal acontecer que com a transferência de todos os equipamentos industriais e fabris, máquinas de produção, mercadorias, matérias-primas e trabalhadores da O... para a B..., SA, foi transferida para esta a produção e criação de produtos e respetiva comercialização, assim como a clientela (factos provados n.º30 e 31). E tanto assim o é, que após essa transferência, a O... deixou de exercer atividade, não gerando qualquer receita, o que o próprio arguido admitiu nas suas declarações. Aliás, outra posição não poderia o arguido ter assumido em audiência de julgamento face ao óbvio da situação.
Relativamente à ocultação e ausência da contabilidade da sociedade falida das suas instalações (factos n.ºs 32 e 33), atendeu-se, desde logo, ao depoimento prestado pelo Sr. Liquidatário Judicial, que não tendo qualquer interesse nos autos e tendo sido nomeado no sobredito processo de falência pelo Tribunal, peremptória e categoricamente, narrou que aquando da sua deslocação às instalações da falida não encontrou nenhum elemento contabilístico, mas tão só alguns documentos sem importância contabilística espalhados pelo chão do armazém, que posteriormente foi limpo. Tais declarações foram, de certa forma, corroboradas pelo depoimento prestado pelo inspetor da Polícia Judiciária, Q... que assegurou que, durante a investigação, não logrou localizar os documentos contabilísticos da falida. É certo que as testemunhas N..., F... e H... disseram que os arquivos da contabilidade ficaram todos nas instalações da (...), tendo esta última acrescentado que, depois de se terem mudado para a (...) mas antes do Sr. Liquidatário entrar na posse das instalações, foi várias vezes às instalações da (...) consultar documentos contabilísticos, não conseguindo, todavia, precisar qual foi a última data em que o fez.
Ora e ainda que inexistam razões para colocar em crise a credibilidade destas declarações, considerando que o arguido, como sócio-gerente da falida era o detentor das chaves de acesso a essas instalações – aliás o próprio nem sequer referiu que qualquer outra pessoa teria acesso às mesmas – afigura-se-nos verosímil, perante as regras da experiência comum e do normal acontecer, que, no lapso de tempo que mediou entre a última deslocação da testemunha H... às ditas instalações e a entrega das chaves ao Sr. Liquidatário Judicial, o arguido deu o destino que lhe aprouve – que se desconhece – aos documentos contabilísticos da falida.
A entrega dos documentos contabilísticos pelo arguido e discriminados em 34 dos “factos provados” baseou-se na conjugação do documento junto a fls.784 a 786, com o depoimento prestado a este propósito pelo liquidatário judicial que confirmou a sua veracidade. Aliás, tais documentos encontram-se, na sua maioria, também juntos aos presentes autos a fls.61 a 81.
Concluiu-se pela inexistência de valores nas contas bancárias da sociedade falida (facto provado n.º35), face ao teor dos autos de arrolamento e apreensão de bens da falida, juntos aos autos a fls.82 a 86 – bens imóveis – e 188 a 200 – bens móveis –, cujos respetivos teores foram confirmados pela testemunha J..., em articulação com a certidão judicial junta a fls.1027 e ss., respeitante ao apenso B – Liquidação – do processo n.º298/2002, nos quais não constam qualquer apreensão de saldos e valores bancários. Na verdade, caso existissem valores ou saldos bancários em nome da falida, o Sr. Liquidatário Judicial teria procedido à sua apreensão, o que não sucedeu porque inexistiam.
Perante tudo o que se deixa dito, ditam as regras da experiência comum e da lógica das coisas que os credores da O... ficaram impedidos de obter a cobrança coerciva dos seus créditos, a não ser através do processo de falência (facto provado n.º36).
O elemento subjetivo resulta dos factos objetivamente apurados, em conformidade com as regras da experiência comum e da normalidade do acontecer.
Com efeito, é notório que o único propósito do arguido com as condutas provadas era fazer desaparecer, dissimular o património da falida para impedir que os credores, designadamente a credora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Batalha, CRL, não lograssem satisfazer os seus créditos. Desde logo, porque se atentarmos aos documentos de fls.272 e 278 a 285 verificamos que já em 2001 o arguido, na qualidade de sócio-gerente da sociedade falida, se encontra em litígio (extrajudicial) com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Batalha, litígio esse que não logrou resolver extrajudicialmente. Na verdade, resulta dessa documentação a rejeição da proposta de acordo apresentada pelo arguido.
Ora, perante a rejeição da proposta de acordo apresentada, o arguido começa a arranjar todo um “esquema” para impossibilitar que a Caixa de Crédito Agrícola conseguisse satisfazer os seus créditos, nomeadamente através da cobrança coerciva (penhora). É com esse propósito que no final de 2001 a B... é alterada de sociedade comercial por quotas para sociedade anónima – sendo certo que, nessa altura, estava sem atividade, conforme o próprio arguido disse. Após, transformada em sociedade anónima, o arguido foi nomeado administrador único daquela. Para além disso, no início de 2002, na qualidade de gerente da O... e administrador da B...celebra (numa espécie de negócio consigo mesmo) os contratos de trespasse e arrendamento juntos aos autos, colocando assim “a salvo”, pelo menos, todos os bens móveis da primeira, o que efetivamente sucedeu, sendo que relativamente aos imóveis nada podia fazer, nomeadamente aliená-los porque se encontravam onerados com hipoteca a favor da credora Caixa de Crédito Agrícola.
Por outro lado, muito se estranha que tendo o prédio composto de conjunto de construções destinadas à indústria sido arrendado à B..., SA, à data da declaração de falência estivesse vazio, não tendo aquela lhe dado qualquer utilização, sendo certo que nas palavras do arguido aquela estava a pagar as rendas devidas à O.... O que efetivamente não se crê!
Ademais, o arguido, como pessoa esclarecida que é, sabia que os imóveis que se encontravam com garantia real eram insuficientes para liquidar das dívidas da sociedade falida, designadamente o crédito da Caixa de Crédito Agrícola.
Por fim, saliente-se que entre a declaração de insolvência e a efetiva apreensão dos bens móveis “trespassados” pelo liquidatário judicial decorreram cerca de dois anos, sendo que, conforme o relatou o liquidatário judicial, o arguido sempre criou resistência e impedimentos à realização da diligência, tendo até sido necessário recorrer ao auxílio da força pública.
Ora, todo o comportamento tido pelo arguido e espelhado na factualidade supra descrita denuncia a vontade de fazer desaparecer e dissimular o património e a contabilidade da sociedade falida, com o intuito de prejudicar os credores da mesma, impedindo que conseguissem obter a cobrança dos seus legítimos créditos à custa dos bens daquela, bem sabendo que lesava os legítimos interesses daqueles e lhe causaria, como causou, prejuízos.
Ensinam ainda as regras da normalidade do acontecer que foram a ações levadas a cabo pelo arguido a causa direta e necessária da declaração de falência. A este propósito realce-se que em virtude dos referidos contratos de trespasse e arrendamento a O... deixou de ter trabalhadores, criação, produção, de gerar receitas e consequentemente incapaz de satisfazer as suas obrigações vencidas, para além de que ficou desprovida dos bens móveis.
No que respeita à voluntariedade dessas condutas e à sua consciência da ilicitude, além do que resulta do depoimento das testemunhas supra referidas, da postura da audiência de julgamento resulta que o arguido tem e, tinha à data dos factos, capacidade de distinguir entre o bem e o mal e de se determinar de acordo com essa avaliação.
Por fim, nenhuma prova, com consistência, foi produzida que abalasse a convição a que se chegou nos termos expostos. Disse o arguido que a falência da O... foi uma “burla” da Caixa de Crédito Agrícola, porém, não apresentou qualquer elemento ou razão objetivos e credíveis, onde fosse, medianamente, possível ancorar essa alegação.
Para a prova da data de entrada em juízo da petição inicial da declaração de falência da O... e do montante de juros da dívida à Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da Batalha (factos provados n.º46 e 54) valorou-se a certidão judicial junta a fls.1061 e seguintes, na qual consta a petição inicial que deu origem ao processo de falência n.º298/2002, com o carimbo da entrada de entrada em juízo, assim como o montante de juros pela requerente peticionado, sendo que posteriormente o referido crédito foi verificado e graduado, conforme se extrai da certidão de fls.1050 a 1060, referente ao apenso B – Reclamação de Créditos – do dito processo.
Os factos provados sob os n.ºs47 a 51 e 53 foram assim considerados com base nos documentos juntos aos autos a fls.774 a 776 e ainda na certidão judicial de fls.1061 e ss., mormente fls.1077 a 1084 e 1093 a 1099.
O montante do imposto de IVA de que a sociedade falida era credora adveio da harmonização do requerimento apresentado pelo Sr. Liquidatário Judicial no processo de falência em 28/10/2005, cuja cópia consta de fls.778 a 779 destes autos, com os depoimentos prestados pelas testemunhas J..., liquidatário judicial da sociedade falida, e P..., Técnico oficial de Contas da O... de Outubro de 2002 a Dezembro de 2002, E... e F..., respetivamente, empregada de escritório e diretora de vendas da sociedade falida, que relataram que a falida era credora de IVA no montante aproximado de €150.000,00.
A convição do Tribunal quanto aos factos provados n.ºs 55 e 56 formou-se através da análise conjugada e articulada dos documentos juntos aos autos a fls.780 a 782, 817, 876 e 879 a 893.
No que respeita às condições pessoais e económicas do arguido atendeu-se às declarações prestadas pelo próprio em audiência de discussão e julgamento, as quais mostrando seriedade convenceram o Tribunal.
O desconhecimento de antecedentes criminais ao arguido resultou do teor do certificado de registo criminal junto aos autos a fls.1016, devidamente examinado.
As razões que nos levaram a considerar como provados os factos n.ºs18, 29 e 34 valem inteiramente para se dar como não provada a factualidade vertida nas alíneas a) a c) dos “factos não provados”.
Não se respondeu à restante matéria por ser irrelevante, conclusiva ou respeitar a matéria de direito.
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Delimitação do recurso
É jurisprudência constante e uniforme que são as conclusões extraídas pelo recorrente que delimitam os poderes de cognição do tribunal “ad quem”, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso, ainda que não invocadas, como é o caso da prescrição do procedimento criminal, que extingue a responsabilidade criminal.
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Conhecimento da questão prévia da prescrição:
O arguido foi acusado e condenado pela prática de um crime de insolvência dolosa, p.p. pelo artº 227 nº1, al. a) e b) e 2 do Código Penal[1], redacção anterior à actual, introduzida pelo Dec.Lei nº 53/2004, de 18 de Março (que aprovou o Código da Insolvência e Recuperação de Empresas).
Ao crime em causa, tanto na redacção anterior como na actual, artº 227º nº1, corresponde pena abstracta de prisão até 5 anos ou multa até 600 dias.
Decorre daqui, por aplicação do artº 118º nº1 al. b), nº2, e nº4, que o prazo normal de prescrição é o de 10 anos (crimes puníveis com pena de prisão cujo limite máximo for igual ou superior a cinco anos (…))
Como resulta do disposto na norma ínsita no nº1 do artº 119º o prazo prescricional corre desde o dia em que o facto se tiver consumado.
Reside aqui a primeira questão a dilucidar, qual seja a de saber qual o termo inicial ou “a quo” a ter em conta para a contagem do prazo, ou seja saber quando se consumou o crime de insolvência dolosa.
O recorrente apoiando-se numa frase do Ex.mo Procurador Geral, que descontextualizou, onde afirma que o que interessa nos presentes autos é o contrato de trespasse e não a deslocação de bens, entende que tendo sido outorgado o trespasse em 1 de Janeiro de 2012, é desta data que se deve partir para o calculo da prescrição, sobre a qual, aquando da resposta (12 de Junho de 2013) já tinham decorrido mais de 11 anos e 6 meses, concluindo que o procedimento criminal «já está, e há muito prescrito».
Será que a consumação do crime ocorreu em 1 de Janeiro de 2002, data do contrato de trespasse e, também, do de arrendamento a que se reportam os nºs 21 a 28 dos factos provados?
Dispõe o artº 227º
1. O devedor
a)
b)
c)
d)
é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. Se a falência vier a ser declarada em consequência da prática de qualquer dos factos descritos no número anterior, o devedor é punido com pena de prisão até 5 anos ou com multa até 600 dias.
Não diferindo muito a redacção actual, que deixou de ter o nº 2, e o nº 1 a ser punido com a pena que anteriormente era cominada no nº2, passando, assim, o tipo a contemplar as situações referidas nas diferentes alíneas, quer elas tenham sido causa da ocorrência da situação de insolvência e do seu reconhecimento judicial, quer as mesmas condutas tenham sido causadoras do decretamento da falência, sendo que em ambos os tipos configurados na anterior redacção tem de existir nexo de imputação entre as condutas concretamente incriminadas e o resultado proibido, a situação de impotência económica.
Resulta daqui que os crimes supra referidos, que a actual redacção fundiu num único, só podem ser praticados por quem tenha insuficiência económica que não lhe permita solver as suas dívidas e possa levar a que seja declarada a sua insolvência.
O tipo de crime configurado no artº 227º do Código Penal é um crime específico puro, que só pode ser praticado por um devedor cuja insolvência possa ser objecto de reconhecimento judicial – Pedro Caeiro[2]
Decorre do teor do preceito citado, que as condutas referidas nas diferente alíneas do artº 227ºnº1 (tanto da actual como da anterior redacção), só são puníveis, isto é só constituem crime se forem reconhecidas judicialmente como determinantes da situação de insolvência.
Como referem Figueiredo Dias e Pedro Caeiro[3], “ A punibilidade das condutas previstas no nº1 está subordinada ao reconhecimento judicial da situação de insolvência, acto que, não se confundindo com a ocorrência dessa situação, constitui uma condição objectiva de punibilidade, não necessitando por isso de ser abarcado pelo dolo do agente. Na verdade, é o reconhecimento judicial da insolvência que evidencia a insatisfação dos credores e, portanto, o perigo penalmente perseguido: se o devedor causa ilícita e culposamente a sua própria impotência económica mas consegue satisfazer os interesses dos credores (porque possui ainda um património superavitário, porque negoceia com êxito uma redução das suas dívidas, etc) e a insolvência não é, por esse facto, objecto de reconhecimento judicial, o facto carece de dignidade penal.
E, continuam: “Assim, a subordinação da punibilidade ao reconhecimento judicial da insolvência, como manifestação de conflito entre o agente e as vítimas, mostra-se congruente com a concepção dos crimes falenciais como crimes contra o património: a ausência desse acto judicial leva o legislador a presumir, dada a essencial disponibilidade do bem jurídico protegido, a inexistência de uma ofensa digna de pena (ainda que, note-se, o facto tenha provocado danos graves à economia nacional, v.g., com a destruição fáctica da empresa do devedor).
Resulta do que foi dito que, sem reconhecimento judicial da insolvência, o agente não pode ser perseguido pelo crime, e se não pode ser perseguido criminalmente, também não pode começar a correr o prazo prescricional antes da declaração de insolvência, por a tal obstar o disposto na al. a) do nº1 do artº 120º do Cód.Penal.
O prazo prescricional não corre enquanto porque se encontra suspenso quando “o procedimento criminal não puder legalmente iniciar-se (…) por falta de (…) ou de sentença a proferir por tribunal não penal (…). – al a) referida.
Assim independentemente da data em que tenham sido praticados os actos integradores do crime de insolvência, só a partir da declaração de insolvência do agente se pode contar o prazo prescricional – al. a) referida.
Revertendo para o instituto que nos interessa analisar, tendo a sentença declaratória da falência sido proferida em 2 de Dezembro de 2002, é a partir desta data que se tem de contar o prazo prescricional.
O prazo de prescrição suspendeu-se, por três anos a partir da notificação da acusação, que foi notificada ao arguido por correio depositado de 30 de Janeiro de 2008, artº 120º nº 1 al. b) nº2 - notificação que também constituí causa de interrupção, artº 121º nº1 al. b), sendo que a partir daí se iniciou novo prazo prescricional de 10 anos, nº 2 do citado artº 121º, todos do Cód. Penal -.
Porém, de acordo com o disposto no nº3 do artº 121º, “(…)a prescrição do procedimento criminal tem sempre lugar quando, desde o seu início, e ressalvado o tempo de suspensão, tiver decorrido o prazo normal de prescrição acrescido de metade”
De onde resulta que a prescrição só ocorre passados 18 anos (10 anos, prazo normal de prescrição; 3 anos prazo de suspensão; e 5 anos, metade do prazo normal) sobre a declaração de insolvência, só ocorrendo 2 de Janeiro de 2020, ou seja, está ainda muito longe de ocorrer agora que sobre a dita sentença se completar 10 anos e 10 meses.
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Ultrapassada esta questão prévia, passemos então ao conhecimento de mérito do recurso, que levanta as questões que a seguir se enumeram pela ordem que hão-de ser tratadas.
1 – Vício do erro notório na apreciação da prova, que segundo o recorrente foi cometido na sentença ao classificar como “esquema” o contrato de trespasse – conclusões 3 a 18;
2 – Enlaçado com este vício impugna a matéria de facto provada sob os pontos 29, 32, 33, 36 a 44 dos factos provados – conclusões 40 a 48.
3 – Na vertente de direito, defende que a matéria de facto;
a) Não preenche a al. a) do artº 227º do Cód. Penal – conclusão 19 e 20
b) Nem à a al. b) do mesmo preceito – conclusão 21, a 24.
c) E também não se pode enquadrar no nº 1 do artº 227º do Cód.Penal – conclusões 25 a 30;
d) E, por último, que não se pode subsumir ao nº2 do mesmo preceito legal, porque da sentença que declarou a insolvência não resulta que a O... tenha sido declarada falida em consequência da prática de qualquer dos factos a que se referem as alíneas a) e b) do nº1 do artº227º do Código Penal – conclusões 31 a 39
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Vejamos:
Vício do erro notório na apreciação da prova
Como vem sendo repetidamente afirmado pelas instâncias, verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”.
E continuam: “Mas quando a versão dada pelos factos provados é perfeitamente admissível, não se pode afirmar a verificação do referido erro”.
Quanto ao vicio do erro notório na apreciação da prova a que se reporta a al. c) do nº 2 do artº 410º, lê-se, do STJ[4] “como se vem reafirmando constantemente, não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente...[5] e só existe quando, do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária aquela a que chegou o tribunal”.
Erro tão crasso que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de qualquer exercício mental. As provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica ou excluindo dela algum facto essencial.”
Afirma o arguido que a sentença recorrida, na convicção da fundamentação, ao nomear de “esquema” a celebração do contrato de trespasse e arrendamento entre a insolvente e a sociedade B..., e ao concluir que o comportamento do arguido espelhado na factualidade descrita denuncia a vontade de fazer desaparecer e dissimular o património e a contabilidade da falida, com o intuito de prejudicar os credores da mesma, impedindo que conseguissem obter a cobrança dos legítimos créditos à custa dos bens daquela, bem sabendo que lesava os legítimos interesses daqueles e lhe causaria, como causou prejuízos, incorreu em erros na apreciação da prova.
Será que os factos provados, observados à luz da lógica, do normal acontecer, enfim das regras da experiência comum, permitem tirar as conclusões referidas?
A resposta não pode deixar de ser afirmativa.
O termo esquema significa diagrama simplificado; exposição sumária da articulação e das ideias essenciais de um projecto, de um discurso, de uma obra[6]. A sentença recorrida ao classificar assim o comportamento do arguido - que consistiu em deslocalizar[7] a sociedade O... para a sociedade B...SA., transferindo todo o aviamento, pessoal, máquinas, matérias primas, clientela, etc., através do contrato de trespasse e arrendamento, que na qualidade de legal representante das duas sociedades, celebrou em nome de ambas, assumindo ele próprio a posição activa e passiva nos ditos contratos, trespassário/trespassante, locador/locatário, numa espécie de contrato consigo mesmo, deixando a requerida da insolvência de ter qualquer actividade - pensamos nós que não tirou qualquer conclusão ilógica ou contrária à experiência comum. Limitou-se a constatar o que qualquer homem médio, dotado de inteligência média tiraria do comportamento referido.
É que, se não foi este o fim visado pelo arguido não vislumbramos porque razão teria feito a dita deslocalização da empresa, ou seja, se não foi para não pagar aos credores referidos na falência, designadamente à Caixa de Crédito Agrícola, o maior credor, por que razão teia feito os ditos contratos que outorgou em representação de ambas?
Não impede esta conclusão o facto, que não está em causa, de o arguido enquanto representante da B..., ter continuado a cumprir para com os fornecedores e clientes quer eram antes da O..., e com os trabalhadores de acordo com os contratos de trabalho celebrados com a insolvente, pois que os eventuais créditos de fornecedores e de trabalhadores não foram reclamados na insolvência, e “quod non est in actiis non est in mundo”, sendo indiferente para o caso em questão que os mesmos existam ou não.
A verdade incontestável é que por força daquela transferência da insolvente para a B..., a primeira sociedade ficou impossibilitada de cumprir com os seus credores, quer eles sejam três como se decretou na sentença, ou quantos forem, basta um para se poder tirar esta conclusão.
Também não se pode dizer contra isto, que até à declaração da insolvência tinha continuado a cumprir o acordo que, em nome da O..., fez com Estado para pagar as dívidas tributárias, o comportamento anterior nada garante para o futuro. O património do devedor constitui a garantia geral dos credores, e ficando a O... desprovida de património, “et por cause” da capacidade de criar riqueza, por forçada transferência para a B...SA não vemos como podiam as entidades tributárias referidas obter a satisfação dos seus créditos.
São estas, em síntese, as razões que nos permitem concluir que a sentença recorrida ao concluir como concluiu, decidiu obedecendo à lógica e à experiência comum, e, atrevemo-nos a dizer mesmo, que concluiu da única forma que podia, não incorrendo, por isso, em qualquer erro ou vício.
*
Impugnação da matéria de facto
Na concretização dos princípios constitucionais no direito ordinário o legislador processual penal regulou o direito ao recurso nos artºs 399º e seg. do CPP, impondo um conjunto de regras a que deve obedecer a impugnação das decisões proferidas de modo a estabelecer o âmbito e limites de cognoscibilidade pelo tribunal superior dos fundamentos em que baseia a sua discordância de facto e de direito da decisão.
Assim, com a reforma do processo penal introduzida pela Lei 59/98 de 25-08 passou a ser possível impugnar a matéria de facto de duas formas: a já existente revista ampliada, através da invocação dos vícios a que se reporta o artº 410º, com a possibilidade de sindicar as anomalias emergentes do texto da decisão recorrida, e outra mais ampla, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso e m matéria de facto, mediante a observância de certas formalidades, que se tornaram mais exigentes com a alteração introduzida pela lei 48/2007 de 29-08, redacção actual.
Estas formalidades impõem no caso de recurso da matéria de facto, que se observem as condições dos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP, de modo a adaptar ao objectivo dos recursos o conhecimento das questões pelo tribunal ad quem.
O objectivo que se visa conseguir com a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto, não é a repetição do julgamento em 2ª instância, nem pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do acervo dos elementos de prova produzida, mas apenas o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento que tenham sido referidos no recurso e das provas indicadas pelo recorrente, que imponham decisão diversa.
Ou seja, a reapreciação no âmbito dos recursos restringe-se aos concretos pontos de facto que o recorrente entende que foram incorrectamente julgados e às razões de discordância, tendo sempre por pano de fundo que os recursos são remédios jurídicos que se destinam a obviar erros in judicando ou in procedendo reexaminando decisões proferidas pelo tribunal recorrido[8].
O ónus de especificação imposto ao recorrente nos nºs 3 e 4 do artº 412º do CPP – de indicar quais os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida, bem como a obrigação de indicar concretamente as passagens em que fundamenta a impugnação - decorrem do princípio já enunciado de que os recursos não são um novo julgamento ou sequer uma crítica ao julgamento efectuado no tribunal recorrido, mas uma reparação ou juízo refractado de um julgamento em que o arguido teve todas as possibilidades de defesa e de esgrimir perante um tribunal todo o conjunto de elementos de modo a fazer valer a sua versão dos factos que o tribunal teve de apreciar e valorar. O julgamento no tribunal de recurso não pode conseguir o mesmo efeito e obter a mesma dimensão compreensiva e percepcional daquele que foi realizado num tribunal com a presença das pessoas que nele intervieram, designadamente o arguido, e onde todas as provas foram observadas e examinadas.
As hesitações, inflexões, tibuteios de voz de qualquer dos intervenientes processuais e a sua postura perante as instâncias que lhe são feitas, a manutenção de um fio lógico e coerente de uma versão adquirida dos factos sobre que depõem, e a convicção que expressam sobre um conjunto de factos ocorrem de uma forma momentaneamente compreendida e não da forma que mais conviria a uma ou outra das partes que estejam em confronto. Toda uma panóplia de sinais revelados num depoimento só podem adquirir sentido e obter valoração se percepcionados directamente por um tribunal durante um juízo oral. Estas percepções transformam-se num acervo intransponível para o tribunal de recurso mas são a base da sedimentação da convicção onde se funda a apreciação e valoração da prova.
Não constitui, portanto uma restrição ou compressão intolerável do direito ao recurso a imposição estatuída pela lei, da observância de determinados procedimentos como forma de o recorrente alcançar a pretensão de reparação de um eventual erro de julgamento.
É o que acontece com as obrigações impostas nos citados nºs 3 e 4 do artº 412 para a impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto – que o recorrente especifique os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, as provas que impõem decisão diversa da recorrida, sendo que, no caso de as provas haverem sido gravadas, estabelece, ainda, que as especificações atinentes a essas provas impõem decisão diversa da recorrida sejam feitas por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação[9].
Citando Paulo Pinto Albuquerque,[10] a motivação do recurso sobre a matéria de facto deve especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida. A especificação dos concretos pontos de facto só se satisfaz com a indicação de facto individualizada que consta da sentença recorrida e que se considera incorrectamente julgado. Por exemplo, é insuficiente a indicação de todos os factos ocorridos entre duas datas ou de todos os factos ocorridos em determinado espaço fechado ou certo aglomerado urbano.
E, continua o mesmo autor, “A especificação das concretas provas só se satisfaz com a indicação do conteúdo específico do meio de prova ou da obtenção da prova que impõe decisão diversa da recorrida, Por exemplo, é insuficiente a indicação genérica de um depoimento, de um documento, de uma perícia (…).
Acresce que o recorrente deve explicitar por que razão essa prova impõe decisão diversa da recorrida. Este é o cerne do dever de especificação. O grau acrescido de concretização exigido pela Lei nº 48/2007 de 29.08, visa precisamente impor ao recorrente que relacione o conteúdo específico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado.
As imposições ou deveres processuais não se podem qualificar como restrições ao direito ao recurso, mas antes como uma regulamentação e disciplinação às necessidades decorrentes da idiossincrasia e estrutura dos recursos que não se podem transmutar numa repristinação de toda a actividade probatória. Desenvolvida e alcançada pelo tribunal “ a quo”.
Entendemos que o recorrente cumpriu suficientemente os referidos ónus, embora esse cumprimento integral só tenha sido feito na motivação.
Defende o recorrente que foram mal julgados os pontos 29, 32,33,36 a 44.
Recordemos a que se reportam tais pontos:
29. A sociedade B..., SA não entregou qualquer valor patrimonial à sociedade falida em consequência dos escritos acima referidos.
32. O arguido encobriu a contabilidade da sociedade falida e deu-lhe destino desconhecido.
33. E a mesma não se encontrava nas instalações da sociedade falida em 31 de Março de 2003.
36. Os credores da sociedade falida ficavam, como ficaram, impedidos de obter a cobrança coerciva dos seus créditos à custa do património da empresa.
37. O arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente.
38. As acções supra descritas levadas a cabo por si, concretizadas na dissipação e dissimulação do património da sociedade falida foram causa directa e necessária da posterior decisão judicial de declaração de insolvência.
39. Bem como impediram qualquer credor de receber os seus créditos.
40. Atuou com o propósito de fazer desaparecer e dissimular o património da sociedade falida, de que era sócio-gerente, no intuito de prejudicar os credores da sociedade.
41. E impedir que os mesmos conseguissem obter a cobrança coerciva dos seus legítimos créditos à custa dos bens (activos) da sociedade falida, nomeadamente através de penhora.
42. Bem sabia que as condutas por ele assumidas e praticadas lesavam os legítimos interesses dos credores da sociedade acima referida e lhes causariam, como causaram, graves prejuízos, impedidos que ficaram de cobrar os seus créditos.
43. Sabia que tinha o dever de apresentar os documentos contabilísticos da sociedade falida e deu-lhe destino desconhecido.
44. Bem como sabia que tais condutas eram proibidas e punidas por lei.;
Desta matéria entende que no que se reporta ao ponto 29, os depoimentos de C...; D...; E...; F... e G..., impõem decisão diversa.
E, no que se reporta aos pontos 32 e 33, impõem também decisão diversa os depoimentos de H... e das já referidas E... e F....
Quanto aos demais pontos impugnados afirmam que eles contem conclusões sem sustentação fáctica.
Quanto ao ponto 29 - depois de transcrever partes dos referidos depoimentos - conclui que todas as testemunhas são unânimes em dizer que foi a trespassária quem pagou aos fornecedores e trabalhadores na sequência do contrato de trespasse (fls. 1163 das conclusões)
Ora, não se entende que esta conclusão que retirou dos referidos depoimentos obste aquela a que se chegou no ponto 29 da matéria de facto.
Com efeito, apesar de os empregados da insolvente que depois passaram a trabalhar por conta da B...SA, terem referido que receberam os salários enquanto trabalharam por conta da primeira e que os continuaram a receber depois de trabalharem para a segunda, daí se explica que nenhum trabalhador se tenha apresentado a reclamar créditos aquando da insolvência, e o facto de nenhum dos fornecedores da insolvente O... se apresentarem a reclamar créditos, o que nos permite ter como plausível a conclusão de que a B...SA, também continuou a pagar-lhes não invalida a conclusão de que a B...SA, não entregou qualquer valor patrimonial à sociedade falida em consequência dos contratos.
Com efeito, por via do trespasse transmite-se todo o aviamento do estabelecimento, do qual fazem parte não só os trabalhadores e os fornecedores de materiais e matérias primas como também o imobilizado, as existências, o “know how”, os clientes, etc, etc, querer reduzir o preço da universalidade que compõe um estabelecimento ao pagamento dos fornecedores e dos trabalhadores, sem mais, pensamos que é um tanto redutor. Ademais, se a sociedade B...SA, pagou aos trabalhadores (quanto a estes a sentença dá como provado que assim foi, ponto 20.) e fornecedores que antes eram da O..., também foi ela que recebeu os lucros dos produtos que colocou no mercado.
Só seria possível tirar a conclusão retirada pelo recorrente, se as dívidas a fornecedores e trabalhadores fossem de tal ordem que consumissem todo o preço do estabelecimento, o que não resulta dos escritos, nem de nenhum depoimento, sendo que, mesmo assim, os demais credores podiam ter reagido como fez a CCA, por não terem sido “vistos nem achados” neste negócio que os prejudicou na medida em que a O..., a sua devedora, ficou sem bens nem possibilidade de gerar riqueza para lhe pagar o seu crédito.
Esta ilação também é válida para os impostos e contribuições que estavam a ser pagos à Administração Fiscal. Mesmo dando de barato que a B...SA, ou o arguido continuaram a pagar o acordo resultante do chamado Plano Mateus até à declaração de insolvência da O..., nada nos diz que assim continuasse a ser se a insolvência não tivesse sido decretada, certo sendo que só a O... tinha responsabilidade perante a administração fiscal pelo pagamento das dívidas, que com a transmissão de todo o seu património para a B...deixou de poder garantir.
Daqui se concluiu que neste ponto, as provas invocadas pelo arguido não permitem chegar a conclusão diversa daquela a que chegou o tribunal recorrido, que deixou quanto este e os demais pontos bem apoiada na fundamentação da sentença.
No que se reporta aos pontos 32 e 33, apesar de o recorrente não se ter referido especificamente nas conclusões, e por isso este tribunal não ter obrigação de se pronunciar quanto a eles, sempre se dirá que, apesar das testemunhas H..., funcionária administrativa da O... e depois da B..., SA, ter dito que as pastas de arquivo tinham permanecido nas instalações da falida na Batalha, a testemunha R..., também funcionária de ambas as sociedades, ter dito que lá ficaram parte dos documentos da contabilidade, e, F..., igualmente funcionária, ter falado em suporte documentário que permaneceu nas instalações da O... da Batalha, asseverando todas elas que aí consultaram a referida documentação e consultaram arquivos e arquivaram documentos, estes depoimentos não invalidam a convicção a que chegou o tribunal.
Por um lado, nenhum destes depoimentos permite concluir que nas instalações da falida ficou outra coisa que não documentos de suporte da contabilidade que, como é do conhecimento mesmo de um leigo nesta matéria, é coisa diferente da contabilidade organizada por rubricas conforme legislação especial atinente, como aliás, dada a sua formação académica e a sua actividade profissional, o recorrente não pode desconhecer.
E, por outro, como consta da sentença recorrida, referindo-se a estes três depoimentos, “(…) ainda que inexistam razões para colocar em crise a credibilidade destas declarações, considerando que o arguido, como sócio-gerente da falida era o detentor das chaves de acesso a essas instalações – aliás o próprio nem sequer referiu que qualquer outra pessoa teria acesso às mesmas – afigura-se-nos verosímil, perante as regras da experiência comum e do normal acontecer, que, no lapso de tempo que mediou entre a última deslocação da testemunha H... às ditas instalações e a entrega das chaves ao Sr. Liquidatário Judicial, o arguido deu o destino que lhe aprouve – que se desconhece – aos documentos contabilísticos da falida.”
No que tange às conclusões vertidas nos pontos 36 a 44, (cls. 42) apenas se dirá que não é verdade que a sentença não identificou os credores da falida. Pois que, dos pontos 11, 12 e 13 da mesma sentença consta a relação dos três credores que reclamaram créditos na insolvência e o respectivo montante. E perante a existência destes créditos, não se vê que outra conclusão pudesse ter sido retirada do comportamento do arguido ao transferir toda a actividade da falida para a B..., SA, que não impedir estes credores, mormente a Caixa de Crédito Agrícola, a maior dos três, de ver satisfeito o seu crédito.
Contra isto não vale argumentar que as máquinas da falida foram todas apreendidas, pois que essa apreensão se deu nas instalações da B..., SA, que não embargou a apreensão, certamente porque estava consciente de que elas na realidade pertenciam à falida, apesar de terem sido objecto do contrato referido, que diga-se não pagou imposto de selo referido, nem foi participado às finanças, certamente, prevendo o desfecho que veio a acontecer.
Também é irrelevante para a conclusão extraída acerca da intenção do arguido, o facto de a “transmissão” ter sido feita antes da declaração de insolvência, pois que ninguém melhor do que o representante legal da falida tinha conhecimento da situação desta. Quer branquear uma situação destas, é permitir que os devedores deixem para trás os credores que bem lhes aprouver, lançando a lei da selva nas relações entre empresas e credores designadamente credores bancários que, as financiaram para se constituírem e para se equiparem.
Por último, e quanto ao acrescento da matéria de facto que o recorrente quer ver efectuado, (cls. 42 a 47) não se vê qual a relevância da mesma para a decisão da causa, e só neste caso devia ter sido levado as factos provados, já que não consta da pronúncia nem da defesa, artº 368º nº2 do CPP, certo sendo que o comportamento do arguido plasmado nos factos supra referidos em nada altera as conclusões a que se chegou.
Com efeito, a circunstância de ter transferido as máquinas à vista de toda a gente e de ter deixado nas anteriores instalações um croquis a indicar a novas, podia apenas denotar que a empresa havia mudado de instalações, ou, como referem os Ex.mo Procuradores em ambas as instâncias, serem reveladoras da desfaçatez com que dissipou o património da falida em prejuízo dos credores, e nessa medida resultarem em desfavor do próprio arguido.
Por fim, não pode deixar de se consignar que a objectivação da convicção do tribunal “a quo” é rigorosa e exaustiva pormenorizando para cada facto as provas que considerou, deixando claros os raciocínios lógicos e dedutivos que presidiram ás conclusões que tirou dos dados objectivos que lhe foram apresentados de modo a alcançar as conclusões a que chegou e que o recorrente de um modo parcial e sem visão de conjunto quer ver alteradas de modo a alijar a sua responsabilidade na insolvência da sociedade devedora.
O recorrente não só esquece que a convicção que vale é a do tribunal, como faz tábua rasa da profícua e exaustiva fundamentação da matéria de facto que que ver modificada.
Improcede, assim a impugnação da matéria de facto.
3 – Recurso da matéria de direito:
Defende o recorrente que a situação vertente não se pode subsumir ao artº 227º nº1 do Cód. Penal redacção do Dec.Lei 48/95 de 15 Março, que de acordo com o princípio “tempus regit actum” artº 2º nº1 do Cód. Penal se aplica ao crime (por a posterior ser irrelevante para os efeitos do nº 4 do mesmo preceito), por não estar preenchida nenhuma das duas alíneas mencionadas na sentença e também porque não resulta da matéria de facto que tivesse agido em prejuízo dos credores.
O artº 227º do Código Penal que tem por epigrafe (insolvência dolosa) tem o seguinte teor:
1. O devedor que com intenção de prejudicar os credores:
a) Destruir, danificar, inutilizar ou fizer desaparecer parte do seu património;
b) Diminuir ficticiamente o seu activo, (…) ou simulando, por qualquer outra forma, uma situação patrimonial inferior à realidade, nomeadamente (…), destruição ou ocultação de documentos contabilísticos ou não organizando a contabilidade apesar de devida.
c)
d)
é punido, se ocorrer a situação de insolvência e esta vier a ser reconhecida judicialmente, com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2. Se a falência vier a ser declarada em consequência da prática de qualquer dos factos descritos no número anterior, o devedor é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
*
a) Diz o recorrente que a supra referida al. a) não está preenchida porque os bens da falida não só não desapareceram, como foram todos apreendidos e vendidos.
Mas sem razão.
No preceito tipificado no artº 227º do Código Penal, supra descrito, incrimina-se a insolvência dolosa. Segundo Maia Gonçalves,[11]”Trata-se de um crime em que, além dos requisitos do dolo genérico, se exige um dolo específico, consistente na intenção de prejudicar os credores.”
Trata-se ainda de um crime de execução vinculada, pois o processo executivo tem que revestir alguma das modalidades descritas nas alíneas do nº1.
E, com ele, visa-se a protecção dos credores, como referem Sá Pereira e Alexandre Lafayette[12]” O património do devedor é a garantia comum dos credores. Em tais condições, o devedor, precisamente por sê-lo, há-de seguir o irretorquível princípio de conservar os seus bens na medida necessária para assegurar uma efectiva relação de correspondência entre o activo disponível e o passivo exigível, a fim de honrar a confiança pelos credores nele depositada (…). Há, assim, condutas que lhe estão vedadas. Em virtude de a prática respectiva desencadear perigo para a boa e regular satisfação dos seus débitos, desequilibrando a citada relação e pondo em causa, pela quebra do activo ou pela exasperação do passivo, a aludida garantia.
Como referem Simas Santos e Leal Henriques[13] a diminuição real do activo patrimonial, pode resultar da sua destruição, danificação, inutilização ou dissipação.
Quando o arguido celebra com dúplices vestes, o contrato de arrendamento e de trespasse através do qual a devedora fica sem bens nem capacidade de produzir riqueza, o que está a fazer senão inutilizar o património da requerida para o fim a que ele está afecto, deixando os credores, e mais especificamente a Caixa de Crédito Agrícola, sem possibilidade de reaver o seu crédito?
O facto de as máquinas terem sido apreendidas, na sequência do processo de insolvência e liquidação do património, já na posse de uma outra entidade, não invalida que se tenha preenchido o crime.
Com efeito, o prejuízo não tem de ocorrer tal como o agente planeou ao praticar o crime. É este o traço característico dos delitos de tendência, onde a vontade do agente imprime carácter à conduta, dirigindo-a ou orientando-a, do mesmo passo que traduz uma «especial perigosidade para o bem jurídico protegido»[14].
O mesmo se diga, da ocultação da contabilidade da falida.
Não se podendo consultar a contabilidade da falida é impossível reconstituir a sua actividade económica e saber quais os seus activos (e também o passivo, sendo certo que os credores podem sempre reclamar os seus créditos, sendo que só estes serão atendidos e pagos pelas forças da massa insolvente).
Que interesse teria o arguido em ocultar a contabilidade da falida, fazendo-a desaparecer, que não o de ocultar bens e valores desta sonegando-os ao pagamento das dívidas?
Dizer o contrário é reduzir o direito a um jogo de sombras.
Depois, o preenchimento do nº1 do referido artº 227º está umbilicalmente ligado ao que se disse a propósito das duas alíneas, que mais não são que meios para atingir o resultado típico, a situação de incapacidade económica para solver os respectivos compromissos.
Com efeito, as condutas descritas nas als. do nº 1 do artº 227º são crimes materiais de execução vinculada, pois a sua consumação exige a produção, através das formas tipicamente descritas, de um resultado: a situação de impotência económica[15].
Por último, defende o arguido que a conduta provada não pode ser subsumida ao nº2 do preceito a que nos estamos a referir.
Argumenta desta feita que, para se poder considerar que a sua conduta foi causal da insolvência dolosa, tinha de constar da declaração de insolvência que ela resultou da prática de qualquer dos factos referidos nas alíneas do nº1, e não como aí se refere que a insolvência resulta de a sociedade se encontrar impossibilitada, por carência de meios financeiros, de cumprir o seu passivo.
Que dizer?
Apesar de a declaração de insolvência constituir um pressuposto ou uma condição de punibilidade do crime que nos ocupa, como já acima referimos a propósito do inicio da contagem do prazo prescricional, daí não resulta que a intenção dolosa do devedor ou da pessoa encarregada da gestão, tenha de constar da declaração de insolvência.
Com efeito, o processo de insolvência e consequente liquidação do património com vista ao pagamento dos credores são o fim do processo civil, saber que intenção do insolvente ou do seus representantes legais que conduziram a que a insolvência tivesse ocorrido, bem como o processo causal entre a vontade e a declaração de insolvência é matéria a apurar no processo crime.
A agravação da pena a que se reporta o nº2 do artº 227º atina com os pressupostos fácticos da declaração judicial de falência, na medida em que eles tenham sido causados pelo devedor.
Citando, mais uma vez Pedro Caeiro[16], “A situação de falência judicialmente declarada constitui um resultado agravante para os efeitos do artº 18º do C.Penal, que há-de poder ser imputável ao agente a título de dolo, ou pelo menos de negligência.
E, essa imputação, que envolve maior ou menor censura do facto tendo em vista os interesses protegidos com a norma, estamos seguros, tem de pertencer ao julgador penal.
Improcede, assim, este fundamento do recurso.
*
III – DECISÃO
Nos termos e com os fundamentos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso e confirmar a decisão recorrida.
*
Custas pelo recorrente com a taxa de justiça que e fixa em 5 UCs.
*
Coimbra, 2 de Outubro de 2013.


(Cacilda Sena - Relatora)

(Elisa Sales)

[1] Como serão todos os que doravante se indicarem sem menção de diploma.
[2] Comentário Conimbricense ao Código Penal tomo II, pág. 409,
[3] Ob citada, pág. 425 que remete para outras obras dos mesmos autores.

[4] Ac. STJ de 15/04/982 in BMJ 476, pág. 91, no mesmo sentido conf. Ac. STJ de 13.Out. 1999, Col. Juris STJ ano VII, tomo 3º, pág.186.
[5] Sublinhado nosso
[6] Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora, 201.
[7] Expressão aqui usada não em sentido técnico-económico, mas em sentido corrente.
[8] Conf. Neste sentido Ac STJ de 14.05.2008 in dgsi. STJ
[9] Redacção da Lei 48/2007 de 29.08 que mudou o regime da impugnação da matéria de facto, tornando mais exigente a especificação dos pontos de facto impugnados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida.
[10] Ob. citada pág.1131.
[11] Código Penal Português, ed. Almedina, 16ª edição, pág. 773.
[12] Código Penal Anotado e Comentado, ed. Quid. Juris, 2008, pág. 607.
[13] Código Penal Anotado, 3ª ed., II vol, pág. 967.
[14] Sá Pereira e A. Lafayette, in ob citada, pág. 606, recorrendo a JeschecK
[15] Pedro Caeiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo II, pág. 412.
[16] Ob. citada, pág. 426.

http://www.dgsi.pt/jtrc.nsf/8fe0e606d8f56b22802576c0005637dc/5984a5d2202d97b180257bfd00362153?OpenDocument

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