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terça-feira, 6 de setembro de 2011

DESPACHO DE PRONÚNCIA, LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA, REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM, IN DUBIO PRO REO - Acórdão do Tribunal da Relação de Évora - 21/06/2011

Acórdãos TRE
Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1273/08.6PCSTB-A.E1
Relator: JOÃO GOMES DE SOUSA
Descritores: DESPACHO DE PRONÚNCIA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
REGRAS DA EXPERIÊNCIA COMUM
IN DUBIO PRO REO

Data do Acordão: 21-06-2011
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NÃO PROVIDO

Sumário: 1 - Se o despacho de pronúncia fundamenta a decisão mas é omisso quanto à parte decisória estaremos face a uma irregularidade de conhecimento oficioso, pois que a sua existência afecta a validade do acto praticado (artigo 123º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal).

2 - Tal irregularidade pode ser sanada fazendo uso do disposto no artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal, ou em sede de recurso dentro do âmbito de conhecimento concedido pelo nº 3 do artigo 410º do Código de Processo Penal, numa interpretação extensiva às irregularidades de conhecimento oficioso.

3 - Não é a “intime conviction” o conceito que exprime a certeza judicial, sendo aquela apenas a designação francesa do princípio da livre apreciação da prova tal como ficou conhecido no sistema cultural e legal francês, tendo em vista afastar o sistema da prova tarifada.

4 - O sistema da “livre convicção” deu origem a dois sistemas de convicção - um subjectivo, outro objectivo – e hoje é indubitável que o segundo sistema, o sistema racionalista, objectivo, assume maior preponderância doutrinal e jurisprudencial.

5 - O princípio da prova livre ou prova moral deve ser associado a uma discricionariedade do juiz na apreciação probatória mas apenas no sentido de o não vincular a uma valoração probatória pré-definida, porque apenas nisso é livre, mas não exime o juiz da busca da verdade através dos métodos epistemológicos aceites.

6 - O método epistemológico, por excelência, aceite na busca da verdade dos factos é a razão. A fundamentação quer-se assente na razão e não numa apreciação subjectiva insindicável.

7 – A função das regras da experiência e das regras de convivência social é o de fornecerem um conhecimento empírico que suporte uma presunção.

8 - A argumentação lógica a desenvolver numa presunção simples supõe o estabelecimento de um nexo causal entre o facto conhecido e o facto desconhecido, supõe a existência de regras da experiência, de convivência social, observadas empiricamente e que permitam relacionar os dois factos.

9 - Essa relação deve assentar num juízo lógico seguro, causal, sequencial, preciso, directo e unívoco, logo necessário. Não basta, pois, a mera verosimilhança, o provável, o plausível, para que se permita operar de forma capaz uma presunção hominis.

10 - Essa presunção fortalecer-se-á se houver concordância de juízos no caso de pluralidade de factos que conduzam à mesma conclusão.

11 - A origem da máxima, beyond reasonable doubt, (para além de toda a dúvida razoável), apenas quer significar um mais rigoroso e mais alto nível de probabilidade do que o expresso na teoria do “balance of probabilities” (aplicado aos casos civis), e parece situar-se na busca dos tribunais ingleses – nos séculos 16 e 17 - pela resposta à questão “como sabemos que as coisas são verdadeiras?”, questão que parece ter obtido resposta nas considerações sobre níveis de probabilidade de John Locke nos “Ensaios sobre o Entendimento Humano” (1690).

12 - O “padrão de prova” civil (“mais provável do que não”) é relevante para o processo criminal porquanto assente que é o nível exigido ao réu se lhe interessar fazer prova de um facto.

13 - A doutrina portuguesa tem revelado uma certa constância na aceitação da necessidade de emitir – para um juízo indiciário - um juízo de probabilidade idêntico ao juízo de convicção probatória, de verdade judicial, tanto quanto a jurisprudência se tem inclinado para uma tese de maioria probabilística.

14 - O argumento de que – com a actual estrutura do processo penal português – o Ministério Público já dispõe, salvos casos muito excepcionais, de toda a prova que é possível recolher favorável à acusação, é um argumento mais a favor da tese da necessidade de um juízo de uma mais alta probabilidade de condenação.

15 - Essa maior exigência de convicção não se basta com um juízo de maior probabilidade (de condenação do que de absolvição), com um juízo matemático de mais de cinquenta por cento de hipóteses de condenação. O juízo exigível para se considerar a indiciação suficiente deve afirmar-se numa fórmula de forte, alta probabilidade de condenação, de predominância de um juízo de culpabilidade do arguido, de convicção de condenação do arguido, isto é, um juízo de “certeza” judicial.

16 - Na prática, o juízo de certeza judicial vigente no ordenamento jurídico processual penal português em nada difere do beyond reasonable doubt.

17 - O princípio in dubio pro reo é de aplicação indubitável a todas as fases do processo, seja em sede de juízo de certeza judicial, seja em sede de juízo judicial de indiciação e nem do seu uso está isento o Ministério Público no momento de dedução da acusação.

18 - Se os elementos probatórios permitem concluir pela inexistência de indícios, é patente, ostensiva, a desnecessidade de recurso ao princípio in dubio pro reo.


Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na 2º Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

A - Relatório:
Nos autos de Instrução supra numerados que corre termos no Tribunal de Setúbal – JIC - encerrado o inquérito, o Ministério Público deduziu acusação contra os arguidos FB e LS, imputando-lhes determinada factualidade que, no seu entender, consubstancia a prática:

a) pelo primeiro, como co-autor, de um crime de coacção grave, previsto e punível pelo disposto nos artigos 154º, números 1 e 2, e 155º, número 1, al. a), ambos do Código Penal, com referência aos artigos 10º, 14º, número 1, e 26º, todos do mesmo diploma; e,

b) ao segundo, em concurso efectivo, como co-autor, de um crime de coacção grave, previsto e punível pelo disposto nos artigos 154º, números 1 e 2, e 155º, número 1, al. a), ambos do Código Penal, com referência aos artigos 10º, 14º, número 1, e 26º, todos do mesmo diploma e de um crime de ameaça grave, previsto e punível pelos artigos 153º, número 1, e 155º, número 1, al. a), com referência aos artigos 10º, 14º, número 1, e 26º, todos do Código Penal.

I – S., Lda., assistente nos autos, a fls. 891 e seguintes, deduzir acusação particular contra RC, Unip. Lda. (actualmente denominada S – …. Unipessoal Lda., cfr. certidão de fls. 622) e LS, imputando-lhes a prática de um crime de ofensa a pessoa colectiva, previsto e punível pelo artigo 187º, número 1, do Código Penal.

O Ministério Público não acompanhou tal acusação no que toca à arguida sociedade, tendo-o feito em relação ao arguido LS (fls. 969-970).

Inconformado com a decisão acusatória pública, veio o arguido FB requerer a abertura de instrução, com os fundamentos que constam do requerimento de abertura de instrução de fls. 980 e seguintes, onde nega ter praticado os factos que lhe são imputados, alegando que o arguido LS agiu por sua conta e risco, em desobediência aos deveres para ele decorrentes do contrato de agência que celebrou com a sociedade da qual era gerente à altura dos factos.

Declarada aberta a instrução, teve lugar o debate instrutório, no qual se decidiu:

PRONUNCIAR, nos termos do disposto no artigo 308º, número 1, do Código de Processo Penal, para julgamento em processo comum e com intervenção do tribunal singular LS, gestor de créditos, pela prática, como autor material, em concurso efectivo, de um crime de coacção grave, previsto e punível pelo disposto nos artigos 154º, números 1 e 2, e 155º, número 1, al. a), ambos do Código Penal, com referência aos artigos 10º, 14º, número 1, e 26º, todos do mesmo diploma e de um crime de ameaça grave, previsto e punível pelos artigos 153º, número 1, e 155º, número 1, al. a), com referência aos artigos 10º, 14º, número 1, e 26º, todos do Código Penal.

Inconformado com tal decisão, dela interpôs o Digno magistrado do Ministério Público junto do Tribunal de Setúbal o presente recurso, pedindo a sua procedência e requerendo que a decisão seja revogada, com as seguintes conclusões:

1- Na decisão instrutória proferida o Mm.º Juiz de Instrução decidiu pronunciar o arguido LS pela prática dos crimes de coacção grave e ameaça grave.

2- O facto de o inciso decisório ser omisso relativamente ao arguido FB, que requereu a abertura de instrução, constitui mera irregularidade, sanável oficiosamente a todo o tempo – artigos 308º, n.º 1, 118º, n.º 1 e 2, do Código de Processo Penal e artigos 308º, n.º 2 e 283º, n.º 3, a contrario sensu, artigos 119º, 120º, n.º 2, e 123º, n.º 2, todos do Código de Processo Penal.

3- O presente recurso pretende impugnar a decisão instrutória proferida na medida em que se consideraram como não suficientemente indiciados os factos constitutivos da responsabilidade penal do arguido FB e, consequentemente, não foi pronunciado pelo crime de coacção grave que lhe foi imputado na acusação, nos termos do artigo 308º, n.º 1, do Código de Processo Penal.

4- Indícios suficientes são aqueles dos quais resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles em julgamento, uma pena ou medida de segurança – artigo 283º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

5- Esta possibilidade razoável é uma possibilidade mais positiva do que negativa que resulta da apreciação de todos os indícios, sinais, vestígios, suspeitas, ou indicações existentes nos autos, na medida em que, logicamente relacionados e conjugados, permitem convencer quanto à existência do crime e seu responsável.

6- Nos autos, importa considerar os seguintes indícios:
a. O arguido LS agiu sempre em nome e no interesse e proveito exclusivos da empresa “RC Unipessoal, Lda.”, da qual o arguido FB era sócio e gerente – cfr. doc. de fls. 339;

b. Apresentou-se sempre como elemento de um grupo organizado de pessoas e de meios – a sociedade “Os S.F. – Recuperação de Créditos Unipessoal, Lda.” – que actuavam na actividade de cobrança de créditos, através dos procedimentos coactivos por si utilizados – cfr. os depoimentos das testemunhas MP (fls. 46), MM (fls. 48), S A (fls. 49), SG (fls. 348) e AM (fls. 350), PM (fls. 51 e 349), bem como a informação de serviço elaborada pelo agente da PSP Domingos (fls. 352), a cópia do cartão profissional de visita (fls. 234), e o aditamento ao auto de denúncia (fls. 57). Factualidade que foi considerada suficientemente indiciada pela decisão instrutória (artigos 7., 9., 12. 2 15. da matéria de facto considerada suficientemente indiciada pelo Mm.º Juiz de Instrução);

c. Os cartões de visita fornecidos pela empresa “Os SF – Recuperação de Créditos Unipessoal, Lda.” aos seus funcionários, não continham a verdadeira identidade daqueles mas sim um nome fictício (tal como o do arguido LS que se identificou como “RA” – cfr. artigo 5. da matéria de facto considerada suficientemente indiciada pela decisão instrutória), o que traduz uma medida de encobrimento da actividade desenvolvida pela empresa, certamente devido a falta de licitude da mesma – cfr. cópia do cartão de fls. 234, informação de serviço de fls. 252, denúncia de fls. 227, recibos de fls. 1135 a 1142.

d. O arguido FB era chefe directo do arguido LS, facto que implica o recebimento de ordens e instruções concretas quanto ao modo de actuação – cfr. depoimento das testemunhas VB e VR ouvidas em sede de instrução (acta de fls. 1163 e 1164, gravados em CD no dia 24-1-2011, entre as 14:28:43 e as 14:37:20, desde 00:00:00 a 00:08:23 – depoimento de VB – e entre as 14:38:16 e as 14:48:34, desde 00:00:00 a 00:10:05 – depoimento de VR);

e. O arguido FB conhecia o teor das queixas apresentadas nestes autos contra o seu colaborador LS por ameaça e extorsão, num momento em que tais condutas ainda decorriam, e declarou expressamente aprovar tais procedimentos – cfr. documento de fls. 1149 e 1150, e declarações do arguido FB de fls. 376 e 377.

7. Em face deste conjunto de indícios, relacionados entre si, mostra-se fortemente provável a condenação do arguido FB em julgamento, em que a prova será valorada de acordo com o princípio da livre convicção do julgador, sendo admissível, além do mais, o recurso a prova indirecta ou indiciária.

8. Acresce que o arguido LS poderá sempre prestar declarações em audiência de discussão e julgamento e esclarecer qual o envolvimento nos factos do arguido FB, podendo daí resultar a sua responsabilização penal.

9. O princípio in dubio pro reo é inaplicável em sede de instrução, porquanto o pressuposto da sua aplicação é incompatível com o critério de decisão e grau de convicção que se exige para a decisão instrutória.

10. Deste modo, devem considerar-se suficientemente indiciados, além dos factos já assim considerados pela decisão instrutória, a totalidade dos factos constantes dos artigos 4º, 5º, 17º, 18º, 19º e 21º da acusação.

11. Tais factos integram a prática: pelos arguidos FB e LS, como co-autores, de um crime de coacção grave, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 154º, n.º 1 e 2, e 155º, n.º 1, alínea a), com referência aos artigos 14º, n.º 1, 26º, 22º e 23º, n.º 2, todos do Código Penal; e pelo arguido LS, em concurso efectivo, de um crime de ameaça grave, previsto e punido pelos artigos 153º, n.º 1, e 155º, n.º 1, alínea a), com referência aos artigos 14º, n.º 1 e 26º, todos do Código Penal.

12. Pelos quais deverão ser ambos pronunciados.

13. Ao decidir pronunciar apenas o arguido LS, não pronunciando o arguido FB como co-autor pela prática de um crime de coacção grave, na forma tentada, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 308º, n.º 1 e 2, e 283º, n.º 2, do Código de Processo Penal, bem como o preceituado nos artigos 154º, n.º 1 e 2, e 155º, n.º 1, alínea a), do Código Penal.

Termos em que, e no mais que V. Exas. doutamente suprirem, deve a decisão recorrida ser revogada e substituída por outra que considere suficientemente indiciados os factos descritos nos artigos 4º, 5º, 17º, 18º, 19º e 21º da acusação e decida pronunciar o arguido FB pela prática de um crime de coacção grave, na forma tentada, previsto e punível pelos artigos 154º, n.º 1 e 2, e 155º, n.º 1, alínea a), com referência aos artigos 14º, n.º 1, 26º, 22º e 23º, n.º 2, todos do Código Penal.

Nesta Relação, a Exmª Procuradora-geral Adjunta, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
Foi observado o disposto no n. 2 do artigo 417° do Código de Processo Penal.

B - Fundamentação:

B.1 - São estes os elementos de facto relevantes e decorrentes do processo:

Nos autos nº 1.273/08.6PCSTB-A.E1 que corre termos no Tribunal de Setúbal, encerrado o inquérito, para além dos factos que constam do relatório supra, é relevante o teor parcial do despacho de pronúncia:

É este o teor parcial, na parte interessante, de despacho recorrido:
“……Factos suficientemente indiciados:

Com relevância para a decisão da causa, e tendo por base a factualidade e qualificação jurídica descritas no despacho de acusação – que define o thema decidendum da presente instrução - consideram-se suficientemente indiciados os seguintes factos:

1- O arguido FB é sócio e gerente da sociedade denominada “SC – Gestão de Créditos, Uni. Lda.” (à data dos factos com a firma “Os SF – …, Unipessoal Lda.”), que se dedica à actividade de aquisição de créditos para posterior recuperação em nome próprio.

2- No âmbito desta actividade, a sociedade “Os SF – … Unipessoal Lda.” celebrou um contrato de cessão de crédito com a sociedade “H.. – …, S.A.”, representada por PG e VP, mediante o qual esta lhe cedeu um crédito no valor de € 181.967, 26 que alegadamente detinha sobre a sociedade “G.., Lda.”, da qual é sócio gerente, entre outros, MP.

3- O ofendido MP é também sócio gerente da sociedade “I..-… Lda.”, com sede e estabelecimento na Rua…, em Setúbal.

4- Com o intuito de proceder à cobrança do crédito cedido, o arguido FB incumbiu o colaborador da sua empresa LS de contactar o ofendido MP.

5- Entre os dias 24 de Julho de 2008 e 28 de Setembro de 2008, o arguido LS deslocou-se diversas vezes à sede da sociedade “I”, sita na Rua …, em Setúbal, identificando-se como “Rui Alves”, e abordou MP, intimando-o a proceder ao pagamento da referida dívida.

6- Assim, no dia 24 de Julho de 2008, cerca das 11:00 horas, o arguido LS dirigiu-se à sede da I, dizendo que era “cobrador do fraque e ia cobrar uma dívida que o Sr. Mário tinha para com a H”.

7- Como não encontrou naquele local o ofendido MP o, o arguido L efectuou um telefonema para este, afirmando que “estava à sua espera, que não valia a pena esconder-se e que tinha mais colegas numa carrinha à sua espera”.

8- Nesse mesmo dia, pouco depois das 14:00 horas, o arguido LS dirigiu-se para a porta do estabelecimento da I e, gritando, disse que “viria as vezes que fossem necessárias até o Sr. MP pagar a dívida, que não valia a pena ele esconder-se atrás da polícia, que não resultaria, porque ele tinha outros métodos e acidentes podiam acontecer como uma ou várias montras da loja aparecerem partidas”.

9- Ainda na tarde do dia 24 de Julho de 2008, em conversa com o ofendido MP, o arguido LS referiu-lhe “Um dia pões um pé mal fora da estrada e passa um carro e há um acidente, e eu não vou estar aqui, porque nós somos muitos, eu vou estar longe e tenho um álibi – tenho recibos de portagens. Um dia vais na rua, passa alguém para te cumprimentar e é um de nós.”; “Em Timor matei por uma grade de cerveja.”; “Aqui estou sozinho, mas lá em baixo ao final da rua está mais gente numa carrinha que nunca saberás quem são.”.

10- Na mesma conversa, mencionou-lhe que tinha estado preso sete anos, que era assassino profissional, trabalhador da noite. Ao que acrescentou “O teu filho há-de chegar a casa um dia a casa com um cartão meu quando chegar do colégio”.

11- Simultaneamente abriu uma mala e mostrou um saco de transporte de cadáveres, dizendo “Tá a ver, de vez em quando usamos”.

12 - No dia 25 de Julho de 2008, dirigiu-se novamente a MP dizendo “Estou a ser pago para cobrar uma dívida, não interessa de que lado está a razão, as pessoas pagam sempre, quando não pagam em dinheiro acontece muitas vezes passarem três meses no Hospital e com outros bens destruídos”.

13- Noutras ocasiões, o arguido LS referiu também a MP:
a. que andava sempre armado;
b. que ele era o elo mais fraco e que os outros sócios só tinham cinco anos de vida;
c. que voltaria e traria a TVI e quando passasse por qualquer parte da cidade de Setúbal teria publicidade dizendo que a I devia dinheiro;
d. que conhecia piratas informáticos e que iria mandar sabotar o site oficial da I nele fazendo constar “Por ordem do tribunal de Setúbal a empresa encontra-se falida. Agradeço que todos os fornecedores contactem o Tribunal para dar andamento ao processo de execução.”;
e. “Vou à Feira de Santiago e coloco lá cartazes a dizer que vocês devem, nunca mais faz negócio, acabo com a vossa imagem e reputação.”.

14- Na prossecução do mesmo objectivo, o arguido LS efectuou diversas chamadas telefónicas para o ofendido MP, proferindo-lhe directamente expressões ameaçadoras e intimidatórias, bem como à sua família.

15- Assim, no dia 3 de Agosto de 2008, pelas 14:48 horas, o arguido efectuou um telefonema no qual comunicou ao ofendido MP “Vou arranjar uns clientes fictícios para irem ver casas com as vossas vendedoras e quando ficarem sozinhas com elas tudo pode acontecer, até podem ser violadas.”; “Vou para a porta dos sócios da empresa e faço-vos a folha.”; “Hoje vou até ao teu stand na Feira de Santiago, para provocar distúrbios”; “A empresa SF já contratou uns piratas informáticos para sabotarem os sites das tuas empresas I e JS.”

16- Posteriormente, no dia 16 de Dezembro de 2008, pelas 14:32 horas, o arguido LS telefonou para Ana M, colaboradora da empresa “I” para o telemóvel da empresa, e disse-lhe para ler a última página do jornal “Correio da Manhã” desse dia onde constava como notícia “Agente imobiliária assassinada – filho vê mãe degolada”, acrescentando “As reportagens vão continuar, as pessoas serão outras”.

17- A actuação descrita provocou em MP medo, receio e inquietação, que o levaram, designadamente, a retirar o seu filho para outro ponto do país, onde o soubesse seguro.

18- Porém, MP não procedeu ao pagamento da quantia exigida pelo arguido L.

19- O arguido LS previu e quis compelir MP ao pagamento da dívida, utilizando, para esse efeito, as expressões intimidatórias supra referidas.

20- Mais sabia o arguido LS que tais expressões eram susceptíveis de causar a MP medo e receio de que ele atentasse contra a sua honra, património, integridade física e vida, bem como da sua família, e até contra a liberdade de autodeterminação sexual das suas colaboradoras, sendo, dessa forma, adequadas a determiná-lo ao pagamento da referida dívida.

21- O arguido LS previu e quis, ainda, dirigir a Ana M. as expressões intimidatórias acima descritas, sabendo-as idóneas a fazê-la temer pela sua vida e, dessa forma, causar-lhe inquietude e desassossego.
22- Ambos os arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, sabendo o arguido Luís Silva que a sua conduta é proibida e punida por lei.

Factos não suficientemente indiciados.

Compulsada a matéria factual aduzida no teor do libelo acusatório, e com interesse para a boa decisão da causa, inexistem outros factos suficientemente indiciados.

Designadamente, não se indiciaram os seguintes factos:

1- Que o arguido F. tenha ordenado ao arguido L que, para constranger o ofendido M. a proceder ao pagamento do crédito que julgava seu, recorresse a meios intimidatórios e proferisse expressões ofensivas da sua honra, património, integridade física, e vida, bem como da sua família e até dos seus funcionários, tarefa que o arguido LS tenha aceite.

2- Que ao agir como descrito na factualidade dada por suficientemente indiciada, o arguido L. o fizesse em cumprimento das ordens e instruções que lhe foram dadas pelo arguido FB.

3- Que o arguido FB tenha querido e previsto, em comunhão de esforços e intenções com LS, compelir MP ao pagamento da dívida, permitindo a utilização, para esse efeito, das expressões intimidatórias supra referidas.

4- Que o arguido FB agisse convencido de que a sua conduta era proibida e punida por lei.
*
Motivação do tribunal no tocante à indiciação da matéria de facto.

Desde logo, e no que toca aos factos considerados suficientemente indiciados, no que concerne às realidades societárias, o tribunal formulou a sua convicção com base nas certidões de fls. 572 e seguintes, 622 e seguintes e 841 e seguintes.

Foi também tida em conta, no que toca à cessão de alegados créditos, a documentação de fls. 35-36 e 235 e seguintes.

Relevam, também neste tocante, as declarações de Pedro Godinho e Virgolino Parreira (na altura ainda na qualidade de arguidos).

No que toca à restante matéria suficientemente indiciada, o tribunal formulou a sua convicção por a mesma ter arrimo em várias versões trazidas aos autos, nomeadamente, a das testemunhas MP, MM, SA, PM, MA, SG, Ana M., MC e MS, todos ouvidos nos autos.

Apreciemos agora a matéria não indiciada.

Como se sabe, a instrução é um momento de comprovação da decisão de acusar. Decisão esta que assenta em diversos indícios. Apreciemo-los.

Como resulta da peça acusatória, a mesma assenta quer em prova testemunhal, quer em prova documental.

Porém, compulsada uma e outra, não conseguimos, com o devido respeito pela opção acusatória, encontrar nela indícios suficientes que permitam sequer imputar qualquer factualidade específica ao arguido FB, além do facto de ter subscrito a notificação de fls. 36 (na qual não se faz qualquer alusão violenta) e de, evidentemente, ser sócio-gerente da “SF” (certidão de fls. 622 e seguintes).

Nenhuma das testemunhas assinala qualquer intervenção do arguido F. nos factos – sendo de assinalar que o arguido L. não prestou declarações sobre os factos em sede de inquérito – fls. 40-41.

Feita uma apreciação global, é de concluir que os indícios da ocorrência dos factos só poderão assentar num raciocínio presuntivo de que o arguido F., enquanto superior hierárquico do arguido L., lhe teria ordenado que praticasse as condutas indiciadas, sendo certo que – sobre isso não parecem restar dúvidas – o arguido L. actuava em nome da sociedade de que era gerente (embora também no seu, evidentemente, uma vez que, como é costume nestes casos, a sua retribuição beneficiaria de uma parte variável, em função dos resultados obtidos).

Mas tal raciocínio presuntivo, para ser atendível - para poder fundamentar factos “suficientemente indiciados” – teria que assentar em factos demonstráveis em tribunal, os quais, salvo melhor opinião, não se vislumbram nos autos.
Na realidade, e ainda que entendêssemos como muito provável que o arguido F. tenha dado ordens ao arguido L. para proceder da forma indiciada (atendendo a que o tipo de “dívidas” que a “SF” se dedica a cobrar são, por natureza, de difícil recuperação), teríamos então que equacionar a dúvida, que se tornava relevante, a qual, por significativa, teria que aproveitar ao arguido.

Com efeito, sempre se dirá, o principio in dubio pro reo não deve ser atendido apenas em sede de julgamento, mas também em sede de instrução, já que o escopo desta é precisamente aferir da susceptibilidade de uma condenação penal.
Tenho entendido em fase de julgamento que a dúvida, para ser atendível, não pode ser uma dúvida qualquer, tem que ser relevante (se não equivalente, pelo menos de contornos aproximados à “reasonable doubt” da common law).

[Como se referiu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 2008, proc. 05P3199, in www dgsi.pt: “O grau de certeza que condiciona a decisão de culpabilidade é uma das questões mais obscuras do direito penal, afirma com toda a razão, Mireille Delmas-Marty:

"No common law, a regra elaborada pelos juízes ingleses dos séculos 17 e 18 para instruir os jurados quanto aos seus deveres, é que a culpa do acusado deve ser estabelecida beyond reasonable doubt, quer dizer: para além de toda a dúvida razoável". E KK explica que tendo os jurados o ónus de determinar a verdade e sendo forçados a levar em conta a credibilidade das evidências e, já nos finais de Seiscentos, o testemunho dos depoentes - foram eles quem ajudou a definir um conjunto de padrões para avaliar a veracidade das afirmações.

No Continente europeu, a ideia de certeza exprime-se pelo princípio chamado da "íntima convicção".

"Esta noção" - escreve ainda Delmas-Marty -, "que é complementar da liberdade da prova sendo aparentemente diferente daquela outra da dúvida razoável, tem na realidade uma dupla significação que as aproxima: por um lado, ela substitui a liberdade do juiz na apreciação das provas ao sistema da prova legal; por outro, implica a convicção, por oposição à dúvida que, como no sistema inglês, deve aproveitar ao arguido.

Mas é também necessário evitar o erro que consiste em tomar a livre convicção como um modo de prova, uma vez que se trata unicamente de um modo de apreciação das provas produzidas perante o juiz, o que significa que o juiz penal jamais poderá condenar sem provas, invocando como único fundamento da sua convicção a culpa do arguido"”
Os sublinhados são meus].

E se assim é em fase de julgamento, gerando-se essa dúvida na fase da instrução, a sua subsistência será incompatível com a conclusão da existência de indícios suficiente, pois a dúvida razoável sempre determina a absolvição do arguido.
Como escreve Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, I, pág. 73, “A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece a dúvida final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político – jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado (…)”.

No presente caso, para a além de um eventual raciocínio presuntivo assente nas regras de experiência comum, nenhum indício se apurou em inquérito – e menos ainda em instrução – que permita concluir que o arguido F sempre esteve ao corrente da actuação do arguido L, que a quis assim, ou meramente a tenha aprovado, pelo que os correspondentes factos se houveram que dar por não suficientemente indiciados.

Assim foi formulado o juízo sobre a suficiente indiciação dos factos introduzidos pelo libelo acusatório”.

Cumpre apreciar e decidir.

B.2 – Do recurso.
O objecto do recurso penal é delimitado pelas conclusões da respectiva motivação – art.º 403, nº1, e 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal - não estando o tribunal de recurso impedido de conhecer dos vícios referidos no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito.

Não é caso de verificação de qualquer das circunstâncias referidas no nº. 2 do artigo 410º do Código Penal.
A questão abordada no recurso – para além da questão da irregularidade formal quanto à matéria decisória do despacho recorrido – é a existência de indícios suficientes para sujeição do arguido FB a julgamento.
***
B.3 – Da omissão de juízo decisório.
De facto, o trecho decisório do despacho recorrido é omisso quanto ao arguido FB.

Daqui não resulta que o tribunal recorrido se não tenha pronunciado sobre a questão, apenas que falta a decisão, estando esta implícita nos considerandos anteriores sobre o arguido FB, designadamente a fls. 667 destes autos (fls. 1.202 dos autos originários e 20 do despacho) no seguinte trecho: “Diferentemente se haverá de concluir relativamente à conduta do arguido FB, pois da factualidade suficientemente indiciada não é possível concluir pelo preenchimento dos pressupostos objectivos do tipo legal (e menos ainda dos subjectivos). Impõe-se então pronunciar o primeiro em conformidade, já quanto ao segundo, é o despacho de não pronúncia que é devido”.

Trata-se de uma invalidade processual não especialmente prevista e, portanto, sem cominação específica (v.g. artigos 97º, e 308º do Código de Processo Penal), pelo que haverá que ser tratada como uma irregularidade de conhecimento oficioso, pois que a sua existência afecta a validade do acto praticado (artigo 123º, nº 1 e 2 do Código de Processo Penal).

Por outro lado, não estando tal irregularidade sanada porque o Mmº Juiz recorrido, nos despachos de fls. 703 e 704 destes autos, não fez uso do disposto no artigo 414º, nº 4 do Código de Processo Penal, haverá que dela conhecer e reparar, dentro do âmbito de conhecimento concedido pelo nº 3 do artigo 410 do Código de Processo Penal, numa interpretação extensiva às irregularidades de conhecimento oficioso.

Haverá, pois, que declarar não pronunciado o arguido FB no despacho de fls. 648 a 674 destes autos.
*
B.4 – Da livre apreciação da prova.

Antes do mais convém esclarecer que nos sistemas de base continental, conhecidos como sistemas da civil law, não é a íntima convicção o conceito que exprime a certeza judicial, sendo aquela apenas a designação francesa do princípio da livre apreciação das provas tal como ficou conhecido no sistema cultural e legal francês, designadamente no Code d´ instruction Criminelle de 1808, sendo a primeira referência à intime conviction a que constava da Lei 16-21 de Setembro de 1791.

E que hoje consta do artigo 353º do Code de Procédure Penale e das “chambre des déliberations” das “cours d´asisses”: « … elle (a lei) leur prescript de s'interroger eux-mêmes, dans le silence et le recueillement et de chercher, dans la sincérité de leur conscience, quelle impression ont faite, sur leur raison, les preuves rapports contre l' accusé et les moyens de sa défense. La loi ne leur fait que cette seule question, qui renferme toute la mesure de leurs devoirs: «avez-vous une intime conviction?»

De facto, tem razão o despacho recorrido quando centra a passagem do sistema da prova legal ou tarifada para o sistema da livre apreciação da prova na revolução francesa (Maio de 1789 a Novembro de 1799), sendo certo que já Beccaria (Dos delitos e das penas) falava em “bom senso” na apreciação da prova (1764).

Mas já se desenvolvia na Inglaterra um movimento de ideias designadamente com John Locke, William Blackstone e o discípulo deste, Jeremy Bentham, [Apesar de a obra de Bentham relativa à prova (“A Treatise on Judicial Evidence”) ser posterior à Revolução francesa, é admitido que os ideólogos franceses a ela, ou às ideias ali expressas, tiveram acesso antes da sua publicação] – que também influenciou os ideólogos da ilustração francesa – apontando o caminho de abandono do sistema da prova legal ou tarifada, em termos muito mais densos e impressivos, naturalmente com o suporte de todo um diverso sistema de apreciação da prova permitido pela existência dos jurados (Ver, de forma útil sobre o tema, Jordi Nieva Fenol, in “La valoración de la prueba”, Marcial Pons, 2010, pags. 70-78) e pela necessidade – já muito antes sentida - de os juízes ingleses encontrarem forma de advertir os jurados quanto ao peso da prova produzida em julgamento.

Simultâneamente, na Alemanha, desenvolvia-se a discussão sobre a Freie Beweiswürdigung (livre apreciação da prova) e a separação conceptual entre “verdade material” e “verdade formal”, com Mittermaier e Savigny a assumirem papel de relevo.

O sistema da “intime conviction”, mais tarde também apelidado de “conviction personnelle” ou “intime et profonde conviction”, assumia o significado de liberdade de julgar a prova segundo a sua consciência e não com sujeição a prova tarifada.
Essencial, então, é reconhecer que dois sistemas incompatíveis se confrontaram nos caminhos da História, o sistema da “prova legal” e o sistema da “prova livre”, com a vitória (quase) incontestada deste último.

Se hoje podemos afirmar que o actual processo civil se consubstancia num sistema misto (vide a força probatória da confissão e da prova documental), no processo penal o sistema da “prova livre” impera inquestionado (mesmo no caso da prova pericial).

No entanto, a prática judiciária cedo abriu a porta a um entendimento corrupto do conceito de “intime conviction” no sentido de apreciação subjectiva e arbitrária da prova, entendimento mais tarde conceptualmente corrigido com o apelo à lógica e à necessidade de motivação.

Assim, o sistema da “livre convicção” deu origem a dois sub-sistemas de convicção - um subjectivo, outro objectivo - surgindo o sistema da íntima convicção (“intime conviction”) associada à livre convicção, no qual o juiz estava “desligado não só das regras de prova legal, mas também de qualquer critério racional de valoração” (“Simplemente la Verdad – El juez y la construccion de los hechos” – Michele Taruffo, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2010, pags. 179-180).

Destarte, o sistema, que inicialmente se apresentava como um “sistema metodológico negativo” com a recusa de decidir através da aplicação de provas legalmente taxadas e, assim, uma forma de garantir a liberdade, passou a ter um significado “positivo” de permitir a valoração desprezando a prova, uma valoração da prova livre e descontrolada centrada na pessoa do juiz, uma forma de arbítrio judicial (Ver “Los hechos en el derecho - Bases argumentales de la prueba”, Gáscon Abellán, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2010, pag. 142).

Este sistema, de irracionalidade motivadora, de cariz marcadamente subjectivo, abre a porta à arbitrariedade na apreciação probatória, com base numa imperscrutável actividade individual do juiz e constitui – em si – uma negação de um puro conceito de livre apreciação e do recurso em matéria de facto (Uma concepção subjectiva coerente apela à íntima convicção do juiz como único critério de apreciação probatória, forte pendor da imediação e do papel do juiz de 1ª instância na apreciação da prova, débeis exigências de motivação e um sistema de recursos que dificulta o recurso em matéria de facto. V. g Jordi Ferrer Beltrán, in “La valoracion racional de la prueba”, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2007, pag. 62).

Hoje é indubitável que o segundo sistema, o sistema racionalista, objectivo, assume maior preponderância doutrinal e jurisprudencial.

Face a isto como interpretar o comando contido no artigo 127º do Código de Processo Penal que determina que o juiz deve apreciar a prova “segundo as regras da experiência e a livre convicção”?

Esta “livre convicção” corresponde a uma livre discricionariedade na apreciação da prova? Assenta numa convicção subjectivada, como num exacerbado ou pouco consciente entendimento podemos surpreender no impreciso conceito de “íntima convicção”?

Entendemos, com a jurisprudência maioritária, que o princípio da prova livre ou prova moral deve ser associado a uma discricionariedade do juiz na apreciação probatória mas apenas no sentido de o não vincular – como regra geral e como princípio metodológico – a uma valoração probatória pré-definida, porque apenas nisso é livre.

Mas não exime o juiz da busca da verdade através dos métodos epistemológicos aceites. E o método epistemológico, por excelência, aceite na busca da verdade dos factos é a razão.

Ou seja, a livre convicção é, hoje, uma concepção racional de livre convicção na busca da verdade factual, com dois corolários:

1 – Regra geral o juiz aprecia livremente – não sujeito a valoração tabelada – toda a prova produzida;

2 – Através do uso da razão para demonstrar a verdade dos factos.

Deste modo haverá que afirmar, de forma absoluta, que a motivação não é o seguimento do “iter lógico-psicológico que o juiz seguiu para chegar à formulação final da sua decisão”, sendo irrelevantes “as sinapsis que se produziram nos neurónios do juiz, os seus humores, os seus sentimentos e qualquer outra coisa que tenha sucedido in interiore homine” (“Simplemente la Verdad – El juez y la construccion de los hechos” – Michele Taruffo, Filosofía y Derecho, Marcial Pons, 2010, pag. 267).
Ou seja, o sistema da livre convicção consagrado no ordenamento jurídico português não é um sistema irracionalista, subjectivo, de apreciação probatória (“Concepção persuasiva” na terminologia de Jordi Ferrer Beltrán, in “La valoracion racional de la prueba”, Folosofía y Derecho, Marcial Pons, 2007, pag. 62), sim um sistema racionalista, assente na razão, nas regras de experiência social comprovada e em presunções probatórias racionalmente fundadas (Ou “concepção cognoscitivista”, que se apresenta coerente com o método de corroboração e refutação de hipóteses como forma de valoração da prova, versão limitada do princípio da imediação, forte exigência de motivação factual e recurso amplo em matéria de facto. V.g. Jordi Ferrer Beltrán, ob. cit. pag. 64 e nota 6).

Este é ponto essencial – a fundamentação quer-se assente na razão e não numa apreciação subjectiva insindicável.

A liberdade do juiz na apreciação da prova é uma "liberdade para a objectividade – não aquela que permita uma “intime conviction” meramente intuitiva, mas aquela que se concede e assume em ordem a fazer triunfar a verdade objectiva, uma verdade que se comunique e imponha aos outros" (Castanheira Neves, “Sumários de Processo Criminal”, 1967-68, p. 50).

Só com a exposição clara e indubitável da razão, das regras de experiência social comprovada e das presunções probatórias racionalmente fundadas é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal superior o exame do processo lógico ou racional que subjaz à motivação pela via do recurso, sem prejuízo de se aceitar que a experiência de vida do juiz e as formas de percepção, por este, da prova produzida – desde que clarificadas e racionalmente expostas - devam ser aceites.

Como se afirma na nossa jurisprudência, (Ac STJ de 07-01-2004, 03P3213, sendo relator o Cons. Henriques Gaspar):

1ª. O princípio estabelecido no artigo 127° do CPP significa que o valor dos meios de prova não está legalmente pré-estabelecido, devendo o tribunal valorar os meios de prova de acordo com a experiência comum e com a concorrência de critérios objectivos que permitam estabelecer um substrato racional de fundamentação e convicção.

Ou como se confirma no Acórdão nº 464/97 do Tribunal Constitucional:

Esta justiça, que conta com o sistema da prova livre (ou prova moral) não se abre, de ser assim, ao arbítrio, ao subjectivismo ou à emotividade. Esta justiça exige um processo intelectual ordenado que manifeste e articule os factos e o direito, a lógica e as regras da experiência. O juiz dá um valor posicional à prova, um significado no contexto, que entra no discurso argumentativo com que haverá de justificar a decisão. Este discurso é um discurso "mediante fundamentos que a 'razão prática' reconhece como tais" (Kriele), pois que só assim a obtenção do direito do caso está "apta para o consenso". A justificação da decisão é sempre uma justificação racional e argumentada e a valoração da prova não pode abstrair dessa intenção de racionalidade e de justiça.

No caso concreto não temos dúvida em afirmar que o tribunal recorrido, apesar da afirmação de que a certeza judicial se instrumentaliza na íntima convicção, valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”.

Disse claramente que os indícios probatórios existentes e a presunção em que se baseia a acusação são insuficientes para um juízo indiciário de imputação dos factos, fazendo operar o princípio in dubio pro reo.
*
B.5 – Dos indícios probatórios.
Da leitura do despacho de pronúncia/não pronúncia resulta que a não pronúncia do arguido se ficou a dever, em exclusivo, a considerandos factuais sobre a apreciação da prova a que se seguiu a aplicação do princípio in dubio pro reo.

A estes vieram acrescer outros considerandos de direito sobre a apreciação da prova que o tribunal recorrido entendeu por bem situar em sede de apreciação factual.

Mas, neste como noutros casos, o princípio é o facto.

Destes, como bem salienta o tribunal recorrido, resulta que contra o arguido Fernando Pereira Brites se recolheram os seguintes meios probatórios:

Porém, compulsada uma e outra, não conseguimos, com o devido respeito pela opção acusatória, encontrar nela indícios suficientes que permitam sequer imputar qualquer factualidade específica ao arguido FB, além do facto de ter subscrito a notificação de fls. 36 (na qual não se faz qualquer alusão violenta) e de, evidentemente, ser sócio-gerente da “SF” (certidão de fls. 622 e seguintes).
Nenhuma das testemunhas assinala qualquer intervenção do arguido F. nos factos – sendo de assinalar que o arguido L. não prestou declarações sobre os factos em sede de inquérito – fls. 40-41.

Feita uma apreciação global, é de concluir que os indícios da ocorrência dos factos só poderão assentar num raciocínio presuntivo de que o arguido F., enquanto superior hierárquico do arguido L., lhe teria ordenado que praticasse as condutas indiciadas, sendo certo que – sobre isso não parecem restar dúvidas – o arguido L. actuava em nome da sociedade de que era gerente (embora também no seu, evidentemente, uma vez que, como é costume nestes casos, a sua retribuição beneficiaria de uma parte variável, em função dos resultados obtidos).

Corridos os autos confirmamos que os elementos probatórios contra o arguido B. assentam nestes elementos factuais:
o arguido FB subscreveu a notificação de fls. 36, uma mera notificação para pagamento;
é sócio-gerente da “SF” (certidão de fls. 622 e seguintes).
o arguido soube das queixas crime – documento de fls. 1149 e 1150.

Daqui se parte para uma presunção de conhecimento dos factos ocorridos e que conduziram à pronúncia do arguido LS.

Acresce que Ministério Público invoca que o arguido sancionou a actuação do co-arguido - declarações do arguido FB de fls. 376 e 377.

Se os três primeiros elementos probatórios são verdadeiros (subscreveu a notificação, é sócio gerente e soube das queixas-crime) já a última asserção é contestável, pois que o arguido se limitou a invocar o exercício de um direito, não o definindo em toda a sua extensão. Assim como são irrelevantes os restantes elementos referidos pelo recorrente.

Em breve, se sabia da dívida e se é sócio-gerente sabe o que se passa. É essa a base do raciocínio probatório da acusação para suportar o juízo de indiciação.

De onde se deve partir, alegadamente, para uma presunção de conhecimento dos factos ocorridos e que conduziram à pronúncia do arguido LS.

Serão aqueles três elementos de prova suficientes para o juízo de indiciação? A resposta é claramente negativa, pois que nenhum deles constitui prova directa da prática dos factos imputados.

Poderemos aplicar ao caso concreto o brocardo latino “quae singula non prosunt, iuncta iuvant” (Coisas que separadas não são úteis, reunidas trazem benefício)? Também não nos parece que o conjunto sirva aquele propósito.

Não há, portanto, prova directa que permita a imputação dos factos ao arguido.
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B.6 – Das presunções.

Se não isso, permitirão, ao menos, ser a base de uma (ou mais) presunções de facto? Pode afirmar-se que àqueles três indícios probatórios se segue a possibilidade de imputação dos factos ao arguido? Trata-se de aplicar ao caso o brocardo Id quod plerumque accidit (É o que geralmente acontece)? Entendemos, igualmente, que não.

Falamos, naturalmente da possibilidade de fazer operar – sobre aqueles três elementos probatórios - uma presunção natural, de facto, simples, de experiência, hominis ou judicial (praesumptiones facti ou hominis) [V. g. Manuel Domingues de Andrade, “Noções elementares de Processo Civil”, Coimbra Editora, 1979, pag. 215; Também Baptista Machado, in “Introdução ao Direito e ao discurso legitimador”, Almedina, 1983, pag. 112], enquanto ilação que o julgador tira de um facto conhecido para firmar um facto desconhecido – artigos 349º e 351º do Código Civil.

Sim, porque o que está suposto no acto de dedução da acusação assenta na pretensão de fazer operar uma presunção hominis.

Não há dúvida que o papel essencial das presunções está consolidado na nossa jurisprudência, não obstante se poder afirmar um campo quase desprezado pela doutrina nacional e ainda pouco racionalizado pela jurisprudência.

A jurisprudência faz, em regra, apelo às regras de experiência comum e de convivência social, não realçando que estas mais não são do que inferências empíricas que sustentam e permitem as presunções. Dito de outra forma, a função das regras da experiência e das regras de convivência social é o de fornecerem um conhecimento empírico que suporte uma presunção.
Desta forma as presunções assumem um papel probatório de relevo essencial (chega a qualificar-se a presunção como um meio de prova, ao invés de mero raciocínio judicial de carácter probatório (v.g. Carlos Climent Durän, “La Prueba Penal”, Tirant lo Blanche, 2ª ed. Tomo I, pags. 868-869). Ou a afiançar que “as presunções são o centro de gravidade de todo o sistema probatório” (Serra Dominguez, M – “Comentários al Código Civil y Compilaciones Forales”, pag. 554, apud, Climent Durän, ob. cit., I, 865).

A operatividade da presunção deve, no entanto, apresentar alguns requisitos metodológicos básicos.

Dessa necessidade é exemplo o expendido no acórdão do STJ já citado (Ac STJ de 07-01-2004, 03P3213, Relator o Cons. Henriques Gaspar):

5ª. Na passagem de um facto conhecido para a aquisição (ou para a prova) de um facto desconhecido, têm de intervir as presunções naturais, como juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinada facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido.

6ª. Na presunção deve existir e ser revelado um percurso intelectual, lógico, sem soluções de continuidade, e sem uma relação demasiado longínqua entre o facto conhecido e o facto adquirido; a existência de espaços vazios no percurso lógico determina um corte na continuidade do raciocínio, e retira o juízo do domínio da presunção, remetendo-o para o campo da mera possibilidade física mais ou menos arbitrária ou dominada pelas impressões.

Desde logo convém ter presente que a natureza presuntiva da prova demonstra a sua fraqueza potencial na medida em que as presunções simples podem ser infirmadas por simples contra-prova.

Depois, a força probatória da presunção simples tenderá a ser menor, quando confrontada – em sede de contraditório – com a eventual existência de prova apresentada pela defesa. Assim, por um argumento de maioria de razão, a força probatória de uma presunção realizada em sede indiciária tenderá, em tese geral, a enfraquecer mais tarde, o que poderá (deverá) influenciar o juízo indiciário.

Mas, principalmente – em sede de desenvolvimento dos requisitos metodológicos referidos - devemos ter presente que o facto provado (facto probatum) a base da presunção, a sua premissa inicial, nem sempre permite concluir pelo facto probandum (o facto desconhecido a provar), o que exige maior desenvolvimento fundamentador.

A argumentação lógica a desenvolver numa presunção simples supõe o estabelecimento de um nexo causal entre o facto conhecido e o facto desconhecido, supõe a existência de regras da experiência, de convivência social, observadas empiricamente e que permitam relacionar os dois factos. Ou seja, partindo-se de um facto conhecido e fazendo operar uma máxima da experiência conclui-se logicamente pela existência de um facto desconhecido.

Dispõe o artigo 1253º do Código Civil espanhol que essa relação deve ser precisa e directa. Não custa aceitar a aplicação desses dois critérios epistemológicos de tão óbvia adequação e tão reveladores daquele juízo de causalidade.

Assevera a doutrina que essa relação deve ser unívoca e precisa, logo necessária. Deve evitar-se atribuir força probatória a uma relação que seja contingente, porque equívoca (“Los hechos en el derecho - Bases argumentales de la prueba”, Gáscon Abellán, pag. 139).

Essa presunção fortalecer-se-á se houver concordância de juízos no caso de pluralidade de factos que conduzem à conclusão – e, no caso concreto tal não acontece, pois que os factos não conduzem a uma concordância de juízos presuntivos.

Em resumo, a presunção com base no facto probatum só permite a ligação ao facto probandum se a presunção se basear num juízo lógico seguro, causal, sequencial, preciso, directo e unívoco.

Não basta, pois, a mera verosimilhança, o provável, o plausível, para que se permita operar de forma capaz uma presunção hominis.

Permitirão os citados factos e a presunção que neles assenta a afirmação da existência de um juízo seguro de indiciação suficiente?

Entendemos que não.

Não é seguro, causal, sequencial, preciso, directo e unívoco que um gerente saiba a todo o tempo o que faz um subordinado que nem sempre está – e no caso não se indicia que estivesse – no seu imediato campo de acção e observação. Aliás, nem este facto se encontra investigado, nem se indicia o que quer que seja quanto a cumprimento/abuso de funções.

E tais conclusões são suficientes para inquinar o juízo assente numa presunção simples. O facto probandum (que, aliás, é um conjunto alargado de factos, no quais se incluem o dolo e a consciência da licitude da conduta do subordinado) não pode ser apurado por presunção simples.
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B.7 – Do juízo de indiciação suficiente.
Apela o tribunal recorrido ao conceito de beyond reasonable doubt, (para além de toda a dúvida razoável) para o seu juízo indiciário, depois abalado pela suposta aplicação do princípio in dubio pro reo.

Breviter et per summa capita, podemos afirmar – assim o assevera a literatura inglesa – que terá sido Lord Denning que na decisão da House of Lords Miller v. Minister of Pensions (1947 - 2 All ER 372) a formular de forma perfeita o “standard of proof”, o “padrão de prova”, o nível de prova, a força probatória suficiente para convencer o tribunal nas acções cíveis e criminais (V. g. The “Law of Evidence”, Prof. Ian Dennis, Thomson, Sweet & Maxwell, 2007, pags. 479 e segs.).

Assim, quanto às acções cíveis o nível de prova foi expresso da seguinte forma: «It must carry a reasonable degree of probability, not so high as is required in a criminal case. If the evidence is such that the tribunal can say “we think it more probable than not”, then the burden is discharged, but if the probabilities are equal, it is not».

Este “padrão” ou nível de prova civil (mais provável do que não) é relevante na jurisprudência inglesa e para o processo criminal porquanto assente que é o nível exigido ao réu se lhe couber o “ónus da prova” (Regina v. Walters - 1969).

Corresponderá a um nível de prova expresso na frase “preponderance of evidence”, ou “balance of probabilities”, o mais baixo nível de prova, e que equivale ao norte-americano “Clear and convincing evidence”.

Mais exigente se apresenta o nível de prova em processo criminal, expresso por Lord Denning da seguinte forma: «It need not reach certainty but it must carry a high degree of probability. Proof beyond reasonable doubt does not mean proof beyond a shadow of doubt. The law would fail to protect the community if it permitted fanciful possibilities to deflect the course of justice. If the evidence is so strong against a man as to leave only a remote possibility in his favour which can be dismissed with the sentence “Of course it is possible but not in the least probable”, the case is proved beyond reasonable doubt; nothing short will suffice».

A origem desta máxima, que os tribunais ingleses afirmam não poder ser objecto de melhoramento ou explicações suplementares (v.g. “Evidence”, J.R. Spencer, in “European Criminal Procedures”, Cambridge Studies in International and Comparative Law, 2006, Coord. e Edição de Mireille Delmas-Marty e J.R. Spencer) apenas quer significar um mais rigoroso e mais alto nível de probabilidade do que o expresso na teoria do “balance of probabilities” (aplicado aos casos civis), e parece situar-se na busca dos tribunais ingleses – a partir dos séculos 16 e 17 - pela resposta à questão “como sabemos que as coisas são verdadeiras”.

Questão que parece ter obtido resposta nas considerações sobre níveis de probabilidade de John Locke nos “Ensaios sobre o Entendimento Humano” (1690) – V.g. “Evidence, Proof and Facts – A book of sources”, Peter Murphy, Oxford University Press, 2003, pag. 331).

E, com base nesses níveis de probabilidade, nos quais assentam inclusive juízos científicos, e tendo presente que a verdade judicial (material) é “a realidade, aquilo que tem efectiva existência, com exclusão do meramente possível” (Prof. Castro Mendes – “Do conceito de prova em Processo Civil”), a verdade que, “não sendo absoluta ou ontológica, há-de ser antes de tudo uma verdade judicial prática” (Prof. Fig. Dias, in “Direito Processual Penal”, 1º, 194), não será excessivo afirmar que o nosso ordenamento civil se basta, para a convicção, com uma tese de “preponderância de prova” ou “balanço de probabilidades”, aplicável ao crime se ao arguido convier a prova dos factos que lhe sejam favoráveis.

Já não assim para o juízo a formular para a condenação do arguido, onde impera a presunção de inocência.

Aqui estamos a falar de padrões de prova, de juízos de convicção concernentes à sorte da acção, relativos a um juízo de verdade, de certeza judicial como fim natural do processo penal tendo como horizonte possível a condenação do arguido.
Esse juízo deve assentar em elementos concretos, objectivos, existentes no processo e que conduzam a um elevado grau de probabilidade de que os factos ocorreram de determinada forma e não de outra, de uma “probabilidade que roça a certeza”.

Ora, no caso, interessa-nos formular um juízo indiciário suficiente.

Questão que se coloca, então, é saber se no direito processual penal português esse juízo indiciário deve ter o mesmo nível de exigência do juízo de certeza judicial típico da sentença.

A doutrina tem revelado uma certa constância na aceitação da necessidade de emitir um juízo de probabilidade idêntico ao juízo de convicção probatória, de verdade judicial, da sentença (v. g. Castanheira Neves, “Sumários de processo criminal” – 1967-1968 – pag. 39 e Fig. Dias, “Direito Processual Penal” – 1974, pag 133), tanto como a jurisprudência se tem inclinado para uma tese de maioria probabilística.

Os argumentos lógicos e sistemáticos expostos por Noronha e Silveira (in, “O conceito de indícios suficientes no processo penal português”, “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, Almedina, 2004, pags. 155-172), aos quais aderimos no sentido de uma maior exigência de convicção, são elucidativos.

Principalmente o argumento de que – com a actual estrutura do processo penal português – o Ministério Público já dispõe, salvos casos muito excepcionais, de toda a prova que é possível recolher favorável à acusação e que, a partir daí, a tendência natural será a do enfraquecimento da sua posição, via contraditório e à acção da defesa.

Assim, essa maior exigência de convicção não se basta com um juízo de maior probabilidade (de condenação do que de absolvição), com um juízo matemático de mais de cinquenta por cento de hipóteses de condenação.

O juízo exigível para se considerar a indiciação suficiente deve afirmar-se numa fórmula de forte, alta probabilidade de condenação, de predominância de um juízo de culpabilidade do arguido, de alta preponderância probabilística, de forte convicção de condenação do arguido.

Na prática, o juízo de certeza judicial vigente no ordenamento jurídico processual penal português em nada difere do beyond reasonable doubt, quer para o juízo de certeza judicial da sentença, quer para o juízo de indiciação suficiente.

Não sendo assim e se optássemos por uma mera maioria probabilística como fonte do juízo de indiciação, suscitar-se-ia, então, a questão de saber se não operaria um juízo fundado de dúvida face à elevada probabilidade (quase cinquenta por cento, para utilizar um meramente demonstrativo raciocínio matemático) de os factos não terem sido praticados pelo arguido e de que forma esse juízo de mera maioria probabilística se articularia com o princípio da presunção de inocência.

Ora, no caso concreto os elementos constantes dos autos permitem esse juízo de alta probabilidade de condenação do arguido?

A resposta é claramente negativa. Diríamos mais: sequer para um juízo de mera maioria probabilística.
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B.8 – Do in dubio pro reo.
Poderia, no caso, fazer-se apelo ao princípio in dubio pro reo em sede instrutória?

Não temos dúvida em responder afirmativamente, já que é princípio de aplicação indubitável a todas as fases do processo, sempre que um juízo judicial se imponha, seja em sede de juízo de certeza judicial, seja em sede de juízo judicial de indiciação.

Nem do seu uso está isento o Ministério Público no momento de dedução da acusação.

Nem o princípio da presunção de inocência se pode espartilhar por fases processuais, nem o Ministério Público se pode isentar da sua observância quando deduz acusação.

Também não temos dúvida em afirmar que o recurso a tal princípio era desnecessário.

Os elementos probatórios supra indicados e o pretendido juízo de imputação assente numa presunção hominis permite afirmar que é patente, ostensiva, a desnecessidade de recurso ao princípio in dubio pro reo.

O juízo a formular não assenta numa dúvida. Assenta numa certeza de inexistência de indícios.

O princípio in dubio pro reo, com efeito, «parte da dúvida, supõe a dúvida e destina-se a permitir uma decisão judicial que veja ameaçada a concretização por carência de uma firme certeza do julgador» – Cristina Líbano Monteiro, «In Dubio Pro Reo», Coimbra, 1997.

Essa «dúvida que há-de levar o tribunal a decidir pro reo tem de ser uma dúvida positiva, uma dúvida racional que ilida a certeza contrária, ou, por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a convicção do tribunal» - Ac. STJ de 25-10-2007, in proc. 07P3170, relator Cons. Carmona da Mota, citando a autora anteriormente citada.

O tribunal, muito antes de fazer operar esse princípio – face aos parcos factos e à fraqueza da presunção - tem que concluir que não há elementos probatórios que permitam um juízo de imputação suficiente.

Ou seja, não se revela nos autos que a aplicação do princípio in dubio pro reo se imponha, pois que, avaliada a prova segundo as regras da experiência e a liberdade de apreciação da prova, não conduz à dúvida no espírito do tribunal sobre a existência do facto.

Isto porquanto não há, nos indícios probatórios em presença, a mínima hipótese de fazer operar o princípio in dubio pro reo. Tais indícios, claramente insuficientes, conduzem à certeza sobre a impossibilidade de imputação dos factos.

Já se permite um juízo crítico da manifesta incapacidade de a investigação policial ter recolhido outros elementos probatórios. Assim como um juízo crítico sobre a pretensão de levar a julgamento um acervo de factos sem suficiente sustentação probatória.

Entendemos, portanto, que o recurso não merece provimento.
*
C - Dispositivo:
Face ao que precede, os Juízes da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora negam provimento ao recurso e, em consequência, confirmam o douto despacho recorrido e declaram não pronunciado o arguido FB.

Notifique. Não são devidas custas.

Évora, 21-06-2011

(Processado e revisto pelo relator)

João Gomes de Sousa

António Alves Duarte

http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/2f2d4b8fe4b0fdaa802578cb003d1dfa?OpenDocument

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