Acerca de mim

A minha foto
Porto, Porto, Portugal
Rua de Santos Pousada, 441, DE Telefone: 225191703; Fax: 225191701; E-mail: cabecaisdecarvalho@gmail.com

terça-feira, 7 de agosto de 2012

Verdade Verdadíssima PROVA INDICIÁRIA PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - 04/07/2012

Acórdãos TRL
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
679/06.0GDTVD.L1 -3
Relator: JOÃO CARLOS LEE FERREIRA
Descritores: PROVA INDICIÁRIA
PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA

Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 04-07-2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO

Sumário: I — A verdade a que se chega no processo não é a verdade verdadíssima, mas uma verdade judicial e prática, uma «verdade histórico-prática e, sobretudo, não [é] uma verdade obtida a todo o preço, mas processualmente válida». Tratar-se de uma verdade aproximativa ou probabilística, como ocorre com a toda a verdade empírica, submetida a limitações inerentes ao conhecimento humano e adicionalmente condicionada por limites temporais, legais e constitucionais.
Assim, numa indagação racional sobre o mundo e o homem, a verdade material consiste na conformidade do pensamento ou da afirmação com um dado factual, material ou não.
II — A doutrina tem agasalhado e compactado o critério operante de origem anglo-saxónica, decorrente do princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência (cf. n.º 2 do art. 32.º da CRP) e com base no qual o convencimento do tribunal quanto à verdade dos factos se há-de situar para além de toda a dúvida razoável.
III — A dúvida razoável (a doubt for which reasons can be given) poderá consistir na dúvida que seja “compreensível para uma pessoa racional e sensata”, e não “absurda” nem apenas meramente “concebível” ou “conjectural”. Nesta óptica, o convencimento pelo tribunal de que determinados factos estão provados só se poderá alcançar quando a ponderação conjunta dos elementos probatórios disponíveis permitirem excluir qualquer outra explicação lógica e plausível.
III — Contrariamente ao que acontece v.g. com o n.º 2 do art. 192.º, do Código de Processo Penal Italiano que estatui que “a existência de um facto não pode ser deduzida de indícios a menos que estes sejam graves, precisos e concordantes” a nossa lei adjectiva penal não regula os pressupostos específicos para a operacionalidade da prova indiciária.
IV — Os indícios recolhidos devem ser todos apreciados e valorados pelo Tribunal de julgamento em conjunto, de um modo crítico e inseridos no concreto contexto histórico de onde surgem. Nessa análise crítica global, não podem deixar de ser tidos em conta, a par das circunstâncias indiciadoras da responsabilidade criminal do arguido/acusado, também, quer os indícios da própria inocência, ou seja os factos que impedem ou dificultam seriamente a ligação entre o arguido/acusado e o crime, quer os “contra indícios”, isto é, os indícios de cariz negativo que a partir de máximas de experiência, exaurem ou eliminam a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo. Se existe a possibilidade razoável de uma solução alternativa, ou de uma explicação racional e plausível descoincidente, dever-se-á sempre aplicar a mais favorável ao arguido/acusado, de acordo com o princípio in dubio pro reo
V — Não tendo havido acordo entre Ministério Público e defensor, as concretas afirmações produzidas pela testemunha em inquérito perante órgão de polícia criminal, que não são confirmadas nem repetidas em depoimento para memória futura, nem posteriormente na audiência de discussão e julgamento, não podem ser valoradas para formação da convicção do julgador, ainda que essas declarações prestadas no inquérito tenham sido lidas à testemunha na diligência judicial de produção antecipada de prova.
Decisão Texto Parcial:

Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, os juízes da 3ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa,

1. No processo comum nº … procedeu-se a julgamento da arguida O, nascida a …, acusada do cometimento em co-autoria material de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido nos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2 alínea i) do Código Penal, na redacção da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro .
No acórdão, proferido a …, o tribunal colectivo do Círculo Judicial de … decidiu absolver a arguida da prática do crime de que vinha acusada.
O Ministério Público interpôs recurso, pugnando pela revogação da decisão em matéria de facto e em matéria de direito, com a consequente condenação da arguida pelo cometimento do crime de homicídio em pena que não poderá ser inferior a dezasseis anos de prisão.
A arguida não apresentou resposta à motivação.
Por despacho de…, o recurso foi admitido, com o efeito devido.
Neste Tribunal da Relação, onde o processo deu entrada a…, o Ministério Público, por intermédio da Exmª Procuradora-Geral Adjunta, emitiu parecer fundamentado (fls. 1100 a 1106) subscrevendo os fundamentos do magistrado recorrente e concluindo no sentido da revogação do acórdão e consequente condenação da arguida pelo cometimento do crime de homicídio. Cumprido o disposto no art.º 417.º n.º 1 do CPP, não houve resposta da arguida.
O processo foi redistribuído ao presente relator em 12 de Março de 2012, juntamente com outros doze e sem decisão.
Proferido despacho liminar, realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. Para melhor compreensão, torna-se necessário transcrever a decisão recorrida e as conclusões do recurso.
2.1 A decisão em matéria de facto do tribunal colectivo tem o seguinte teor: (transcrição)
“Discutida a causa provou-se que:
R … e a arguida O… tiveram entre si um relacionamento amoroso, que se manteve até finais de…
Em data não concretamente apurada, mas seguramente situada entre Outubro e Novembro de 2006, N…contactou com o seu amigo E…, dizendo-lhe que a arguida O lhe havia pedido para matar o R… e propondo-lhe que o ajudasse a mata-lo, o que aquele recusou.
Em data concretamente não apurada, mas localizada entre o final de Outubro e o início de Novembro de 2006, G… pediu a D …que lhe arranjasse uma arma de fogo, entrega que não se concretizou por circunstâncias alheias à vontade de ambos.
Durante o mês de Novembro de 2006, a arguida estabeleceu frequentes contactos telefónicos com N …e este com G….
Na noite de 01 para 02 de Dezembro de 2006, cerca das 00h00m, R dirigiu-se ao bar-discoteca “Dali”, situado no cais de Santa Cruz, local onde também se encontravam, entre outros, o seu amigo S…, a namorada deste D… e a arguida O….
O R… abandonou o bar por volta das 02h00 da madrugada, entrou na sua viatura automóvel, de marca “Lancia”, modelo “D” 1.4, IES, com a matrícula… , de cor vermelha e a mesma veio a imobilizar-se no lado Norte da pista do A …, local de terra batida e sem qualquer iluminação da pista, com R… sentado no lugar do condutor sendo certo que no interior do veículo estavam, pelo menos, mais duas pessoas cujas identidades, forma e momento de introdução na viatura não foi possível apurar.
Uma vez aí chegados, e no interior do automóvel, os dois indivíduos cujas identidades não foi possível apurar atacaram R…, desferindo-lhe fortes pancadas no crânio com um objecto contundente, ao mesmo tempo que o atingiram de forma repetida, com um objecto cortante, dando-lhe diversos golpes na zona da cabeça e pescoço, tendo acabado por degolá-lo.
Em consequência das agressões supra descritas, R… sofreu as lesões melhor descritas no relatório de autópsia constante de fls. 595 a 598 dos autos, cujo teor aqui se dá para todos os efeitos reproduzido, nomeadamente, na face e crânio, infiltração sanguínea generalizada dos planos epicranianos à esquerda, fracturas múltiplas dos ossos da calote craniana à esquerda, aparentemente com ponto de maior impacto na região parietal anterior, atingindo também os ossos da base do crânio e do andar anterior à esquerda, prolongando-se para o hemisfério contralateral e contusões múltiplas da massa encefálica, bem como, diversas feridas inciso-contusas e ainda, degolação pela sua face anterior, com secção profunda, a qual atingiu os grandes vasos locais acima do plano dos cornos do osso hióide e a coluna cervical.
Conforme se conclui no aludido relatório, de entre as lesões que sofreu, a degolação após traumatismo craniano violento, foi a causa directa, necessária e exclusiva da morte de R….
O corpo da vítima, viria a ser encontrado no interior da sua viatura automóvel, no local supra referido, pelas 08h15m do dia 02 de Dezembro de 2006, trazendo no bolso traseiro das calças uma carteira com diversa documentação pessoal e € 95 em dinheiro.
R… era um indivíduo bem considerado no seio da comunidade brasileira de … sendo tido como pessoa pacata, honesta, auto-suficiente e trabalhadora.
Após a morte de R…, e ao contrário do que vinha sucedendo regularmente até essa data, cessaram todos os contactos telefónicos efectuados entre a arguida O…e N… entre este e G….
No dia 02 de Dezembro de 2006 e sem que nada o fizesse prever, N… despediu-se, pedindo ao seu patrão que lhe fizesse as contas, tendo trabalhado apenas durante a manhã desse Sábado.
No dia 03 de Dezembro de 2006, N… deixou a casa que ocupava com a sua companheira e filho, tendo viajado para o Brasil, sem avisar a sua família, em dia não concretamente apurado desse mesmo mês.
Em data concretamente não determinada, mas seguramente situada entre os dias 3 e 4 de Dezembro de 2006, G …viajou para o Brasil.
No dia 11 de Dezembro de 2006, cerca das 23h45m, a arguida O… pediu o telemóvel de A…, companheira do seu irmão, e introduzindo no aparelho um outro cartão, enviou a S, uma mensagem sms com o teor constante do auto de transcrição de fls. 95, cujo conteúdo se dá como integralmente reproduzido.
Por meio de tal envio, pretendia a arguida associar a morte de R…, a uma briga ocorrida apenas alguns dias antes, entre a vítima e um indivíduo de nacionalidade portuguesa.
*
Factos não provados
Não se provou que:
A arguida O …nunca se conformou com o final dessa relação, terminada por iniciativa de R…, não aceitando que este se relacionasse com outras mulheres.
De tal forma que, desde essa altura e até finais do mês de Novembro de 2006, a arguida perseguia incessantemente R…, pressionando-o e ameaçando-o, chegando inclusivamente a afirmar, que se o ex-namorado não fosse dela não seria de mais ninguém.
Sendo que, ao saber que R… namorava com outra mulher, a arguida deslocou-se a casa desta, ameaçando-a e amedrontando-a para que a mesma terminasse a relação.
Inconformada com o afastamento de R… e ciumenta por saber que tal relacionamento se mantinha, a arguida O… decidiu matá-lo.
Na concretização de tal desígnio, em Outubro/inícios de Novembro de 2006, a arguida abordou N…, indivíduo que sabia ter tido um desentendimento há algum tempo com o R…, por sua causa, tendo-lhe proposto que tirasse a vida a R…, disponibilizando-se a pagar-lhe a quantia de € 2000, como contrapartida monetária pela realização dessa morte.
N… aceitou matar R… nas condições oferecidas pela arguida, mediante o pagamento da referida quantia de € 2000.
Em dia não determinado, mas de igual modo situado entre Outubro e Novembro de 2006, N… contactou com o seu amigo G…, conhecido como “D… ”, indivíduo que possuía ressentimentos antigos contra R…, a quem propôs que lhe prestasse colaboração na morte encomendada por O, com o que este concordou.
A arma que o G… pediu a DH…destinava-se a ser utilizada para matar o R….
Em execução do que havia sido pedido pela arguida O…, N… e G… combinaram entre si, que a morte de R …deveria ter lugar na noite de 01 para 02 de Dezembro de 2006.
Em execução do plano para tanto traçado, O …acordou com N…, em ir-lhe fornecendo nessa mesma noite, via telemóvel, indicações da localização da vítima, o que ela fez.
No seguimento das informações fornecidas pela arguida O, depois de R ter abandonado o referido bar, N… e G… abordaram-no e obrigaram-no a deslocar-se com eles, na sua viatura automóvel, de marca “L”, modelo “, com a matrícula , de cor vermelha.
O N… e o G… circularam dentro da viatura com o R… e foram eles quem desferiram os golpes que vieram a determinar a morte do R….
Antes de N …abandonar Portugal, a arguida O… pagou-lhe a quantia combinada para a morte de R….
A mensagem enviada pela arguida foi para afastar suspeitas do seu envolvimento na morte de R….
A arguida O… quis agir como agiu, com intenção de matar R, tendo actuado em conjugação de esforços com N… e G….
Para o efeito, com a sua actuação, a arguida determinou N… e G… à prática dos factos supra descritos, querendo e conseguindo que estes tirassem a vida a R….
Agiu a arguida de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo ser todo o seu comportamento proibido e punido pela lei penal.
*
Motivação da decisão de facto
Antítese da “presunção de culpa” que, de facto, recaía sobre o suspeito, no processo inquisitório do Ancien Régime, a presunção de inocência, proclamada, em 1789, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (artigo 9º), tornou-se, logo a partir dos princípios do século XIX (com o chamado “processo penal reformado”), um dos princípios fundamentais do processo penal do Estado de direito (como, também, os da autonomia das entidades acusadora e julgadora, da contraditoriedade, da publicidade, da oralidade e da livre convicção probatória).
Reafirmado nos mais importantes textos internacionais relativos aos direitos humanos (Declaração Universal dos Direitos do Homem - ONU, 1948, artigo 11º, n.º 1 -, Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais - Conselho da Europa, Roma, 1950, artigo 6º, n.º 2 - e Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos - ONU, 1966, artigo 14º, n.º 2), veio a ser consagrado na Constituição da República Portuguesa de 1976 como também v. g., na Constitución Española de 1978, artigo 24º, n.º 2: “Asimismo, todos tienen derecho ( ...) a Ia presunción de inocência”, com a seguinte formulação:
Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa.
Se a presunção de inocência é uma verdadeira presunção em sentido técnico-jurídico ou, antes, uma verdade interina (cfr. Vásquez Sotelo, Presunción de inocência del imputado e intima convicción del tribunal, Bosch, Barcelona, 1984, pág. 273), ou uma ficção (cfr. Souto de Moura, “A questão da presunção de inocência do arguido”, Revista do Ministério Público, ano 11º , n.º 42, págs. 37-40), ou, ainda, uma simples regra de ónus da prova (cfr. Esteban Romero Arias, La presunción de inocência, Editorial Aranzadi, 1985, pág. 46), é questão que, como opina Helena Bolina (“Razão de ser, significado e consequências do princípio de presunção de inocência”, Boletim da Faculdade de Direito, Coimbra, 1994, vol. LXX, pág. 456), não terá uma importância prática decisiva (Luzen Cuesta toma-a, indiferentemente, como (“presunción juris tantum o verdad interina”, em La presunción de inocência ante Ia casación, Editorial Colex, 1991, págs. 13-14), como, seguramente, não tem no caso que nos ocupa.
Importante é conhecer o fundamento do princípio da presunção da inocência.
Para Figueiredo Dias (“ónus de alegar e de provar em processo penal ?” Revista de Legislação e de Jurisprudência, 1972, ano 105.', pág. 141, e Direito Processual Penal, vol. 1, Coimbra Editora, 1974, págs. 216-217), Pedrosa Machado (“0 princípio in dubio pro reo e o novo CPP”, Revista da Ordem dos Advogados, ano 49.', Setembro de 1989, págs. 595/596), Francisco Tomas y Valiente (“In dubio pro reo - Libre apreciación de Ia prueba y presunciõn de inocência”, Revista Española de Derecho Constitucional, Centro de Estudios Constitucionales, ano 7, n.º 20, Mayo-Agosto, 1987, pág. 17) e Gomes Canotilho e Vital Moreira (Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 3ª ed., 1993, pág. 204), como para muitos outros prestigiados autores, o princípio da presunção de inocência funda-se no da culpa - nulla poena sine culpa.
É outro o nosso entendimento, como passamos a expor.
O direito à boa fama (ou ao bom nome e reputação, na fórmula do artigo 26º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa) é um dos direitos naturais ou fundamentais do homem, ou seja, é um dos que integra o núcleo irredutível de conteúdo da dignidade humana. Tal direito é, numa das suas acepções - talvez a mais básica -, o direito a ser considerado, por princípio, como pessoa que não infringe as regras em vigor na comunidade, ou seja, o de, relativamente a uma eventual infracção, ser considerado inocente enquanto o contrário não for julgado provado, fora de qualquer dúvida, por uma decisão definitiva. Deste ponto de vista, resulta claro, por um lado, que o homem, só porque é uma pessoa humana, tem, desde logo, o direito à presunção de inocência e, por outro, que a garantia deste direito passa, necessariamente, pelo princípio da presunção de inocência.
Ora, o estado de direito democrático baseia-se na dignidade da pessoa humana – “valor autónomo e específico inerente ao homem em virtude da sua simples pessoalidade” (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição .... citada, pág. 59) - e, além do mais que também pertence à sua essência mas que, por razões óbvias, nos dispensamos de referir, no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais (cfr. artigos 1º e 2º da Constituição da República Portuguesa).
Logo, se a tutela do direito fundamental à presunção de inocência (entendido, repete-se, como uma das expressões que assume o direito ao bom nome e reputação ou à boa fama), consubstanciada no princípio de presunção de inocência (que, em relação ao arguido em processo penal, mereceu consagração constitucional) e na proibição da imputação de factos que a contrariem, máxime, dos que constituem crime - cfr. artigos 180º a 184º do Código Penal -, se impõe ao Estado de direito democrático, por força do próprio princípio que, essencialmente, o anima, então aquele decorre, imediatamente, não de qualquer outro, mas do próprio princípio do estado de direito democrático.
Assim concebido, o princípio da presunção de inocência (cujo âmbito de aplicação não se limita, portanto, ao caso do arguido em processo penal, como, aliás, já foi decidido pelo Tribunal Constitucional - acórdão n.º 198/90, de 7 de Junho de 1990, Acórdãos do Tribunal Constitucional, vol. 16.', 1990, pág. 473, onde, porém, se não explicitam as razões por que o principio “no seu núcleo essencial é aplicável ao processo disciplinar” relaciona-se com o da culpa, em termos, apenas, de complementaridade, aumentando-lhe o alcance garantístico: nenhuma pena será aplicada sem que a culpa tenha sido provada, nos termos da lei e para além ou fora de qualquer dúvida.
Da presunção de inocência retiramos, imediatamente, a proibição tanto de fazer recair sobre o arguido o ónus de alegação e prova da sua inocência (na verdade, ele já não tem que a alegar e provar, pelo simples facto de, em consequência da integração da estrutura acusatória pelo princípio da investigação, nos termos do artigo 340º, n.º 1, do CPP, inexistir, no processo penal, ónus da prova quer para a defesa quer para a acusação - cfr. Figueiredo Dias, (“ónus de alegar ... “, citado, págs. 125 e segs.), quanto da estatuição de qualquer presunção de culpabilidade; ainda sem grandes dúvidas, dado o disposto no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, do princípio que a tutela vemos decorrer a exigência de que o processo, sem prejuízo das garantias de defesa, se desenrole com a maior celeridade possível. Quanto a outras implicações, por agora, basta referir, como se acentua no acórdão n.º 168, da Comissão Constitucional, de 24 de Julho de 1979, de que foi relator Figueiredo Dias, que “ ... o princípio da presunção de inocência, na sua desimplicação histórica, assume uma pluralidade de sentidos que exigem a sua concretização e o seu detalhamento progressivos perante as diversas situações processuais penais que para ele apelam; mas sentidos, também, que não podem ser arbitrária ou desrazoavelmente multiplicados ou estendidos, atento o perigo de que, assim, possam vir a entrar em contradição com a razão de ser do princípio, como um dos fundamentos do processo penal do Estado de direito democráticos” (Boletim do Ministério da Justiça, n.º 29 1, pág. 346). {Também Germano Marques da Silva, enunciando, concretamente, várias das ‘consequências’ do princípio, deixa claro que essas são, apenas, algumas ,”entre muitas outras”, já que aquele “não tem reflexos apenas num ou noutro instituto processual, mas se há-de projectar no processo penal em geral, na organização e funcionamento dos tribunais, no direito penitenciário e até, porventura, no direito penal” - Curso de Processo Penal, Editorial Verbo, 1993, 1, pág. 41 -, citando Esteban Romero Arias, o qual, na linha de pensamento de Gutiérrez de Cabiedes (o in dubio pro reo permite a conciliação da finalidade repressiva das normas penais com formas de execução das penas que “intentan hacerla ... más servible al reo, procurando Ia regeneración social de éste y su adaptación al medio una vez cumplida aquella ... “ - cfr. Estudios de Derecho Procesal, Ed. Universidad de Navarra, Pamplona, 1974, pág. 465 - , afirma que o “principio in dubio pro reo ha informado Ia creación de normas jurídicas de figuras tan importantes como pueden serro Ias de Ia libertad condicional, Ia redención de penas por el trabajo “- ob. cit., pág. 18.}
Questão controversa, que não pode deixar de ser abordada, é a de saber como se relacionam, entre si, o princípio da presunção de inocência e a regra que impõe que, em caso de dúvida insuperável e razoável sobre a valoração da prova, a matéria de facto seja, sempre, decidida no sentido que mais favorece o arguido (que Stübel condensou na fórmula latina in dubio pro reo).
Em Espanha, a partir da sentença n.º 31/1981, o Tribunal Constitucional rompeu com uma orientação jurisprudencial, até então pacífica (cuja senda o Tribunal Supremo continuou a trilhar), que negava qualquer conexão entre os dois princípios, passando a sustentar que, como se diz naquele aresto, “una vez consagrada constitucionalmente, Ia presunción de inocência ha dejado de ser un principio general del Derecho que ha de informar Ia actividad judicial (in dubio pro reo) para convertirse en un derecho fundamental que vincula a todos los poderes públicos y que es de aplicación inmediata” (apud Enrique Bacigalupo, “Presunción de inocência, in dubio pro reo y recurso de casación”, Anuario de Derecho Penal y Ciencias Sociales, Ministerio de Justicia, Mayo-Agosto de 1988, tomo XLI, fascículo li, págs. 366-367). Luzón Cuesta adere à posição do Tribunal Supremo (ob. cit., pág. 18); Bacigalupo, apoiando-se, entre outros, em Roxin, Baumann e Hanack e, ainda, no disposto no artigo 6º, n.º 2, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, subscreve a tese de que o in dubio pro reo é componente substancial ou corresponde ao conteúdo da presunção de inocência (ob. cit., pág. 365 e notas 2 e 2-bis), enquanto Quintero Olivares, citando, designadamente, Gimeno Sendra, conclui que “el principio pro reo no puede ser desligado dei principio constitucional de Ia presunción de inocência” (Derecho Penal - Parte General, Marcial Pons, pág. 135).
No Brasil, Luís Alberto Machado escreve que “a presunção de inocência se embaralha e se apoia no princípio processual criminal do in dubio pro reo” (A presunção constitucional de inocências, Revista da Faculdade de Direito de Curitiba, ano 27, 1992-1993, n.º 27, pág. 35) e António Magalhães Gomes Filho opina que, como regra probatória, o princípio da presunção de inocência - que entende ter ainda outras “decorrências” - se confunde com a máxima in dubio pro reo” (O princípio da presunção de inocência na Constituição de 1988 e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), Revista dos Advogados, Associação dos Advogados de São Paulo, ri.' 42, Abril de 1994, pág. 311.).
Entre nós, Castanheira Neves entende que são princípios distintos, na medida em que, ao contrário do da presunção de inocência, o do in dubio pro reo “se justifica, apenas, jurídico-processualmente, isto é, fundamenta-se em termos imediatamente processuais ou sem que tenha de fazer-se apelo a princípios metaprocessuais”. Daí considerar, por um lado, que “não é aceitável a afirmação, generalizada na doutrina, de que o princípio in dubio pro reo só pode entender-se na base de uma 'presunção de inocência' que, como exigência político-jurídica, se impusesse ao processo criminal”, e, por outro, que, não sendo o resultado de uma directa intenção política, aquele pode “mesmo subsistir válido ainda numa ordem jurídica totalitária”, tal como defendia Bettiol (Sumários de Processo Criminal, policopiada, Coimbra, 1968, págs. 55-56 e 57). [Bettiol, efectivamente, depois de sustentar que a modificação do motivo informador da norma (por efeito da substituição de uma concepção liberal por uma concepção autoritária “che consideraria il diritto e il processo penale como strumenti di defesa dello Stato contro 1'individuo” não implica, necessariamente, uma alteração dos critérios de aplicação dessa mesma norma, concluía: “E che Ia regola in dubio pro reo non abbia a che vedere con determinati presupposti di carattere politico lo prova anche il fatto che essa era accolta dalle legisslazioni anteriori allo scoppiare della rivoluzione francese e quindi certamente non impregnate di spirito liberale. La regola, del resto, si trova già nel Digesto: semper in dubiis benigniora praeferenda sunt (D. SO, 17, 53); in poenalibus causis benignius interpretandum est (D. 50, 17, 155, 2) (...)Ma a tale proposito, c'è subito da avanzare una importante osservazione: se anche alla regola veniva assegnato il senso che in dubio absolvitur reus, essa trovava applicazione principale a proposito dell'interpretazione della legge penale ai fini della sua applicazione nel caso concreto” (“La regola in dubio pro reo nel diritto e nel processo penale”, Scritti Giuridici, Cedam, Padova, 1966, tomo I, pág. 31 1).] Só que, como põe em relevo Francisco Tomas y Valiente (ob. cit., págs. 11/13), não obstante aqueles textos (como outros do Direito Romano incluídos no Digesto - D. 50, 17, 9; D. 50, 17, 20; D. 50, 17, 56 e D. 50, 17, 122 - ou o da Lei VII, 31, 9, das Partidas, em que também se tem fundado a mesma tese), a verdade é que não é conhecida nenhuma norma que permitisse a impugnação das decisões dos juízes com fundamento na violação da regra, cuja observância aqueles preconizavam, ou que a tal violação ligasse qualquer outro efeito jurídico. Por outro lado, a existência da pena extraordinária por suspeitas (aplicável quando se produzia a semi-plena probatio, ou seja, quando não havia confirmação suficiente dos indícios e subsistia a dúvida, e que era fixada arbitrariamente pelo juiz - poena arbitraria - em medida inferior à que corresponderia à plena probatio) e da absolutio ab instancia (<> - cfr. Beling, Derecho Processal Penal, trad. de Miguei Fenech, Editorial Labor, 1943, pág. 1 8 1), soluções desenvolvidas, justamente, para impedir a necessária absolvição (cfr. Roxin, apud Bacigalupo, ob. cit., págs. 365-366), constituem, a par da institucionalização da tortura como meio legítimo de obter a confissão, indicativos seguros de que, afinal, do processo inquisitório (caracterizado também, além do mais, pela desigualdade dos arguidos perante a lei, em razão do seu status social, pelo instituto da prova privilegiada e por um complexo sistema de provas legais tarifadas - cfr. Francisco Tomas y Valiente, ob, cit., págs. 13-14) esteve ausente o in dubio pro reo, ao menos como princípio ou regra de direito com o conteúdo que hoje lhe é reconhecido (cfr. Cristina Líbano Monteiro, <>, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Studia luridica, n.º 24, pág. 49).
Para Eduardo Correia, a presunção de inocência é o princípio in dubio pro reo (“ ... principe décisif qui domine Ia procédure criminelle et doit dominer toute enquête et toute preuve: Ia présomption de 1'innocence de 1'inculpé, ]e principe in dubio pro reo. Présomption ou principe [...]”, “Les preuves en droit pénal portugais”, Revista de Direito e de Estudos Sociais, ano XIV, Janeiro - Junho de 1967, n.º 1-2, pág. 22). Vendo-o fundado numa concepção optimista do homem ou na ideia de que a liberdade e a honra, por serem os seus mais valiosos bens, não lhe podem ser retirados enquanto subsistir dúvida sobre a justiça ou o bem fundado de tal acto (ob. e loc. cits.), considerado como uma das mais importantes garantias da liberdade individual face à pretensão punitiva do Estado (idem, ibidem, pág. 17). Helena Bolina afirma que o princípio da presunção de inocência não se esgota nem o seu objectivo é concretizado através do in dubio pro reo, do qual considera corolários os princípios da investigação e da livre apreciação da prova, bem como a celeridade processual e a proibição de estatuições de culpa (ob. cit., págs. 443-455). Cristina Líbano Monteiro entende que o princípio da presunção de inocência tem um vasto campo próprio de aplicação, que o distingue, ao menos em parte, do in dubio pro reo (ob. cit., pág. 61); este último, “é condição da legitimidade da intervenção criminal, em termos definitivos, do poder público”, garantindo a não intervenção do jus puniendi em casos de duvidosa legitimidade, ou seja, nos “das situações de dúvida na prova dos factos” (ob. cit., págs. 60-65 e 77). Gomes Canotilho e Vital Moreira não incluem o in dubio pro reo no conteúdo “adequado” do princípio da presunção de inocência, preferindo dizer que este surge articulado com aquele e que ambos constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da multa concreta como suporte axiológico-normativo da pena” (Constituição..., citada, págs. 203-204). Souto de Moura conclui: “O princípio da inocência produz uma isenção a cargo do arguido, Só depois de produzida a prova é que, surgindo dúvida, se fará intervir o princípio in dubio pro reo. Mas este último princípio encontra justificação racional naquela isenção antes referida. Ou seja, na presunção de inocência” (ob. cit., pág. 46). Figueiredo Dias começou por afirmar a equivalência dos dois princípios (“ónus ... “, citado, pág. 140, nota 1, e Direito Processual .... pág. 214). Hoje, ensina que o da presunção de inocência assume uma pluralidade de sentidos, um dos quais, em matéria de prova, é o de in dubio pro reo (“Protection des droits de 1'homme dans Ia procédure pénale portugaise”, Boletim do Ministério da Justiça, n.º 291, págs. 373-374), tendo, entretanto, afastado a tese da ilegitimidade da utilização, contra o arguido, de medidas de coacção, em especial da prisão preventiva, por força da presunção de inocência (tese que, no quadro de uma concepção de Estado de direito democrático e liberal, se mostrava dificilmente refutável), definindo, magistralmente, o sentido do princípio nessa matéria: ele “vincula estritamente à exigência de que só sejam aplicadas àquele as medidas que ainda se revelem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente” (Jornadas de Direito Processual Penal, Centro de Estudos Judiciários, Almedina, 1989, pág. 27).
É esta última a concepção que nos parece correcta.
Com efeito, se, por força da presunção de inocência, só podem dar-se como provados quaisquer factos ou circunstâncias desfavoráveis ao arguido, quando eles se tenham, efectivamente, provado, para além de qualquer dúvida, então é inquestionável que, em caso de dúvida na apreciação da prova, a decisão nunca pode deixar de lhe ser favorável (neste sentido, também Jesheck, Tratado de Derecho Penal - Parte General, tradução de Mir Puig e Mufloz Conde, Bosch, Barcelona, 1981, pág. 195). Mas se é assim, se é o próprio princípio da presunção de inocência que impõe que, em matéria de prova, a dúvida se decida a favor do arguido, isto é, in dubio pro reo, então este não é um princípio distinto, mas, unicamente, a expressão que aquele mesmo assume nesse domínio.
Podemos, agora, prosseguir.
No caso concreto destes autos temos alguns factos por inquestionavelmente assentes.
O primeiro dos factos a considerar é a morte da R. …é inquestionável, assim como é inquestionável que a sua morte não foi devida a causas naturais mas sim à acção de terceiros. Isto revela-nos a autópsia.
De igual sorte, a forma como os golpes dados à vítima aliados à ausência de sinais de resistência por parte desta e o facto dos valores que tinha não terem sido levados indicam-nos claramente que quem o matou era pessoa sua conhecida (pois que a ausência de sinais de luta indica que a vítima conhecia o agressor), por um lado, e que o furto/roubo não era o seu motivo, por outro (pois que como referiu a inspectora G… da P.J. e que foi ao local, a carteira da vítima ainda estava no bolso desta).
Da autópsia se conclui igualmente que os agressores foram pelo menos dois porquanto existe um golpe que é dado por trás e na zona da cabeça e um outro golpe, que leva à degolação, que terá sido levado a cabo da esquerda para a direita, o que indica que o agressor estava no banco do pendura.
Aqui chegados sabemos pela testemunha S…, amigo de infância do R… e o seu melhor amigo o qual muito ajudou a polícia nas investigações, que a vítima namorou a arguida e que tal namoro havia terminado há cerca de 6 meses por referência à data da morte. A mesma testemunha referiu que o R …dizia que a O… tinha muitos ciúmes de qualquer mulher que ele tivesse tendo, inclusivé, ido a casa de uma namorada do R… com o fito de interferir na nova relação.
Esta má relação é confirmada pela testemunha E… que refere que o N…lhe referiu que a O…lhe disse a ele que não gostava do R… por ele andar com outras mulheres e que por isso lhe encomendava a ele, N…, a morte do ex-namorado.
Também a testemunha RC…, que conhecia o N…, a O… e o G… bem como o R… de …referiu que ouviu este último dizer que a O… o ameaçava e que a mesma dizia que se “ele não era dela, não era de ninguém”
Certo é que esta testemunha e as testemunhas E… e S… referiram esta faceta da arguida (a qual a ter lugar explicaria muito) embora o façam por referência à palavra de terceiros, a saber o R… e o N…, sendo que o último não foi produzido. No entanto, a dita namorada do R… não foi produzida como prova por parte do Ministério Público.
Contudo, é verdade que a testemunha AM… referiu que o R… lhe disse, na semana imediatamente antes da sua morte, que a ex-namorada não lhe dava sossego, não lhe dava paz, e que estava a ser ameaçado pela O, sendo a sua vida um inferno mas tal não deixa de ser depoimento indirecto sendo certo que mal se compreende porque é que o R, que não conhecia bem a testemunha (haviam estado juntos no SEF) haveria de relatar uma situação íntima como esta.
No mais, as outras testemunhas ouvidas e que conheciam o R… e a arguida, quando questionadas, sempre disseram que depois do namoro a O… sempre manteve uma atitude normalíssima para com o ex-namorado tendo inclusive arranjado, pelo menos, um outro caso (designadamente tendo mantido uma relação com a testemunha JM… a qual, ouvida, confirmou a mesma, assim como o fez a testemunha F… a qual vive em casa da irmã e é confidente da arguida por ser desta amiga). Por outras palavras, nada de anormal foi detectado ou presenciado no que respeita às relações entre a O… e o R…. Tal facto (o conhecimento das testemunhas advirem de depoimento indirecto não corroborado por outros elementos de prova), aliado ao facto da O… ter mantido uma relação amorosa com o JM… após a quebra do relacionamento e ainda ao lapso de tempo decorrido desde o fim do namoro até à morte sem que existissem dados objectivos de um mau estar levam o Tribunal a dar como não provada a existência de uma situação de ódio/raiva/despeito por parte da O… em relação à vítima.
A latere dir-se-á que não podemos sufragar a posição do Ministério Público sustentada em alegações finais, de que nenhuma das testemunhas de defesa pôs em causa a motivação do crime pois que nenhuma delas conhecia o casal a fundo, ninguém sabe porque acabou o namoro e não existe quem possa negar que a arguida importunava a vítima. Ora, com o devido respeito, parece-nos que tal redunda em considerar que a não prova de um facto (que os namorados terminaram a relação em termos amistosos) levaria à prova do facto contrário (que existia uma inimizade entre eles) e assim não é. O que não se sabe, o que se desconhece, é a forma como o namoro terminou e quais os sentimentos da arguida para com a vítima em razão do fim da relação.
No entanto, continuamos com o facto do R… ter sido assassinado e, à míngua de outras pistas, foi indagada a vida deste (recordemo-nos que o crime é cometido por quem conhece o R…) e o S…, pessoa amiga do falecido, esclarece que próximo da data da morte existem dois factores de perturbação na sua vida. Um primeiro que se prende com uma rixa havida em Casalinhos de A…, com um português e, precisamente, o mau viver dado pela O…. No entanto, pouco ou nada havia para avançar.
Referiu-nos então a inspectora G que certo dia o S…, foi à P.J. com uma mensagem que recebera no telemóvel, precisamente a que consta de fls. 95. Tal mensagem pretende obviamente chamar a atenção para uma situação de luta e foi enviada por quem sabia da morte do R… (a qual à data da mesma era pública). No entanto, e pela própria leitura da mensagem se conclui que a mesma não foi enviada por um português já que o mesmo não utiliza a construção frásica utilizada. Também se poderia dar o caso, é certo, da mensagem ter sido enviada por um português querendo dar uma aparência de brasileiro não fora o facto de, por via da localização celular e da facturação detalhada, se ter determinado que a mensagem foi enviada a partir de um cartão pré-pago vendido em o qual foi introduzido num aparelho telemóvel pertencente a A…, pessoa que vive maritalmente com o irmão da O….
Ora, a A… foi ouvida em tribunal assim como foi ouvida, anteriormente, em declarações para memória futura e as suas declarações surgem aos olhos o Tribunal como meias verdades cujo fito se desconhece, conforme passaremos a explicitar.
Esta testemunha começa por referir no seu depoimento que conheceu a O… em Novembro de 2006 quando foi viver com o irmão desta.
Instada quanto à questão do telemóvel referiu que emprestava o seu telemóvel à arguida por vezes para esta fazer chamadas. Confrontada com o facto de não estar em causa uma simples chamada mas sim o facto de ter sido colocado um cartão no seu aparelho e enviada uma mensagem com ele lá afirmou, a muito custo, que a O… a informou que iria fazer um telefonema para um indivíduo que tinha o telefone sob escuta da polícia porque ele tinha sido chamado para depor sobre a morte do R….
Esta testemunha foi questionada então pelo Tribunal sobre o porquê de ter alterado, ao longo do processo, as suas declarações, designadamente porque é que disse algo na P.J. e depois coisa diferente ao Mmº J.I.C. e, mais tarde ainda, coisa diferente ao Colectivo de Juízes.
Respondeu a mesma que tinha medo da polícia mas nada soube explicar quanto à razão pela qual mentiu ao Srº Juiz de Instrução e, quanto à polícia, referiu que tinha medo de ser deportada e, instada, disse que os polícias lhe disseram, antes de depor, que se dissesse a verdade não seria deportada e que se mentisse seria então deportada. Instada directamente referiu que nunca a P.J. lhe disse a ela o que é que queria que ela dissesse. E foi então que esta testemunha que se disse ameaçada de deportação se mentisse decidiu …mentir! (como o disse ao Srº Juiz de Instrução, qual acto de contrição).
Ora, como é óbvio, a testemunha não foi forçada a nada, depôs com isenção aquando da sua primeira inquirição em sede policial e só se desdiz depois porque aquilo que disse incriminava claramente a O….
Foi assim que, querendo saber onde é que a testemunha dizia ter mentido, o Tribunal a confrontou com as declarações para memória futura, incluindo as prestadas na P.J., as quais fazem parte integrante daquelas.
Refere então a testemunha que não corresponde à verdade que haja referido à P.J. a existência de uma “minina” que seria a actual namorada do R… e que a mesma lhe teria dito que foi ameaçada pela O…. Trata-se de um segmento inócuo já que estamos perante depoimento indirecto e o Ministério Público não produziu a dita namorada.
A testemunha referiu em tribunal que não correspondia à verdade o ter afirmado perante a P.J. que a Olhe disse que tinha mandado duas pessoas bater no R… pelo facto de sentir raiva por ter sido trocada pela tal “minina” e que os executantes eram um V… e um outro.
Ora, aqui é que não vemos qualquer razão para não acreditar nestas primeiras declarações as quais, aliás, não foram precedidas de qualquer preparação ao contrário daquelas prestadas perante o J.I.C. (cfr. fls. 267) e perante o Colectivo, senão vejamos: a testemunha refere ter tido medo de ser deportada mas segundo a própria tal só se verificaria se ela mentisse pelo que se segue que o natural era ter dito a verdade. Acresce que quer perante o JIC, quer perante o colectivo de juízes mantém que a P.J. não a agrediu ou coagiu de qualquer forma e, por fim, temos que as regras da experiência nos dizem que as declarações prestadas em sede de julgamento mais não foram que um “frete” que a testemunha fez à arguida.
Aqui chegados temos então que nos questionarmos o que é que pode corroborar este depoimento da testemunha A….
A resposta surge pela testemunha E…. Esta testemunha foi ouvida em declarações para memória e ainda em Tribunal, onde foi peremptório em confirmar todo o teor das suas declarações fls. 472.
Daqui resulta que esta testemunha era amigo de N…, pessoa com quem saía aos fins-de-semana para ir aos bailes (“fórros”). Refere esta testemunha que foi com o N… a casa do Na,, indivíduo de nacionalidade brasileira que vivia juntamente com a irmã da O…, C…, e o esposo desta. Mais disse que naquele dia na casa encontravam-se o Na, a C, o marido da C… e a O….
Ora, a presença da testemunha E… em tal local é confirmada pelos depoimentos de JCM…, o qual vive maritalmente com a irmã da arguida e que referiu que em sua casa o N… lhe apresentou o E… e que naquele dia em sua casa estavam a F…, o N…, a C… e ele, bem como a O… e o N… que chegara com o E….
Também as testemunhas F…, N… e CA… (a da arguida) confirmaram a presença do E… embora hajam referido que o E… parecia “um bicho do mato” e que não entrou ou pouco entrou na casa, ficando no “terreiro”.
O próprio E… confirma que pouco tempo esteve no interior da casa porquanto não simpatizava com as pessoas, tirando o N… com quem chegara.
No entanto, o E… refere mais … refere a dada altura a O… saiu para o exterior com o N… e estiveram a falar um “bom bocado”, coisa que os demais presentes referem não terem visto, o que não é impossível já que não estariam, com certeza, a olhar sempre para a arguida.
Mais refere o E… que já depois de saírem da casa do Na e quando estavam sozinhos o N… lhe relatou que a O… lhe havia pedido para matar o R… a troco de 2000 € e porque tinha muitos ciúmes dele já que ele não lhe ligava nenhuma e arranjava outras mulheres. Refere ainda que a O… pagaria o serviço depois de feito e que o N… lhe chegou a propor que os dois cometessem o crime, o que não aceitou.
Refere ainda a testemunha E… que se foi apercebendo que a O estabelecia contactos com o N…. A testemunha refere que estes contactos ocorriam normalmente pelo telefone e que se destinariam a dar a conhecer ao No local onde a vítima se encontrava, sendo que a testemunha soube tal através do N…. Este, o N…, disse-lhe ainda que a arguida iria entregar algum dinheiro para que fosse adquirida uma pistola.
Ora, estes dois pormenores levam-nos a credibilizar o depoimento do E …o qual, diga-se, não é contraditado por nenhum meio directo de prova, senão vejamos.
É indubitável, e tal resulta da facturação detalhada, que a arguida contactava amiúde com o N… pelo telefone até ao momento da morte do R…. Uma vez este morto tais contactos cessaram (cfr. fls. 416 e segs.). Ora, o E… não era amigo da O… nem com esta convivia pelo que, a única forma de conhecer tais telefonemas era através do N… e tais telefonemas existiram pelo que não há que duvidar das suas declarações. A defesa, é certo, tentou dar uma explicação para tais contactos. Segundo as testemunhas CA… – da arguida – FC… – amiga da arguida e que com ela viveu na mesma casa – e MA… – colega de trabalho e amiga – os contactos havidos entre o N… e a O… destinavam-se a marcar lugar no carro daquele para se deslocarem aos bailaricos de fim de semana. Mais referiu a FC… que o mesmo acontecia quando marcavam lugar com o N …da S…. No entanto, ouvido o N… da S… este disse que levou, de facto, a arguida aos bailaricos mas que esta nunca lhe telefonou a “reservar” lugar no carro e é inconcebível que o volume de chamadas efectuadas entre a arguida e o N… se destinassem a marcar lugares em automóveis para irem a bailaricos pois que o N… possuía um ligeiro e não um autocarro de carreira de longo curso.
Assim, fazemos fé nas declarações do E… pois que as mesmas se consubstanciam em elementos probatórios que, conjugados entre si, as tornam credíveis.
No entanto, e desde já salientamos três factores:
1) acreditar ou fazer fé nas declarações do E… é exactamente isso: fazer fé em como é verdade que o N… disse ao E …aquilo que ele refere que lhe foi dito … e nada mais. Das declarações do E… não se pode, sem mais, concluir, que aquilo que lhe foi dito corresponde à verdade e é esta constatação que é de capital importância, como veremos.
2) alguma coisa a O… tem a esconder pois que só assim se compreende que haja enviado a mensagem ao S…, mensagem essa que, claramente, pretendeu desviar as atenções da polícia da sua pessoa;
3) se o N… nada tinha a esconder fica por explicar o porquê deste se ter ido embora de … da forma inesperada e inusitada que o E… relata nas suas declarações.
Referiu a testemunha E… que o N… lhe disse que iria matar o R…, se houvesse oportunidade, na noite de 1 para 2 de Dezembro pelo que o deixou sozinho. No dia seguinte (02.12) soube da morte do R… pela comunidade brasileira e no dia 03.12. encontrou-se com o N…em casa desta, altura em que o mesmo lhe referiu haver morto a R…. porque o N… estava abalado nada mais disse mas, no dia 04.12., o N… mostrou-lhe um maço de notas de 50 € que disse serem os 2000 € que lhe foram pagos pela O… pela morte do R… e que se ia embora.
É precisamente aqui, neste segmento do depoimento, que realçamos a diferença entre a verdade do depoimento do E…, no qual fazemos fé, e a falta de demonstração probatória da veracidade do que foi relatado ao E…. Por outras palavras, nada para além daquilo que o N… disse permite afirmar que ele fez aquilo que ele disse ter feito.
Depois temos a questão dos 2000 € a qual é de capital importância.
A existência desta deslocação patrimonial da O… para o N… nunca foi confirmada ou infirmada por qualquer outro meio de prova. No entanto, a testemunha CA …– da arguida – referiu que a O… esteve desempregada meses anteriores à morte do R embora enviasse para o Brasil 250 € de 60 em 60 dias. Já a testemunha FC …referiu que desde Outubro que a O… não tinha emprego e que foi ela quem pagou a renda de casa e que a situação de desemprego se manteve até à detenção. Esta situação de desemprego foi também confirmada pela testemunha MO…, a qual referiu que trabalhou com a arguida no campo, na P…, até Setembro, altura em que a O… foi despedida. Até ali a O… ganhava 2,5 €/hora trabalhando até 10 horas por dia, mas o trabalho, que era sazonal, terminou por ali.
Ou seja, é difícil conceber que alguém que estivesse desempregada pudesse ter amealhado 2000 € e depois há que indagar … para quê quando não se pode pagar a renda?
E é aqui que voltamos à questão da valoração do depoimento indirecto, do ouvir dizer.
Quem refere os 2000 € é o E…, o E… viu um maço de notas e ouviu o N… dizer que a O …lhe pagou pela comissão do homicídio. Quanto a este facto a O nada disse já que se reservou ao silêncio durante o julgamento e o N não foi encontrado não obstante diligências nesse sentido.
Ora, temos pois que a impossibilidade de ouvir a fonte citada pela testemunha de ouvir dizer resulta de impossibilidade de a pessoa indicada ser encontrada. Ora, o facto em apreço – recebimento pelo N …de 2000 € - resultou em exclusivo do referido depoimento indirecto e não foi mais um elemento (não decisivo) no conjunto das provas produzidas valorar um tal depoimento no sentido de o afirmar ofende o disposto no art. 129.º do Código do Processo Penal, em correlação com os direitos dos arguidos, nomeadamente o direito de defesa consignado no art. 32.º, n.ºs 1 e 5 da Constituição, pelo que teremos de dar como não provado o pagamento pela arguida ao N.…
De igual sorte também se dá como não provada a participação do G …na comissão do crime (sabemos que foram dois os autores materiais mas não sabem quem).
Na verdade, em depoimento, a testemunha DH …referiu que conhecia um tal de J… ou G…, de alcunha “D”. Este “D” pediu à testemunha que a mesma lhe arranjasse uma arma e a testemunha levou uma arma ao “D” para este a ver, o que aconteceu. O “D” deu-lhe então a entender que a arma se destinava a matar alguém mas não em Ribamar onde a testemunha reside mas sim em…. A testemunha, devido ao fim pretendido, acabou por nunca arranjar a arma.
Ora, o E… refere que o N …lhe pediu que ele arranjasse a arma mas que acha que ele, N, não a terá arranjado pois que, se assim fosse, ter-lhe-ia dito, o que permite, pelo menos ao nível da suspeita, correlacionar os dois.
Ora, a relação entre o “D” e o N…, conquanto não fosse do conhecimento do E… é patente através do depoimento de RCV o qual referiu que, na 5ª feira anterior à morte do R, viu num café na Boavista, o N…, o “D” e a O…a falarem os três, embora não possa afirmar qual o assunto.
Assim, é óbvio que estes três se conheciam e conquanto a O não comunicasse com o “D”, a relação das chamadas telefónicas permite ligar os três. Mas a questão impõe-se: ligar os três a quê? Existem mil e uma razões que poderiam levar tais pessoas a falar umas com as outras desde uma simples amizade à encomenda de um homicídio. Ter-se-ia de ter feito prova do porquê da relação.
É, no entanto, certo que no seu depoimento DPH…que refere que conhecia Jersey ou G, de alcunha “D”. Este “D” pediu à testemunha que a mesma lhe arranjasse uma arma e a testemunha levou uma arma ao “D” para este a ver, o que aconteceu. O “D” deu-lhe então a entender que a arma se destinava a matar alguém mas não em Ribamar onde a testemunha reside mas sim em Santa Cruz. A testemunha, devido ao fim pretendido, acabou por nunca arranjar a arma.
Ora, o E… refere que o N… lhe pediu que ele arranjasse a arma mas que acha que ele, N, não a terá arranjado pois que, se assim fosse, ter-lhe-ia dito.
São tudo pequenos factos que permitiriam, como permitiram à polícia (juntamente com outros elementos que em sede de audiência não podem ser relevados), imputar os factos à arguida mas que, com o devido respeito podem ser só coincidências. Ora, para que se possam afirmar os factos ainda que pela via da prova indirecta, é necessário que os elementos de suporte da convicção não sejam apenas conjecturas ou hipóteses mas sim certezas que permitam concluir, de acordo com as regras da experiência que determinado facto ocorreu. Tal prova não teve lugar.
Note-se que não se afirma a inocência da arguida, não se diz que a arguida não cometeu os factos que lhe são imputados. Diz-se apenas que não sabemos se os factos ocorreram.
Existem muitas e estranhas coincidências: as chamadas telefónicas que cessam logo após a morte do R…, a saída de… do N… sem razão aparente (sendo que o E… logo refere que ele se foi embora porque lhe disse que tinha morto o R…), o não regresso do G… a Portugal quando o mesmo estava legal no país e disse ao patrão que regressaria (cfr. o depoimento de JB… que referiu que o G… trabalhou para ele 6 ou 7 anos, que lhe disse que ia para o Brasil no dia 3 e que regressava e que lhe telefonou 15 a 21 dias depois a dizer que não voltava devido à saúde do pai), a mensagem SMS da O… ao S… com o inequívoco sentido de desviar atenções mas, repete-se, tudo não passa de coincidências.
Assim se conclui que existem fundadas dúvidas sobre a verificação dos factos que foram dados como não provados pelo que, por aplicação do princípio in dubio pro reu, não se pode afirmar a sua verificação.
Para a formação da convicção do Tribunal consideramos ainda o relatório de autópsia de fls. 595 a 598, o relatório de exame pericial de fls. 314 a 327, o relatório de exame toxicológico de fls. 571 a 574, as fotografias de fls. 6 a 9, a reportagem fotográfica de fls. 21 a 39, as fotografias de fls. 44 e 45, o teor do auto de fls. 77, o auto de transcrição de mensagem sms de fls. 95, a informação de fls. 400 a 401, o teor do auto de notícia de fls. 538 a 539, o teor do auto de apreensão de fls. 540, a listagem telefónica de fls. 566 a 567 e a planta tridimensional de fls. 575.
Refira-se ainda que as testemunhas A… e E … foram confrontados com o teor das declarações para memória futura de fls. 267 a 269, 496 a 499 (com expressa remissão para fls. 422, 423 e 493) e 500 (com expressa remissão para fls. 472 a 475 e 495).”
2.2 Como é dado assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
No seu recurso, o Ministério Público formulou as seguintes conclusões (transcrição):
“1°. O Douto Acórdão recorrido absolveu a arguida do crime que lhe era imputado por ter ficado na dúvida sobre se foi efectivamente a arguida a determinar os agentes do crime, N… (adiante designado por N ) e G… (adiante designado por G) a matar R….
2°. Ora, entende o Ministério Público que essa dúvida não é razoável, porque contraria as regras da experiência comum, nem objectiva, pois não é baseada em elementos de prova produzidos em audiência.
3°. Não tendo qualquer reparo, pelo contrário, à muito bem elaborada fundamentação de direito constante do acórdão, aderimos também à quase totalidade da leitura que o Tribunal fez da prova produzida em audiência.
4°. A discordância surge na conclusão que o Tribunal extraiu da prova produzida, pois, enquanto o Tribunal entende que a mesma é insuficiente, entende o Ministério Público que a prova, valorada da forma como o Tribunal o fez, não permite manter uma dúvida, razoável e objectiva, sobre a prática do crime por parte da arguida.
5°. Como ponto de partida, começamos logo por reproduzir a douta decisão recorrida, quando afirma não existirem dúvidas que:
- R… morreu
- A morte foi causada por terceiros, intencionalmente, e, pelo menos, por dois indivíduos
- A intenção da morte não foi o roubo
- Quem o matou era seu conhecido (sublinha-se este ponto, pois é essencial)
6°. Com base nestes factos dados como provados, resultou dos depoimentos de G (estando o seu depoimento na cassete 1, desde o n.° 1405 ao 2500 do lado A e desde o n.° 5 ao 1404 do lado B) e DM …estando o seu depoimento na cassete 1, desde o n.° 1405 ao 2485 do lado B da cassete 1) que, não tendo vestígios do autores, uma vez que estavam perante uma vítima que era cidadão brasileiro, deslocaram-se à comunidade Brasileira e contactaram amigos da vítima, para tentar encontrar “pistas” de investigação.
7°. Nestas diligências, apenas apuraram dois motivos possíveis para o homicídio:
- Uma rixa envolvendo um cidadão Português, na qual R… teria estado envolvido
- Referências a ciúmes por parte da arguida O…, que seriam relativamente fortes para justificarem ser uma pista de investigação para o homicídio
8°. Sucede que, 12 dias depois do crime, S… (inquirido para memória futura e ouvido na própria audiência, por indicação da própria arguida, estando o seu depoimento na cassete 1, desde o n.° 2485 ao 2500 do lado B e desde o n. 5 ao 1939 do Lado A da cassete 2), recebeu a mensagem de fls. 95, que consubstancia uma ameaça de morte, sabendo-se na altura que ele estava a acompanhar a polícia nas suas averiguações na comunidade brasileira.
9°. Uma vez que o Tribunal deu como provado que quem enviou a mensagem foi a arguida, uma coisa podemos concluir: a arguida não era alheia nem desinteressada face à morte do R…, mesmo desconhecendo-se o motivo desse interesse.
10°. Através do depoimento de A… (estando o seu depoimento na cassete 4, desde o n.° 10 ao 2498 do lado A e desde o n.° 6 ao 1860 do Lado B), magistralmente conduzido pelos Mmos Juízes que compuseram o Colectivo, foi possível apurar que a mesma disse a verdade quando, perante a Polícia, declarou que a arguida “explicou-lhe então que tinha mandado duas pessoas bater-lhe (no R…) pelo facto de sentir raiva por ter sido trocada pela tal “minina” brasileira e porque tinha sabido que o R… ia casar-se com ela no Brasil, mal fizesse 18 anos. Inicialmente incrédula, a depoente perguntou-lhe se era verdade que tinham cortado a garganta do R, como tinha ouvido dizer aos amigos do falecido, mas ela respondeu que não era verdade, pois os tais indivíduos a quem tinha encomendado aquele serviço lhe disseram que lhe tinham dado com um pau na cabeça e que lhe tinham espetado uma faca no pescoço”.
11.º Repete-se que foi possível concluir que este depoimento correspondia à verdade, não existindo qualquer motivo - pelo contrário - para a testemunha inventar o teor deste depoimento.
12° .Este depoimento, essencial, foi depois corroborado pelo depoimento de E… (estando o seu depoimento na cassete 2, desde o n.° 80 ao 2220 do lado B), que declarou que N… lhe disse que a arguida lhe tinha pedido para matar o R…, serviço pelo qual lhe pagaria € 2.000 euros, por ciúmes. N… propôs à testemunha associar-se ao pedido, mas a testemunha negou. Apercebeu-se ainda que os contactos da arguida com o N… continuavam, e que o N…disse quer a arguida lhe iria dar dinheiro para comprarem uma arma. Depois do crime viu o N… com dinheiro na mão, dinheiro esse que o N disse que lhe tinha sido dado pela arguida.
13.º Estes depoimentos, essenciais, foram depois corroborados pelos restantes elementos de prova.
14.º Desde logo, as listagens com as inúmeras chamadas telefónicas efectuadas entre a arguida e os dois autores materiais do crime, que terminaram abruptamente, precisamente após o crime, apesar de um dos arguidos ainda ter ficado em Portugal algum tempo.
15°. Por outro lado, os depoimentos dos patrões dos autores materiais, que referiram que ambos foram para o Brasil, um deles, o N…, sem qualquer aviso prévio, e o G… com intenção de voltar, o que não se concretizou.
16°. De referir ainda o depoimento de DH… (cujo depoimento consta na cassete 3, desde o n.° 1885 a 2500 do lado A), que confirma que G… lhe pediu para comprar uma arma, pois tinha um serviço em …, mas depois desistiu de a adquirir (facto este que o Tribunal deu como provado).
17°. Face a estes elementos, entendemos não existirem dúvidas razoáveis e objectivas sobre a autoria do crime por parte da arguida.
18°. Sendo evidente que é a acusação que tem de provar a prática do crime, não podendo ser valorado o silêncio da arguida, o certo é que a prova da defesa, que terá, obviamente, de ser valorada, seja a favor seja contra a arguida, acabou por confirmar o que já se sabia com a prova da acusação.
19° As testemunhas de defesa, amigos e familiares da arguida, desde logo, não conseguiram abalar a força probatória das inúmeras chamadas telefónicas efectuadas pela arguida e o facto de ter sido a arguida a ameaçar a testemunha S….
20°. Também importante, quanto a nós, foi a circunstância de, pessoas ligadas, não só à arguida como à comunidade brasileira onde também se inseria a vítima, não terem suscitado qualquer outro conflito, diferendo, problema, qualquer coisa que pudesse levantar qualquer suspeita de quem também poderia ter pretendido matar o R….
21°. Como se disse logo no início, e tal como sustenta o Tribunal, quem matou o R… era seu conhecido. Sendo seu conhecido, seria normal que alguém, directa ou indirectamente pudesse levantar qualquer leve suspeita de que outra pessoa também poderia querer matar o R….
22°. Ninguém sequer sustentou que, tanto o N… como o G…, teriam qualquer motivo para querer matar o R…. Nenhuma das pessoas ouvidas sequer declarou que poderiam ter sido o N… ou o G…, por sua iniciativa.
23°. É também por este silêncio (como se costuma dizer, silêncio ensurdecedor), que entendemos não existirem fundamentos para sustentar a dúvida do Tribunal, que desta forma se mostra desrazoável e subjectiva.
24°. Em conclusão, entendemos que a prova produzida, valorada como acima se referiu e que, no fundo, foi adoptada pela própria decisão recorrida, impõe que se dê como provado que foi a arguida a determinar N… e G… a matar o R…, incorrendo assim a mesma na prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. no art. 131° e 132°, 1 e 2, ai. i), por premeditação, devendo a Douta decisão ser alterada, condenando-se a arguida pela prática de um crime de homicídio qualificado, numa pena de prisão que não poderá ser inferior a 16 anos.
25°. Em consequência, o presente recurso deverá ser considerado procedente e, como tal, substituída a decisão que absolveu a arguida por outra que a condene, nos termos acima referidos.”
3. Como é sabido, a decisão sobre a matéria de facto pode ser alvo de recurso em dois planos bem distintos:
Uma primeira forma de colocar em crise a decisão de facto consiste na alegação de um dos vícios do artigo 410º nº 2 do CPP (ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou o erro notório na apreciação da prova).
Neste caso, também de conhecimento oficioso, o objecto de apreciação encontra-se bem delimitado: trata-se de analisar apenas a decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras normais de experiência comum.
O Ministério Público recorrente não suscita na motivação ou nas conclusões, nem agora vislumbramos que se verifique, qualquer um dos vícios decisórios previstos no citado artigo 410º nº 2 do CPP, ou seja, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou o erro notório na apreciação da prova.
Num segundo plano, este já de “verdadeiro recurso de impugnação em matéria de facto” (artigos 412.º, n.ºs 3 e 4, 428.º e 431.º do CPP) , a análise não se limita ao texto da decisão e envolve a apreciação da prova produzida ou examinada em audiência de julgamento.
Ainda assim, em princípio, o recurso não pressupõe nem se destina a uma reapreciação global de todos os elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas apenas a uma reapreciação autónoma da decisão tomada pelo tribunal a quo, circunscrita aos factos individualizados que o recorrente considere incorrectamente julgados, na base, para tanto, na avaliação das provas que impunham uma decisão diferente. A questão a resolver consiste fundamentalmente assim em saber-se houve erro no julgamento de facto ou seja, se ocorreu uma valoração indevida de elementos de prova e provas concretas que impunham uma decisão diferente.
Será possível concluir da motivação e das conclusões que o recorrente se pretende situar no quadro da impugnação da decisão em matéria de facto e por isso indica como incorrectamente julgados os pontos referentes à autoria do crime pela arguida.
Como tem sido repetidamente afirmado a partir da lição de Castanheira Neves e de Figueiredo Dias, importa reter que a verdade a que se chega no processo não é a verdade absoluta ou ontológica, mas uma verdade judicial e prática, uma «verdade histórico-prática e, sobretudo, não uma verdade obtida a todo o preço mas processualmente válida”.[DIAS, Figueiredo, Direito Processual Penal, I, 1981, Coimbra Editora, p. 194.]
Por isso, tratar-se-á em todo o caso de uma verdade aproximativa ou probabilística, como acontece com a toda a verdade empírica, submetida a limitações inerentes ao conhecimento humano e adicionalmente condicionada por limites temporais, legais e constitucionais, traduzindo-se num tão alto grau de probabilidade que faça desaparecer toda a dúvida e imponha uma convicção.
A doutrina tem acolhido e densificado o critério prático de origem anglo-saxónica, decorrente do princípio constitucionalmente consagrado da presunção de inocência e com base no qual o convencimento do tribunal quanto à verdade dos factos se há-de situar para além de toda a dúvida razoável[ Ver sobre este tema DIAS, Jorge Figueiredo, Direito Processual Penal, I, Coimbra Editora, 1981, pp. 204-205, TONINI, Paolo, Manuale di Procedura Penale, 11ª ed. Giuffré Editore, Milano, 2010, pp 238 a 240, La Prova Penale, 4ª ed. Cedam, Pádua, 2000, pp. 53-55, ANTÓN, Tomás Vives, “El Processo Penal De La Presunción de Inocência, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 34-35, Beltran, Jordi Ferrer, Los estándares de prueba en el proceso penal español, in www.uv.es/CEFD/15/ferrer.pdf (consultado em 16/6/2012), TARUFFO, Michele, Conocimento Cientifico Y Estandares de Prueba Judicial, Boletin Mexicano de Derecho Comparado», anoXXXVIII,n.º114,Septiembre-Deciembre2005,in http://www.juridicas.unam.mx/publica/rev/indice.htm?r=boletin&n=114, consultado em 16/6/2012.].
Embora se reconheça a dificuldade, senão impossibilidade, na definição dos parâmetros objectivos em que deve assentar este standard probatório, entende-se que a dúvida razoável poderá consistir na dúvida que seja “compreensível para uma pessoa racional e sensata”, e não “absurda” nem apenas meramente “concebível” ou “conjectural”.
Nesta perspectiva, o convencimento pelo tribunal de que determinados factos estão provados só se poderá alcançar quando a ponderação conjunta dos elementos probatórios disponíveis permitirem excluir qualquer outra explicação lógica e plausível. Ou, dito de outro modo, quem acusa não cumprirá o seu “ónus” quando aqueles mesmos elementos de prova recolhidos no processo permitirem uma construção alternativa assente em raciocínios razoáveis [Segundo escreve PAOLO TONINI, Manuale, cit. : “Pertanto, può ritenersi che l'accusa abbia adempiuto all'onere quando ogni differente spiegazione del fatto addebitato, basata sulle prove, appare non ragionevole;viceversa, l'accusa no ha adempiuto all' onere quando la risultanze processuali non sono idonee ad escludere una ragionevole ricostruzione alternativa prospettata dalla difesa sulla base delle prove acquisite.”].
4. Não houve declaração confessória, testemunho ou outro meio de comprovação imediata e directa dos eventos materiais referentes à morte da vítima, nem de nenhum facto histórico em que se possa traduzir a instigação, o planeamento, ou a participação a qualquer outro título da arguida nesses mesmos acontecimentos.
Como é por demais sabido, a prova segura dos factos relevantes pode sempre resultar ainda de um raciocínio lógico e indutivo com base em factos ou acontecimentos “instrumentais” ou “circunstanciais”, mediante a aplicação de regras gerais empíricas ou de máximas da experiência (artigos 124º a 127º do CPP e quanto à utilização de presunções como meios lógicos ou mentais para a descoberta dos factos, os artigos 349º e 351º do Código Civil).
A lei processual penal não regula os pressupostos específicos para o funcionamento ou procedimento da prova indiciária ou por “presunção probatória”, mas a jurisprudência e a doutrina coincidem nos seguintes conceitos:
1.º - Os indícios são os factos–base, alcançados a partir de provas directas (testemunhais, periciais, documentais, etc.) e sob plena observância dos requisitos de validade do procedimento probatório.
2.º - A partir desses factos-base e mediante um raciocínio lógico e dedutivo, deve poder estabelecer-se um juízo de inferência razoável com o facto ou factos a provar. Este juízo de inferência deve revelar-se conforme com as regras de vida e de experiência comum – ou seja de normas de comportamento humano extraídas a partir da generalização de casos semelhantes - ou com base em conhecimentos técnicos ou científicos, comummente aceites. Apesar de se basear em critérios generalizantes, esse juízo de inferência deverá ter em consideração o concreto contexto histórico em que se inserem os factos individualizados, com a concorrência de todas as especificas circunstâncias aí relevantes. Como escreveu CASTANHEIRA NEVES “As regras de experiência, os critérios gerais não serão aqui mais do que índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância, orientam os caminhos da investigação e oferecem probabilidades conclusivas, mas apenas isso – é assim em geral, em regra, mas sê-lo-á realmente no caso a julgar ?” [ In “Sumários de Processo Criminal” (1967-1968), Coimbra, 1968, pp 47-48, citado por Mendes, Paulo de Sousa, “A Prova Penal e as Regras da Experiência”, Estudos em Homenagem ao Professor Figueiredo Dias, III, Coimbra, 2010, pp 997-1011].
3.º-A eficácia probatória da prova indiciária depende da existência de uma ligação precisa e directa entre a afirmação base e a afirmação consequência, por forma a permitir uma conclusão segura e sólida da probabilidade de ocorrência do facto histórico probando;
4.º - Embora se admita a eventualidade da existência de apenas um indício, desde que veemente e categórico, entende-se necessário que os factos indiciadores sejam plurais, independentes, contemporâneos do facto a provar, concordantes, conjugando-se entre si e conduzindo a inferências convergentes;
5.º - A capacidade demonstrativa da prova indicaria não pode ser determinada pela análise isolada de cada indício ou facto base, nem de uma forma meramente formal.
Com efeito, os indícios recolhidos devem ser todos apreciados e valorados em conjunto, de um modo crítico e inseridos no concreto contexto histórico de onde surgem. Nessa análise crítica global, não podem deixar de ser tidos em conta, a par das circunstâncias indiciadoras da responsabilidade criminal do arguido, também, quer os indícios da própria inocência, ou seja os factos que impedem ou dificultam seriamente a ligação entre o acusado e o crime, quer os “contra indícios”, ou seja os indícios de teor negativo que a partir de máximas de experiência, enfraquecem ou eliminam a conclusão de responsabilização criminal extraída do indício positivo. Com efeito, “só após o sopesar das provas em sentido contrário e da respectiva valoração judicial se converterá o conhecimento provável em conhecimento certo ou pleno e só este convencimento alicerçado numa sólida estrutura de presunção indiciária - quando é este tipo de prova que está em causa - pode alicerçar a convicção do julgador ”. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2012,proc.233/08.1PBGDM.P3.S1).
Se existe a possibilidade razoável de uma solução alternativa, ou de uma explicação racional e plausível diferente, dever-se-á sempre aplicar a mais favorável ao acusado, de acordo com o princípio in dubio pro reo. Como escreveu CASTANEDA, “para que la construcción de la prueba indiciaria pueda desvirtuar válidamente la presunción de inocencia, la conclusión a la que se arribe debe estructurarse más allá de toda duda razonable. Ya que, el derecho a la presunción de inocencia constituye un estado jurídico de la persona que se encuentra imputada, debiendo orientar la actuación del tribunal competente, independiente e imparcial preestablecido por ley, mientras tal presunción no se pierda o destruya por la formación de la convicción del órgano jurisdiccional a través de la prueba objetiva, sobre la participación culpable del imputado o acusado en los hechos constitutivos de delito, ya sea como autor, cómplice o encubridor, condenándolo por ello a través de una sentencia firme fundada, congruente y ajustada a las fuentes del derecho vigentes” [Neste âmbito, seguimos de muito perto o entendimento exposto nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2007, Relator Armindo Monteiro, proc. 07P4588, de 12-03-2009, Santos Cabral proc. 09P0395, de 06-10-2010, Henriques Gaspar, proc. 936/08.JAPRT, de 07-04-2011, Santos Cabral proc 936/08.0JAPRT.S1, de 09-02-2012, Armindo Monteiro, proc. 1/09.3FAHRT.L1.S1, de 09-02-2012, Santos Cabral, proc. 233/08.1PBGDM.P3.S1, do Tribunal da Relação de Lisboa de 07-01-2009, Carlos Almeida, proc. 10693/08, 3ª secção e do Tribunal da Relação de Coimbra de 11-05-2005, Oliveira Mendes, proc. 1056/05, todos acessíveis in www.dgsi.pt , bem como no estudo “Prova Indiciária e Novas Formas de Criminalidade”do Juiz Conselheiro Santos Cabral, acessível in www.stj.pt;
Na doutrina, recolhemos os ensinamentos de: SILVA, Germano Marques da, “Curso”, II, Lisboa, Verbo, 1993, p 82, CASTANEDA, Juan Antonio Rosas “Algunas consideraciones sobre la teoría de la prueba indiciaria en el proceso penal y los derechos fundamentales del imputado”, in http://www.porticolegal.com/pa_articulo.php?ref=285, acedido em 18/06/2012, ALCOY, Francisco Pastor, “Prueba de indicios, credibilidad del acusado Y presunción de Inocência, Tirant lo Blanch, Valencia, 2003, BATTAGLIO, Silvia, “Indizio” e Prova Indiziaria” nel Processo Penale”, Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, Milano, Giufrèditore, Ano XXXVIII, 1995, p 375. TONINI, Paolo, “Manuale di Procedura Penale”, 11ª ed. Giuffré Editore, Milano, 2010, pp 216 e “La Prova Penale”, 4ª ed. Cedam, Pádua, 2000, pp. 32, MITTERMAIER, “Tratado dela Prueba en Materia Criminal”, Madrid, Hijos de Réus Editores, 6ª edição, p 366 e p 387.].
5. Aplicando agora estas considerações gerais nos presentes autos e depois de termos procedido a audição integral do registo áudio das declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento:
Verifica-se consonância absoluta quanto aos elementos probatórios iniciais: perante o resultado da apreciação das primeiras diligências da autoridade policial, do relatório da autópsia e do exame pericial ao veículo que a vítima conduzia, é possível inferir com a necessária segurança que a morte de R Francisco Sousa, cidadão de nacionalidade brasileira, foi causada intencionalmente por intensas pancadas na cabeça e golpes de objecto perfurante no pescoço da vítima, desferidas repetidamente por duas pessoas. Ao que tudo indica, essas duas pessoas viajavam com o arguido, seriam do seu conhecimento e não agiram com o objectivo de um mero assalto ou “roubo” da vítima.
Perante estes sinais, a investigação orientou-se inicialmente para duas linhas diferentes de “suspeitas”, relacionando o crime com uma anterior rixa envolvendo um cidadão português e ocorrida em data próxima, ou com a existência de ciúmes por anterior namorada da vítima.
Na valoração própria do Ministério Público recorrente, os meios de prova que impõem uma decisão diferente da constante do acórdão do tribunal colectivo são em primeiro lugar os indícios referentes ao móbil do crime, que sugerem a existência de sentimentos de ciúme, despeito, ódio e ameaças de O… a R… pelo fim de uma anterior relação sentimental de “namoro” e decorrentes dos depoimentos das testemunhas E…, e A…. expresso
Neste âmbito, impõe-se notar que nenhuma das pessoas presenciou directamente um único comportamento violento da arguida, ouviu a afirmação concreta de uma ameaça perante R… ou sequer uma discussão intensa entre ambos.
Trata-se, em todos os casos, da narração do que as testemunhas ouviram dizer quer pela arguida, quer pela vítima, ou seja, de depoimentos indirectos. Estes elementos probatórios, uma vez submetidos ao contraditório como o foram, podem ser avaliados conjuntamente com a demais prova produzida ou examinada, na audiência conforme o princípio geral da livre apreciação da prova (art.º 129.º do CPP, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-11-2001, Simas Santos, proc. 01P3258 e quanto a afirmações produzidas extraprocessualmente pelo arguido, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-09-2007 Pires da Graça, proc 07P2596 in www.dgsi.pt e acórdão do Tribunal Constitucional n.º 440/99, de 8 de Julho, acessível in www.tribunalconstitucional.pt). Haverá contudo de ter presente que a total ausência de imediação entre o tribunal e a “fonte” que proferiu a afirmação relevante dificulta ou impede mesmo a apreensão de qualquer um dos elementos que normalmente podem aferir da fiabilidade e mesmo seriedade das afirmações relevantes (contexto concreto de tempo e modo, tom de voz, mímica, espontaneidade, etc.). Com efeito, “os depoimentos indirectos são caracterizados por problemas específicos, não só pelo risco de existirem falsificações intencionais ou atitudes de desresponsabilização da parte de quem conta factos a que pessoalmente não assistiu, mas também pela concreta possibilidade de distorções da recordação dependentes dos próprios mecanismos de funcionamento da memória, que compreendem a perda da forma superficial em que a informação foi apresentada e, simultaneamente, a conservação do seu significado essencial, com alterações destinadas a conformá-las aos ulteriores conhecimentos do sujeito” (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11-10-2006, proc. 5998/2006-3, Carlos Almeida, citando BÁLSAMO, António e PIPARO, ÂNGELA lo, in www.dgsi.pt ).
Haverá ainda que sopesar os contra-indícios existentes neste âmbito: as testemunhas C… (da arguida), F… (afirmou ser amiga muito próxima e ter vivido na casa de O…), M… e JC … (vive com a … da arguida), apesar da proximidade diária ao longo de um largo período de tempo, nunca presenciaram qualquer discussão ou “ameaça” entre O… e R… e afiançaram que ambos mantinham um relacionamento “normal” após o fim do namoro. Sendo ainda de notar que a testemunha JM… afirmou que no mês anterior ao crime estabelecera e mantivera um relacionamento amoroso com a arguida, com quem se encontrava em estabelecimentos de diversão nocturna, sem nunca se dar conta de qualquer ódio ou raiva da O… para com o R….
No seu recurso, o Ministério Público considera como essencial para justificar uma decisão diversa o segmento do depoimento de A… em que esta testemunha declarou que a arguida lhe tinha dito, já depois do crime, que tinha mandado duas pessoas bater no R…. Naturalmente que se trata de uma afirmação importante, uma vez que, em princípio, ninguém afirma perante terceiros a autoria de um crime de sangue sem que isso corresponda à verdade.
Impõe-se uma análise mais rigorosa quanto à aquisição probatória do teor desse segmento do depoimento: Recorde-se que A… proferiu aquelas afirmações quando inquirida em inquérito por um inspector da Policia Judiciária (fls. 197-199), mas não as confirmou nem repetiu perante o tribunal em auto de declarações para memória futura (fls. 267-268). Na audiência de julgamento, em extenso e pormenorizado depoimento, quer espontaneamente quer a perguntas do tribunal colectivo, A…, embora sempre num modo vago, impreciso e contraditório, apenas admitiu que a O… lhe mostrou uma fotografia do R… e que mantiveram uma conversa “normal” (sic) sobre o crime. No mais, a testemunha sempre negou que alguma vez a arguida lhe tenha afirmado que mandara bater no R… e inexiste qualquer elemento do depoimento prestado para memória futura ou na audiência de julgamento que permita razoavelmente extrair conclusão diferente.
Ora, como todos sabemos, só podem ser valoradas para o juízo probatório as provas que tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência e os depoimentos prestados por testemunhas em inquérito perante órgão de policia criminal não podem ser lidos em audiência, salvo se o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura (artigos 355.º e 356.º, ambos do CPP).
Deste modo, não tendo havido acordo, as concretas afirmações produzidas pela testemunha em inquérito, perante órgão de polícia criminal, que não são confirmadas nem repetidas em depoimento para memória futura, nem posteriormente na audiência de julgamento, não podem ser valoradas para formação da convicção do julgador, ainda que essas declarações prestadas no inquérito tenham sido lidas à testemunha na diligência judicial de produção antecipada de prova. Nesta perspectiva, discordamos da análise feita a este propósito pelo tribunal colectivo e posteriormente pelo Ministério Público nas motivações de recurso. Apesar da convicção pessoal que se gerou nos membros do tribunal colectivo perante a quase “grotesca” sucessão de “versões” e da insubsistência dos motivos invocados pela testemunha para a diferença de sentido nas respostas subsequentes, aquele segmento do depoimento prestado por A… na Policia Judiciária nunca poderia ser valorado em sede de formação da convicção do tribunal em julgamento final, por não ser de aquisição processualmente válida.
Como indícios probatórios susceptíveis de relevar para o apuramento da verdade, devem ser ainda ser ponderados os elementos referentes aos encontros e conversas entre O… e N… na casa de A… bem como as declarações de N… ao seu amigo E….
Com efeito, afigura-se inequívoco que a testemunha E… narrou elementos fácticos de evidente relevo no sentido da incriminação da arguida. [Esta testemunha afirmou no depoimento para memória futura e depois confirmou na audiência de julgamento que, em síntese, N... conversou por duas vezes com O...na casa de A..., que N... lhe disse que a O...lhe tinha “encomendado” a morte do R... por 2000 € . Assim como testemunhou que Ndisse que ia “avançar”, se necessário sozinho e que ia matar o R.... Declarou ainda esta testemunha que pelas 18 h do dia 1/12 o N... lhe disse que ia sair e se surgisse oportunidade iria concretizar o plano combinado com a O..., ou seja matar o R... Mais afirmou a testemunha que no dia 3/12, na casa dele, o N confessou-lhe que tinha morto o R... e que só estava à espera que a Olhe ligasse para ir buscar o dinheiro, que no dia 4/12 N... foi-se despedir-se, dizendo-lhe que ia para o Porto, Nessa ocasião, o N.. ter-lhe-á mostrado um maço de notas de 50 € dizendo-lhe que era o dinheiro que a Olhe tinha entregue em pagamento da morte do R.]
As referências desta testemunha aos encontros ou conversas entre O… e N… surgem mesmo confirmadas por outros testemunhos (J…, F…e C …), sendo contudo de notar que em nenhum momento se concretiza o teor de uma qualquer conversa ou mesmo palavra por forma a permitir a conclusão de que se tratava do planeamento da morte de R….
No que diz respeito ao que a testemunha relatou por ter ouvido dizer a N…, valem aqui as considerações já acima expostas: uma vez submetido ao contraditório, como o foi, o teor do depoimento pode ser avaliado conjuntamente com a restante prova, conforme a livre apreciação e as regras da experiência comum, portando, sem qualquer hierarquia de valoração (art.º 129.º do CPP, encontrando-se adquirida a impossibilidade de comparência de N… por desconhecimento do paradeiro). Haverá contudo novamente de ter presente que o princípio da imediação sofre aqui uma total compressão, o que impede o tribunal de aferir da fiabilidade e mesmo da seriedade da afirmação inicial ou “fonte”. Outros elementos dispersos levam ainda a esbater a eficácia probatória desse segmento do depoimento: não se pode compreender muito bem o motivo que terá levado a testemunha E… a demorar mais de dois meses até relatar perante as autoridades policiais o que lhe tinha sido confessado por N…, uma vez que nada aconteceu, entretanto, que fizesse desaparecer ou diminuir o medo de represálias ou de “vingança”, quer em Portugal pessoalmente, quer no Brasil a familiares (confrontada pelo tribunal a testemunha nunca apresentou uma justificação plausível, repetindo afirmações vagas e imprecisas). Assim como não se percebe que N… tenha sempre sentido uma tão grande confiança no amigo para contar a própria intervenção no homicídio, bem como a instigação e planeamento pela arguida, chegando a mostrar as notas de pagamento, mas nunca tenha mencionado o mínimo elemento sobre a existência de uma segunda pessoa com intervenção directa nesses mesmos factos. Ou seja, fica por se perceber a ausência de qualquer referência por E à ligação e relação do seu amigo N… ao G … (“D”).
Ainda no âmbito das referências de N… ao pagamento pela arguida da quantia de 2000 €, haverá de ter presente os “contra-indícios” decorrentes dos testemunhos indicados pela defesa: com efeito, apesar da “irracionalidade” sempre presente nos chamados crimes “passionais”, muito dificilmente se conjuga a disponibilidade ou possibilidade de obtenção de uma quantia desse elevado valor com a previsível situação económica da arguida O… (emigrante em Portugal sem autorização de residência, desempregada depois de ter trabalhado alguns meses na colheita de frutos, a receber 2,5 € por hora e sem dinheiro para pagar a renda de casa, previsivelmente rodeada de pessoas de reduzida capacidade económica). Note-se ainda o “esforço” da defesa no sentido de procurar demonstrar que dias antes da conversa com E…, N… tinha recebido do seu patrão e por isso teria em seu poder a quantia de 300 a 400 €, em notas.
A realização de frequentes contactos e comunicações telefónicas entre O…, N… e G…, que logo terminam com a ocorrência do crime, as anteriores diligencias para aquisição de uma arma por G…, a mensagem de SMS enviada a partir de um telemóvel utilizado por A…, cunhada da arguida, bem como a súbita viagem para o Brasil sem retorno de N… e de G…, constituem igualmente circunstancias que poderiam eventualmente levar a concluir pela probabilidade de participação da arguida nos factos tal como lhe são imputados na acusação pública. Com efeito, o envio da mensagem SMS, de “ameaça” para a vida de S…, com o previsível intuito de condicionar a investigação, permite concluir logicamente por alguma ligação com as pessoas envolvidas no crime, a que certamente a arguida não será totalmente alheia e desinteressada. Impõe-se contudo notar que se desconhece em absoluto o teor das conversas pelo telefone, nada mais relaciona a aquisição de uma pistola com os factos destes autos, existiram desavenças e mesmo confronto físicos anteriores entre R… e N…, por um lado e entre o mesmo R… e entre “D”, por outro [S… falou de “uma “briga” entre R… e N… há 3 ou 4 anos. Viu o R… agarrar no pescoço do N…. Nessa ocasião, “S… também bateu no N…”. A testemunha R… também “viu uma “luta” entre R … e N… há cerca de dois anos”. ] , e que a deslocação para o Brasil de N… ou o não regresso de G…, ambos cidadãos brasileiros, se pode ter ficado a dever a medo de represálias em consequência dos rumores (porventura infundados) que logo se espalharam entre a comunidade brasileira na região.
Procedendo agora a uma análise global de valoração dos elementos probatórios disponíveis, à luz de regras normais de razoabilidade e de experiência comum, perante a convicção que nos resulta da audição do registo áudio e do exame dos autos:
As condições concretas em que é dado conhecimento ao tribunal das afirmações de N… perante E… , próprias de um testemunho indirecto e na ausência da “testemunha fonte”, ou seja, sem imediação, nem conhecimento do contexto circunstancial envolvente, não permitem de forma alguma apreender quais os reais motivos que poderiam estar subjacentes a uma “confissão” de um crime de tal gravidade. Tendo ainda em conta a ausência de corroboração por qualquer outro elemento de prova, ficam ainda fundadas dúvidas quanto à sinceridade e mesmo quanto à conformidade com a realidade das declarações de N… relatadas em tribunal pela testemunha E…. Assim sendo, não devem essas declarações do N… serem consideradas como “provadas” para efeito de constituírem “factos base” indiciadores. Também não poderá o tribunal valorar positivamente as declarações de A… perante a PJ no segmento em que se traduzia no fundo por uma confissão da arguida da autoria moral do crime, tendo em conta os fundamentos acima indicados, ou seja, porque nessa parte não houve depoimento válido em audiência de julgamento.
Em consequência, restam-nos como “factos-base” ou indícios, as referências das testemunhas ao ciúme e a “ameaças” da arguida perante a vítima, o teor da mensagem de SMS contendo o que se configura como uma ameaça de morte da testemunha S…, a ocorrência de encontros e de conversas entre N… e O…, os contactos para a compra de uma arma por G, a realização de numerosas ligações telefónicas entre N…, O… e G…, os sinais de “fuga” ou de não regresso a Portugal de N… e de G…, alguns dias após o crime.
Todos esses elementos inter-relacionados criam e justificam “suspeitas”, conjecturas ou probabilidades de incriminação da arguida, mas também admitem explicações alternativas plausíveis e, por isso, não permitem estabelecer uma ligação precisa e directa ou um juízo de inferência seguro com os factos probandos. Assim, uma vez esgotados os meios probatórios processualmente válidos, chegamos a uma situação de dúvida razoável, que não poderá deixar de beneficiar a arguida e de conduzir a uma decisão de improcedência da acusação.
Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12-03-2009, de inteira aplicação no caso presente, “num hipotético conflito entre a convicção em consciência do julgador no sentido da culpabilidade do arguido e uma valoração da prova que não é capaz de fundamentar tal convicção, será esta que terá de prevalecer. Para que seja possível a condenação não basta a probabilidade de que o arguido seja autor do crime nem a convicção moral de que o foi. É imprescindível que, por procedimentos legítimos, se alcance a certeza jurídica, que não é desde logo a certeza absoluta, mas que, sendo uma convicção com génese em material probatório, é suficiente para, numa perspectiva processual penal e constitucional, legitimar uma sentença condenatória. Significa o exposto que não basta a certeza moral mas é necessária a certeza fundada numa sólida produção de prova” (proc. 09P0395, Santos Cabral).
Concluímos assim que a análise crítica da prova da decisão recorrida se encontra alicerçada num raciocínio lógico e não encontramos fundamento que nos imponha uma solução diferente.
6. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, mantêm o acórdão recorrido que absolveu O… do cometimento em co-autoria material de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido nos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e n.º 2 alínea i) do Código Penal, na redacção da Lei n.º 65/98, de 2 de Setembro.
Sem tributação.
Lisboa, 04/07/2012.
Texto elaborado em computador e revisto pelo relator
João Carlos Lee Ferreira
Paulo Fernandes da Silva

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/8e6a4b734855238b80257a3a00628c9f?OpenDocument

Pesquisar neste blogue