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quinta-feira, 1 de setembro de 2011

CORRUPÇÃO ACTIVA PARA ACTO LÍCITO, CASO JULGADO FORMAL - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa - 22/04/2010

Acórdãos TRL
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa
Processo:
263/06.8JFLSB.L1-9
Relator: ABRUNHOSA DE CARVALHO
Descritores: CORRUPÇÃO ACTIVA PARA ACTO LÍCITO
CASO JULGADO FORMAL

Nº do Documento: RL
Data do Acordão: 22-04-2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Parcial: S

Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE

Sumário: I - Tendo havido recurso sobre determinada questão processual e tendo havido decisão sobre a mesma, nunca podia deixar tal decisão de produzir o efeito de caso julgado formal, porque, das duas uma, ou o recurso e a respectiva decisão eram completamente inúteis e então não podiam ser admissíveis, ou a lei admitia que num mesmo processo e sobre uma mesma questão houvesse mais do que uma decisão, contraditórias entre si.
II - Assim, quando uma decisão intercalar possa ser, ou tenha sido, objecto de recurso, com subida imediata, há-de poder formar caso julgado formal.
III - Os actos dos funcionários, para serem relevantes para o preenchimento dos tipos da corrupção, hão-de caber dentro das suas específicas competências legais ou dos poderes de facto decorrentes do cargo que desempenham.

Decisão Texto Integral: TEXTO PARCIAL:

Nos presentes autos de recurso, acordam, em conferência, os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
Na 1ª Vara Criminal de Lisboa, por acórdão de 23/02/2009, constante de fls. 2062 a 2119, foi o Arg.[1] A…, com os restantes sinais dos autos (cf. fls. 1741) condenado nos seguintes termos:
“VIII. E assim, julgando parcialmente procedente a pronúncia, nos termos e com os fundamentos expostos, decide este Tribunal Colectivo, em:
1. Condenar o arguido, A…, como autor de um crime de corrupção activa para acto lícito, previsto e punível nos termos do mencionado Art.º 18.º, n.º 2, da Lei 34/87 de 16/7, na pena de 25 (vinte e cinco) dias de multa, à razão diária de € 200 (duzentos euros), o que perfaz o montante global de € 5.000,00 (cinco mil euros); e
2. condenar o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 10 (dez) Ucs, e a procuradoria em ¼ - Artºs 513º do CPPenal e 85º nº 1 e 95 nº 1, estes do CCJudiciais – a que acresce 1% da taxa de justiça nos termos do Artº 13º, nº 3, do DL 423/91, de 30/10.”.
*
Inconformado, veio o Ex.m.º Magistrado do MP[2] interpor recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 2138 a 2161, com as seguintes conclusões:
“a) Face à prova produzida em audiência de discussão e julgamento, a conduta do arguido integra a prática de um crime de corrupção activa para a prática de acto ilícito, previsto e punível noArt.18°, n.° 1, por referência aos Arts. 16°, n.° 1, e3°, n.°1, alínea i), da Lei n.° 34/87 de 16/07, na redacção da Lei n.° 108/2001 de 28/11—e não um crime de corrupção activa para a prática de acto licito, p. e p. pelo Art.18°n.° 2 da Lei n.°34/87,de 16/07, ilícito criminal pelo qual foi condenado.
b) O tribunal "a quo" não extraiu, como podia e devia, das transcrições das gravações relativas aos encontros, entre a testemunha B... e o arguido, ocorrido sem 24/01/2006 e 27/01/2006 – constantes do Apenso E, nem das declarações prestadas pela referida testemunha, os factos relevantes à subsunção da conduta do arguido ao crime de corrupção activa para a prática de acto ilícito.
c) A transcrição da gravação relativa ao encontro de 24/01/2006 - constante do Apenso E, é clara.
d) Apesar da testemunha B… vincar ao arguido que o seu irmão não o quer prejudicar, o tribunal não valorou o distanciamento, intencional, que o arguido manifestou em relação ao assistente, quando refere "...eu não falo com o seu irmão, não posso." (sic)
e) A ser consistente a ideia, espelhada na fundamentação do acórdão, que o arguido pretendia, tão só, que o Vereador assumisse, publicamente, a legalidade do negócio, justificando essa conclusão na consulta de documentação existente ao seu dispor no município ou na Câmara, não se compreende que o mesmo não tomasse a iniciativa activa, com a ajuda da testemunha B…, no sentido de transmitir/explicar, pessoalmente, ao assistente, a razão dos seus argumentos na base da estrita legalidade, caso, saliente-se, os mesmos tivessem a dignidade legal que o acórdão, de certo modo, parece conferir.
f) Ora, o arguido assumiu posição contrária.
g) Tal comportamento não corresponde ao que seria de esperar do homem médio numa posição de certeza e de convicção da legalidade dos seus argumentos.
h) Não vinga o argumento, também, vertido na decisão impugnada, de que não está provado que os negócios levados a cabo pelas empresas representadas pelo arguido foram contrários à lei e lesivos dos interesses do Município por o litígio judicial, ainda, estar pendente em tribunal e que não está demonstrado que o arguido pretendia declarações do assistente que falseavam a verdade relativa a assuntos a que tinha acesso nessa sua qualidade de vereador.
z) Se é verdade que o litígio judicial não teve, ainda, decisão final, não é menos que daí se possa concluir que os negócios levados a cabo pelas empresas representadas pelo arguido não foram contrários à lei e lesivos dos interesses do Município e sobre tal matéria é inequívoca, pública e conhecida a posição do assistente, que considera que foram lesivos.
j) Sobre tal matéria a seu tempo o tribunal administrativo, porque o competente, decidirá, sendo prematuro/precipitado tirar quaisquer ilações sobre o desfecho da acção popular.
k) A partir da transcrições da gravação do encontro de 24/01/2006 - constante do Apenso E, dúvidas não temos, que o arguido pretendeu manobrar o Vereador, assistente, fazer com que alterasse, as suas convicções legais, nas suas palavras"...demovê-lo…" das suas posições, a troco de uma compensação, de natureza pecuniária.
l) Neste plano de demover o assistente das suas posições ganha particular relevo a compensação monetária a pagar ao mesmo, a troco da desistência da acção popular e de declaração pública sobre a legalidade da actuação das empresas representadas pelo arguido.
m) Desta gravação do encontro resulta claro que o arguido pretendia, ao contrário da valoração feita pelo tribunal, que o assistente através da declaração pública manifestasse, precisamente, no palco da Câmara, posição favorável aos seus interesses, só assim se compreende que reportando-se à declaração pública concordou que a mesma fosse expressa numa reunião da Câmara ao referir "Perfeitamente.... numa reunião da Câmara e manda isso para tribunal, manda a desistência para tribunal..." (sic)
n) Na transcrição da gravação relativa ao encontro de 27/01/2006 - constante do Apenso E, também, o tribunal não curou valorar a preferência do arguido da declaração a ser proferida na Assembleia Municipal, ao responder a pergunta feita pela testemunha B… se"...preferia uma declaração na Câmara ou na Assembleia?" respondeu "Na ahhhh', eu preferia, eu acho que na Assembleia (imperceptível), há muitos jornalistas. "(sic)
o) A ser insofismável a ideia que o arguido pretendia tão só que o Vereador assumisse, publicamente, a legalidade do negócio, justificando essa conclusão na consulta de documentação existente ao seu dispor no município ou na Câmara, não se concebe, também, que, para tanto, apesar do negócio cumprir todas as exigências legais, mesmo assim, tivesse que pagar a quantia monetária de €200.000,00, objecto da proposta. Seria intolerável para o comum dos homens.
p) É inegável que o arguido, mercê da reconhecida capacidade financeira das empresas por si representadas, com obras realizadas por todo o território nacional, não pretendeu, somente, que o assistente, na qualidade de Vereador, tivesse a clarividência da legalidade dos negócios das empresas por si representadas. Quis mais, muito mais.
q) Pretendeu condicionar a vontade política do visado, criando um clima de permeabilidade favorável às suas pretensões, em futuros projectos, mormente na capital do país assumindo a contrapartida monetária pedra de toque, na sua acção.
r) Recordem-se, neste capítulo, as palavras do arguido quanto ao esquema para recolher a quantia monetária objecto do pagamento a fazer ao assistente "...Conforme faço uma escriturazinha, rapo 2 mil euros aqui, eh, 10 mil euros aqui, 10 mil euros acolá, pronto, a curto prazo. Por lá em casa num cofre, para, para a gente ir fazendo umas ratices, mas nisto não sou virgem, esteja à vontade....Não sou virgem nestas coisas, não é? Não sou."(sic)
s) O arguido, sem qualquer rodeio, no seu diálogo com a testemunha B…, faz vincar a sua experiência na prática de esquemas denominados de"...ratices..."
... ratices... "envolvendo o desvio de dinheiro de negócios jurídicos, esquemas ilícitos e contrários à lei, vangloriando-se até de não ser"...virgem..." nesses esquemas.
t) Esta postura do arguido genuína, sem qualquer pejo e acanhamento, direccionada à pessoa do assistente, outra leitura não pode ter de que com a sua proposta pretendeu a violação, por parte do assistente C…, dos deveres de imparcialidade, de lealdade e de obediência à lei inerentes ao seu cargo de Vereador e correspondente à prática de um acto contrário a esses deveres.
U) O arguido como agente de corrupção activa visou, única e exclusivamente, a prática de um acto ilícito pelo assistente.
v) O depoimento da testemunha B…, prestado em 23/01/2008, constante do CD 2-00:00:30 a 02:32:40 - não pode, também, deixar de ser valorado, positivamente, no sentido de que o arguido pretendia na sua acção de corrupção activa a prática de um acto ilícito, por parte do seu irmão.
w) O tribunal "a quo" julgou, incorrectamente, ao dar como não provado os factos, constantes do ponto IV. do acórdão elencados a fls. 2080 e2080 verso, a saber que:
“…
.o mesmo arguido A… pretendesse que o Vereador C… viesse a afirmar a sua mudança de opinião em sede de reuniões dos órgãos do Município de Lisboa;
.o mesmo arguido fizesse depender o pagamento do montante pecuniário, tal como referido em a.19., do proferimento, por parte do Dr. C…, de declarações públicas na qualidade expressa de vereador da Câmara Municipal de Lisboa;
(…)
.o arguido pretendesse com a declaração pública do Dr. C… aludida em a.36. e a.37, comprometer o vereador C… com uma versão de apoio aos interesses do mesmo grupo de empresas, de forma a vinculá-lo em votações futuras de temas e de projectos em que as sociedades por si participadas estivessem envolvidas;
.o arguido, para além do exposto em a.52., pretendesse uma alteração das tomadas de posição do Dr. C… em sede de artigos de imprensa e enquanto vereador na Câmara Municipal de Lisboa, como fim de este passar a reconhecer idoneidade e viabilizar projectos e negócios mantidos pelas empresas de que o arguido era accionista, em particular as empresas"D…" e "E… – Investimentos Imobiliários";
.o arguido actuou com vista a levar o referido vereador a violar as obrigações que havia assumido com a aceitação do seu mandato;." (sic)
y) A argumentação gizada em sede de impugnação da matéria de facto impõe inevitáveis reflexos no enquadramento jurídico-penal da conduta do arguido.
z) O ilícito criminal referido em a) é punido, em abstracto, com uma pena de prisão de 6 (seis) meses a 5 (cinco) anos.
aa) Tendo presente a culpa do arguido, as exigências de prevenção (geral e especial) e as circunstâncias que depõem a seu favor - afigura-se-nos que se mostra adequada, proporcional e justa, no caso em apreço, aplicar-lhe uma pena concreta de2(dois) anos e (dois) 2meses de prisão, graduação da pena abaixo do limite médio da pena.
bb) Pese embora a circunstância do arguido não ter evidenciado qualquer interiorização do desvalor da respectiva conduta, já que negou os factos e não mostrou qualquer arrependimento, considerando que não tem antecedentes criminais, que se mostra familiar, social e profissionalmente inserido e é pessoa respeitada no meio em que se insere e tendo, ainda, em consideração a respectiva idade, neste sentido, vejam-se os factos provados no ponto III do acórdão - Cfr. - c) Do julgamento e do relatório social de c.10. a c.18., constante de fls. 2084 verso a 2085 - entendemos ser possível, ainda assim, fazer um juízo de prognose favorável quanto à possibilidade de a respectiva reinserção social se fazer em liberdade.
cc) A simples censura do facto e a ameaça da prisão, no caso concreto, realizam, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição, sendo de aplicar ao arguido o instituto da suspensão da execução da pena, previsto no Art.50°doC.Penal.
dd) O tribunal "a quo" violou por errada interpretação e aplicação mormente, os Arts.40°n.°s 1 e 2, 50°, 71°doC. Penal, Art. 18º, n.° 1, por referência aos Arts. 16°, n.°1, e3°,n.°1, alínea i), daLei34/87de16/07,na redacção da Lei 108/2001 de 28/11.
ee) Nesta conformidade e pelo exposto o acórdão impugnado deve ser revogado e substituído por outro que condene o arguido pela prática de um crime de corrupção activa para a prática de acto ilícito, previsto e punível no Art.18°, n.° 1, por referência aos Arts. 16°, n.°1, e 3°, n.°1, alínea i), da Lei n.° 34/87 de 16/07, na redacção da Lei n.°108/2001de28/11, na pena de2 (dois) anos e (dois) 2 meses de prisão, pena esta suspensa na sua execução por igual período.”.
*
Também inconformado, veio o Arg. interpor recurso da referida decisão, com os fundamentos constantes da motivação de fls. 2162 a 2214, com as seguintes conclusões:
“A
1 - Tais como foram autorizadas e levadas a cabo no processo e serviram de fundamento para a decisão impugnada, as escutas telefónicas, a acção encoberta, as gravações de som e imagem sem consentimento são ilegais e nulas.
2 - Tanto por violação dos pressupostos materiais como das exigências formais-procedimentais de que a lei faz depender a admissibilidade e validade destas medidas.
3 - A nulidade resulta logo da ostensiva e total falta de fundamentação do despacho do Juiz de Instrução, de fls 15 dos autos, que autorizou as escutas telefónicas, as gravações de conversas entre presentes e os registos de imagem.
4 - O despacho é totalmente omisso quanto a todos os tópicos que devia convocar e sustentar: crime a perseguir, a sua pertinência ao catálogo das respectivas medidas, a suspeita fundada em factos concretos, a necessidade/subsidiariedade e a proporcionalidade.
5 - Mais do que uma fundamentação irregular ou insuficiente, o que está em causa é a inexistência pura e simples de fundamentação.
6 - Patente e chocante, para além disso, a violação dos princípios de subsidiariedade e de proporcionalidade.
7 - Por um lado, não há qualquer justificação para o recurso a uma escalada de medidas, não se explicando porque são todas indispensáveis e necessárias.
8 - Por outro, porquanto, para fazer face a uma infracção situada no limiar inferior da ilicitude penal e quase-bagatelar (crime de corrupção activa para acto lícito), foi mobilizado um arsenal de meios dos mais gravosos e invasivos, como se se tratasse de um “combate” às formas mais drásticas da criminalidade organizada ou do terrorismo.
9 - Ao violar abertamente a lei, o Juiz de Instrução limitou-se a agir como longa manus do Ministério Público, assumindo passiva e acriticamente os seus juízos de facto e de direito.
10 - E respondendo — na hora e de forma automática — a todos os seus impulsos e solicitações.
11 - Com este procedimento, o Juiz de Instrução frustrou o sentido e função da reserva de juiz, a saber, a tutela preventiva e a representação compensatória
12 - e ofendeu, além de o disposto no nº 2 do artº 18º CRP, directamente aplicável – nº 1 do mesmo preceito -, o conjunto normativo formado pelas disposições combinadas dos arts 187º, nº 1, e 189º, nº 1, CPP, 2º e 3º da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, e 1º e 6º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro.
13 - As normas legais contidas nos arts 2º e 3º da Lei 101/2001, de 25 de Agosto, 187º, nº 1, e 189º, nº 1, CPP, e 1º e 6º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, são inconstitucionais, por ofensa do disposto nos arts 18º, nº 2, 32º, nº 1, e 205º, nº 1, CRP, quando interpretadas no sentido de se considerar validamente autorizados meios ocultos de investigação (acções encobertas, escutas telefónicas, e gravações de conversas entre presentes e de imagens) através de despacho que não contenha a descrição e análise dos factos concretos que suportam a suspeita fundada da prática de crimes do catálogo que admitem o recurso a esses meios, e a ponderação, explicitada num juízo concreto, da necessidade/indispensabilidade de utilização desses meios e da sua proporcionalidade à gravidade concreta do crime a investigar.
14 - O direito português vigente — artigos 187º ss do Código de Processo Penal, Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto e Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, correctamente aplicados, nomeadamente à luz das exigências constitucionais da proporcionalidade e que foram violados pelo douto acórdão — não permite o recurso a escutas telefónicas, acções encobertas e gravação de conversas cara-a-cara e de imagem, para investigar e perseguir o crime de Corrupção activa para acto lícito.
15 - Mesmo que as medidas pudessem ter sido legalmente autorizadas e realizadas para investigar um suposto crime de Corrupção activa para acto ilícito, as provas através delas obtidas não podem ser valoradas para sustentar a prova do crime de Corrupção activa para acto lícito.
16 - Isto em conformidade com os regimes dos conhecimentos fortuitos e dos conhecimentos-da-investigação.
17 - Porque as medidas — escutas telefónicas, acção encoberta, gravação de conversas cara-a-cara e de imagem — foram ilegalmente autorizadas e realizadas, as provas que elas permitiram obter não podem ser valoradas para condenar o arguido Recorrente.
18 - Sobre elas impende uma intransponível proibição de valoração – arts 118º, nº 3, 125º e 126º, nº 2, CPP.
19 - As normas contidas nos arts 189º, nº 1, CPP, 2º, al. m), da Lei nº 101/2001, de 25 de Agosto, e 1º, nº 3, e 6º, da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, são inconstitucionais, por violação do art 18º, nº 2, CRP, quando interpretadas no sentido de permitirem o recurso à acção encoberta e ao registo de voz e imagem para investigação de crimes de corrupção activa, para acto lícito ou ilícito.
20 - As normas legais contidas nos arts 2º e 3º da Lei 101/2001, de 25 de Agosto, 125º, 187º, nº 1, e 189º, nº 1, CPP, e 1º e 6º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro, são ainda inconstitucionais, por ofensa do disposto no artº 18º, nº 2, CRP quando interpretadas no sentido de se considerar válidas para provar um crime de corrupção activa para acto lícito as provas obtidas (quer por conhecimento fortuito quer por conhecimento de investigação) através do recurso a meios ocultos de investigação (acções encobertas, escutas telefónicas, e gravações de conversas entre presentes e de imagens) autorizados para investigação dum crime de corrupção activa para acto ilícito pelo qual o Arguido foi absolvido.
21 - A autorização para acção encoberta concedida pelo Ministério Público, no dia 24 de Janeiro de 2006 (fls 6/7 do Apenso B) - com tão sôfrega precipitação que ocorreu dois dias antes de o proposto agente encoberto ter prestado as suas primeiras declarações -, foi comunicada, nesse dia, ao Juiz de Instrução (fls 15 dos autos), que não proferiu “despacho de recusa nas setenta e duas horas seguintes”.
22 - Face ao disposto no artº 3º, 3, da Lei 101/2001, de 25 de Agosto, considerar-se-ia a acção validada.
23 - No entanto, todos os actos praticados neste processo no âmbito da acção encoberta – signanter, as conversas entre presentes, com gravação cara-a-cara – ocorreram antes de esgotado esse prazo de setenta e duas horas,
24 - o que viola o princípio da reserva de juiz e a tutela preventiva e representação compensatória que lhe estão imanentes, dos quais decorre que nenhum acto possa ser praticado ao abrigo da acção encoberta sem que tenha sido proferido um despacho expresso de validação da acção ou sem que se tenha esgotado o prazo de setenta e horas necessárias para a sua validação tácita.
25 - Interpretado em sentido divergente, que permita a execução e validade de quaisquer actos praticados no âmbito da acção encoberta antes de proferido despacho de validação expressa ou de decorrido o prazo de validação tácita, o nº 3 do artº 3º da Lei 101/2001, de 25 de Agosto, está ferido de inconstitucionalidade material, por ofensa dos arts 18º, 1, e 32º, 1 e 8, CRP.
B
26 - Todas as provas produzidas no processo que tiveram origem no agente encoberto Dr B… (acção encoberta, gravações de conversas entre presentes, declarações de testemunhas – dele e de todos aqueles a quem ele transmitiu os factos) estão inquinados pelo vício irremível da violação de sigilo profissional de advogado e não podem valer em juízo.
27 - Ao decidir de modo diverso, o douto acórdão valorou prova proibida e ofendeu, por isso, o disposto no artº 87º, nº 1, al. e), e nº 5, da Lei 15/2005, de 26 de Janeiro, e no artº 125º CPP.
28 - Além do que, ao considerar permitida a actuação como agente encoberto dum Advogado, maxime com violação do sigilo profissional, assumiu uma interpretação inconstitucional das disposições conjugadas dos arts 2º e 3º, nº 1, da Lei 101/2001, de 25 de Agosto, e 87º, nº 1, al. e), e nº 5, da Lei 15/2005, de 26 de Janeiro, por violação do artº 208º CRP.
C
29 - Os factos dados como provados e imputados ao arguido Recorrente – mesmo que fossem verdadeiros, o que não se concede - não fundamentam a sua responsabilização, a nenhum título, pelo crime de Corrupção activa para acto lícito (artigo 18º, nº 2 da Lei nº 34/87, de 16 de Julho).
30 - Aqueles factos não preenchem a factualidade típica da incriminação, logo porque as prestações esperadas ou solicitadas ao titular do cargo político (desistência da acção popular e declaração pública de explicação e justificação) são tipicamente irrelevantes: porque não configuram actos de “exercício do cargo”.
31 - A responsabilidade criminal do arguido estará também excluída, por falta de culpa, devida a erro não censurável sobre a ilicitude, nos termos do artigo 17º, nº 1 do Código Penal.
32 - Porque não se provou que o arguido tivesse conhecimento da ilicitude (penal) — coisa diferente do conhecimento da proibição — como não se provou que o seu desconhecimento ou erro fosse censurável.
33 - O crime de corrupção activa (para acto lícito ou ilícito) é um crime de intenção ou de resultado cortado, em que “o tipo de ilícito é construído de tal forma que uma certa intenção surge como uma exigência subjectiva que concorre com o dolo do tipo ou a ele se adiciona e dele se autonomiza. Isso sucede (…) sempre que a intenção tipicamente requerida tem por objecto uma factualidade que não pertence ao tipo objectivo de ilícito”.
34 - Este elemento da factualidade típica, que representa a intenção específica de alcançar ou prosseguir um determinado fim – no caso dos autos: o “fim indicado no artº 17º” da Lei 34/87 -, só está preenchido quando ocorre o dolo directo do agente, não sendo susceptível de verificação através de dolo eventual, nem sequer de dolo necessário,
35 - o que não ocorre no caso vertente.
36 - O douto acórdão impugnado violou, assim, as normas legais contidas nos arts 18º, nº 2, da Lei 34/87, de 16 de Julho, e 17º, nº 1, do Código Penal.
D
37 - Na improcedência das questões que antecedem – o que não se admite senão para efeito de raciocínio -,
38 - o douto acórdão julgou incorrectamente os factos provados que descreveu nas alíneas a.13 a a.20; a.27; a.30; a.36 a a.38; a.41; a.49 a a.51; a.53 e ainda os factos não provados que ficaram transcritos na rubrica IV desta motivação,
39 - impondo-se a sua modificação (por forma a que os primeiros sejam julgados como não provados e os segundos como provados), com base, designadamente, nos seguintes elementos de prova produzidos e analisados em julgamento e conjugados com as regras da experiência comum:
- declarações do Arguido;
- declarações do agente encoberto Dr B…;
- cartão de visitas junto a fls 146 dos autos;
- mensagem SMS transcrita a fls 9 do Apenso F e transcrições de telefonemas de fls 7 a 10 do mesmo Apenso;
- declarações da testemunha Drª F…;
- declarações da testemunha G…;
- reprodução, por transcrição constante do respectivo Apenso dos autos, da gravação das conversas que ocorreram, nos dias 24 e 27 de Janeiro de 2006, entre o Arguido e o agente encoberto Dr B…;
- relatório de exame forense de fls 2002/2017 e Parecer junto ao requerimento apresentado pelo Arguido no dia 16.12.200.
40 - Além da síntese formulada pelo douto acórdão das diversas declarações, o Recorrente, no texto desta motivação, referiu, localizou e transcreveu, na parte com interesse, os depoimentos gravados, o que tudo deve ter-se aqui por reproduzido.
41 - Ao decidir de modo diverso do propugnado, o douto acórdão ofendeu, entre outros, o artº 127º CPP.
42 - Deve revogar-se o douto acórdão recorrido, absolvendo-se o Recorrente.”.
*
Ainda inconformado, interpôs também recurso o Assistente C…, id. a fls. 1741, nos termos de fls. 2390 a 2403, concluindo da seguinte forma:
“1ª A fls. 41 do Acórdão e no seu ponto IV deu o tribunal a quo como não provado que o arguido A… pretendesse que o Vereador C… viesse a afirmar a sua mudança de opinião em sede de reuniões dos órgãos do Município de Lisboa, por um lado, e, por outro, que o arguido tivesse actuado com vista a levar o referido Vereador a violar as obrigações que havia assumido com a aceitação do seu mandato;
2ª Tais factos deviam ambos ter sido dados como provados atendendo à prova produzida e existente nos autos, sendo de destacar, para além das gravações realizadas, as declarações da testemunha B… produzidas na sessão de 16.09.08 e na sessão de 23.09.08;
3ª A decisão a quo deve, neste ponto, ser reformulada com base nos elementos de prova acima mencionados e sem necessidade de recurso a qualquer outra diligência processual;
4ª O crime de corrupção consumou-se no dia 22 de Janeiro de 2006 assim que o assistente teve conhecimento dos factos propostos pelo arguido e transmitidos pelo seu irmão, Dr. B…, independentemente do teor das conversas e reuniões posteriormente mantidas – a pedido da investigação – nos dias 24 e 27 do mesmo mês;
5ª Se, após a consumação do crime no dia 2 de Janeiro de 2006, o arguido, pensando melhor na eficácia que pretendia, propõe, à margem das intervenções do assistente como vereador nos órgãos autárquicos, que seja feita uma declaração com a presença dos meios de comunicação social tal alteração ou complemento não tem relevância jurídico-penal: o crime estava consumado;
6ª Dando como provado que o arguido A… pretendeu que o Vereador C… viesse a afirmar a sua mudança de opinião em sede de reuniões dos órgãos do Município de Lisboa, por um lado, e, por outro, que o arguido actuou com vista a levar o referido Vereador a violar as obrigações que havia assumido com a aceitação do seu mandato, então deverá esse douto tribunal igualmente reformular a decisão a quo no sentido de considerar estarem integralmente preenchidos os requisitos objectivos e subjectivos do crime de corrupção activa para acto ilícito previsto e punido no artigo 18º, nº 1 da Lei 34/87 de 16 de Julho;
7ª Mas ainda que se conclua não ser de alterar qualquer da matéria de facto do acórdão de primeira instância defende o assistente que da matéria de facto dada como provada resulta, do mesmo modo, o preenchimento dos pressupostos para a aplicação ao arguido da pena contida no artigo 18º, nº 1 da citada lei, ou seja, entende o assistente que o Acórdão contém matéria de facto suficiente para se impor a condenação do arguido pelo crime de corrupção activa para acto ilícito;
8ª Tal conclusão decorre da análise conjunta dos seguintes factos fundamentais descritos no Acórdão condenatório e dados como provados sob as alíneas a.6., a.8., a.9., a.10., a.12., a.14., a.19., a.27., a.30., a.36., a.37., a.39., a.40., a.52, a.53. e a.54.:
9ª O arguido sabia e pretendia que o assistente, na qualidade de vereador, produzisse as pretendidas declarações em violação frontal à sua consciência, em violação frontal à sua opinião sobre a ilegalidade do negócio realizado e em violação do princípio da imparcialidade;
10ª O assistente, enquanto vereador, deixava de ser livre tendo de fornecer uma explicação que consubstanciava uma mentira sobre tais factos porquanto não tinha mudado de opinião nem tinha tido acesso a novos documentos;
11ª Acresce que o assistente também era corrompido para ficar em silêncio relativamente à questão do direito de preferência (cfr. Ponto a.40. do acórdão acima transcrito), ou seja, o arguido pretendia igualmente que o vereador C… tivesse uma conduta omissiva;
12ª Tais considerações são totalmente independentes da análise sobre a legalidade substantiva do negócio realizado;
13ª O que importa, do ponto de vista das obrigações de qualquer vereador eleito, é precisamente a expressão da opinião que tal vereador tem sobre um determinado assunto;
14ª Os munícipes não podem tolerar que um vereador diga que mudou de opinião se não mudou, não podem tolerar que um vereador afirme ter consultado novos elementos se eles não existem e, por isso, aquele não os consultou, não podem tolerar que um vereador afirme algo contrário ao que, interna e externamente, sempre defendeu, não podem tolerar que subitamente um vereador fique em silêncio quanto a uma questão fundamental que sempre apontou criticamente, tudo a troco de uma compensação pecuniária;
15ª É na valoração de tal liberdade e imparcialidade que o sistema está construído;
16ª O arguido pretendeu comprar – COM DINHEIRO – quer a ficcionada mudança de opinião do vereador C… quer o seu comportamento omissivo quanto ao direito de preferência;
17ª Se, por mera hipótese de raciocínio, o assistente tivesse feito o que o arguido dele pretendia teria praticado um crime de corrupção passiva para acto ilícito por ter violado as suas obrigações enquanto vereador, com particular destaque para a violação do dever de imparcialidade
18ª Isso é inaceitável e configura hialinamente a prática de um crime de corrupção activa para acto ilícito previsto e punido no artigo 18º, nº 1 da Lei 34/87 de 16 de Julho pelo qual o arguido deve justamente ser condenado numa pena concreta de prisão!”.
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O Ex.m.º Magistrado do MP, respondeu ao recurso do Arg., nos termos de fls. 2472 a 2484, em suma, pugnando pela improcedência do mesmo.
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O Arg. respondeu aos recursos do MP e do Assistente, nos termos de fls. 2515 a 2533, concluindo da seguinte forma:
“1. O douto acórdão impugnado não incorreu nos erros de julgamento da matéria de facto nem da matéria de direito que os Recorrentes lhe atribuem.
2. Devem, por isso, os recursos ser julgados improcedentes.”.
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O Assistente, respondeu ao recurso do MP, nos termos de fls. 2534 a 2543, em suma, mantendo as posições já assumidas na motivação do recurso que interpôs.
E ao recurso do Arg., nos termos de fls. 2548 a 2575, em suma, pugnando pela sua improcedência.
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Neste Tribunal o Ex.m.º Procurador-Geral Adjunto reservou a sua tomada de posição para a audiência requerida pelo Assistente (fls. 2593), na qual se pronunciou pela procedência dos recursos do MP e do Assistente e pela improcedência do recurso do Arg..
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Cumpre decidir.
A sentença (ou acórdão) proferida em processo penal integra três partes distintas: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. A fundamentação abrange a enumeração dos factos provados e não provados relevantes para a decisão e que o tribunal podia e devia investigar; expõe os motivos de facto e de direito que fundamentam a mesma decisão e indica, procedendo ao seu exame crítico e explanando o processo de formação da sua convicção, as provas que serviram para fundamentar a decisão do tribunal.
Tais provas terão de ser produzidas de acordo com os princípios fundamentais aplicáveis ou seja o princípio da verdade material; da livre apreciação da prova e o princípio “in dubio pro reo”. Igualmente é certo que, no caso vertente, tendo a prova sido produzida em sede de audiência de julgamento, está sujeita aos princípios da publicidade bem como da oralidade e da imediação.
A decisão em crise fixou da seguinte forma a matéria de facto:
“III. Resultaram como provados, em julgamento e com interesse para a decisão da causa (constituindo objecto de prova nos moldes do Art.º 124.º do CPPenal), excluindo aqui os enunciados meramente valorativos, conclusivos ou de cariz negativo (ou impugnatório), os factos seguidamente discriminados:
a) Da pronúncia e do julgamento.
a.1. O arguido A… é sócio gerente da sociedade “D… – Estacionamentos, SA” que, por sua vez, detém a maioria do capital social da sociedade “E… – Investimentos Imobiliários, SA", com sede na Travessa do …, n.º 00, em Lisboa.
a.2. Na data de 5 de Julho de 2005, a referida sociedade “E… – Investimentos Imobiliários, SA", representada pelo arguido A… e pelo seu sócio H…, celebrou com a Câmara Municipal de Lisboa um contrato, sob a forma de escritura pública, de permuta dos imóveis de que era proprietária, sitos junto à Avenida da …, em Lisboa, e conhecidos como “X…”, por um terreno para construção, composto por uma superfície necessária para desenvolver uma área de edificação, acima do solo, no total de 61.000 (sessenta e um mil) metros quadrados, sita junto à Avenida da…, zona de …, em Lisboa, local conhecido por “Z…”, pertencente à autarquia .
a.3. Os termos de tal acordo haviam sido aprovados, na data de 4 de Fevereiro de 2005, em reunião da Câmara Municipal de Lisboa, com base na proposta de deliberação n.º 00/2005, submetida à Assembleia Municipal, onde foi aprovada por deliberação de 1 de Março de 2005 – deliberação n.º 00/000/2005 .
a.4. Os intervenientes em tal contrato acordaram ainda que os termos da permuta previam a concessão à sociedade “E… – Investimentos Imobiliários, Lda” de um direito de preferência sobre a aquisição de um outro lote de terreno para construção, igualmente sito no espaço conhecido como Z…, zona de … – operação de loteamento de iniciativa municipal n.º 00/2005, aprovado pela deliberação 000/00/2005, que deu origem aos lotes de terreno 0000/000 e 0000/000, correspondentes, respectivamente, às descrições prediais n.º 000 e 000, da Freguesia de Nossa Senhora de Fátima (informação da 2ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa de folhas 772 e seguintes).
a.5. Na sequência desse entendimento, porque a sociedade “E… – Investimentos Imobiliários, Lda” veio a apresentar uma proposta que foi considerada equivalente à vencedora do procedimento de hasta pública instaurado para a venda do referido segundo lote de terreno, veio também o mesmo a lhe ser vendido, prevendo-se aí um total de 59.000 (cinquenta e nove mil) metros quadrados de área de construção acima do solo, por um valor de 61.950.000,00 € (sessenta e um milhões novecentos e cinquenta mil euros), conforme escritura de compra e venda celebrada a 20 de Julho de 2005, de cópia a folhas 427.
a.6. Por discordar dos termos de tal acordo e por o julgar lesivo dos interesses da autarquia de Lisboa, o cidadão C… veio a intentar, em Julho de 2005, uma acção popular, perante o Tribunal Administrativo e Fiscal de Lisboa, onde lhe veio a ser atribuído o n.º 0000/05.BELSB e foi distribuído ao 2.º Juízo, 4ª Unidade Orgânica Administrativa, deduzindo, contra o Município de Lisboa, a sociedade “E… – Investimentos Imobiliários, SA" e a “EPUL – Empresa Pública de Urbanização de Lisboa”, a pretensão de o Tribunal declarar a nulidade das deliberações que aprovaram o acordo e do contrato de permuta de terrenos supra referido, bem como a nulidade da deliberação e das operações de loteamento do terreno onde se encontrava instalada a Z… .
a.7. O mesmo cidadão C… veio ainda a requerer e a obter o registo da referida acção, em sede de Registo Predial, como inscrição às descrições prediais n.º 000 e 000, da Freguesia de Nossa Senhora de Fátima, em Lisboa, correspondentes aos terrenos da designada Z… adquiridos pela “E… Investimentos Imobiliários, SA" por via do contrato de permuta supra referido ( 2ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, doc. de folhas 774 e de folhas 819 e seguintes).
a.8. O cidadão C… apresentou-se como candidato às eleições autárquicas, para o Município de Lisboa, no acto eleitoral que veio a ter lugar na data de 9 Outubro de 2005, vindo a ser eleito como vereador, cargo de que tomou posse a 28 de Outubro de 2005.
a.9. No âmbito das funções que assumiu como vereador, C… continuou a manifestar-se e a tomar posições dentro da Câmara de Lisboa contra o acordo supra referido, celebrado com a D…, designadamente quanto aos projectos de viabilização de construção destinados aos terrenos cedidos pela autarquia junto a ….
a.10. Assim, o vereador C… veio a tomar posição contra o Plano de Alinhamento de … da Av. da …, do qual dependia a altura de construção que viria a ser permitida na zona de…, e que veio apenas a ser aprovado para discussão pública e elaboração dos Planos de Pormenor, através da Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional de Lisboa e Vale do Tejo, na data de 7 de Junho de 2006 .
a.11. O Dr. C… havia ainda tomado posição em actos públicos contra outros interesses conexos com empresas participadas pelo arguido e pela D…, tal como os termos dos acordos de exploração de parques de estacionamento subterrâneos celebrados com as referidas empresas.
a.12. Ao mesmo tempo, o vereador C… continuou a patrocinar a acção popular n.º 0000/05.0 BELSB, mantendo o registo da sua pendência a onerar os prédios descritos na 2ª Conservatória do Registo Predial de Lisboa, inscrições prediais n.º 000 e 000, da Freguesia de Nossa Senhora de Fátima.
a.13. Em face dos atrasos no desenvolvimento do projecto de construção para os terrenos da designada Z…, com os consequentes custos financeiros, provocados por tais posições do vereador C… e face à pendência, em sede de registo predial, do ónus relativo à acção pendente, para além da má imagem pública que as suspeitas de ilegalidades implicavam as sociedades associadas à “D…”, dificultando encontrar parceiros para o desenvolvimento de projectos comuns, o arguido A… formulou o propósito de procurar fazer o referido C… desistir da acção referida em a.6. destes factos provados apresentando um proposta de compensação pecuniária.
a.14. Pretendia o arguido A… que o mesmo C… procedesse à desistência da acção popular referida em a.6., sabendo que para isso este teria de se justificar publicamente mediante uma explicação da sua mudança de opinião quanto à valia e à legalidade do acordo de permuta, afirmando a correcção dos procedimentos desenvolvidos pelas sociedades participadas pela D… e pelos respectivos sócios.
a.15. Para o efeito, o arguido A… pensou em abordar o irmão do mesmo vereador C…, o advogado B…, que sabia ter escritório no mesmo edifício e nas mesmas instalações da sua advogada pessoal e das sociedades por si participadas, a Dra. F… .
a.16. Assim, na data de 18 de Janeiro de 2006, o arguido A…, identificando-se apenas como A…, telefonou, ao Dr. B…, para o telefone do escritório deste último, pedindo-lhe para marcarem uma reunião, que deveria ocorrer fora das instalações do escritório, dizendo apenas ser a fim de tratarem de um assunto de interesse comum e que teria uma proposta a apresentar.
a.17. O Dr. B…, acedeu a manter tal reunião com o A…, que veio a ocorrer, por disponibilidade de agenda do primeiro, apenas no dia 22 de Janeiro de 2006, cerca das 17H30, nas instalações de bar do Hotel Mundial, junto à Praça da Figueira, em Lisboa.
a.18. No decurso desse primeiro encontro, o arguido A… começou por abordar os antecedentes do negócio de permuta de terrenos realizado entre a Câmara Municipal de Lisboa e a “E… Investimentos Imobiliários”, lamentando-se do tempo já perdido até à celebração do negócio e dando a entender ao Dr. B… de que o procedimento por parte da sua empresa havia sido correcto e conforme à lei, pelo que a acção judicial interposta pelo irmão do seu interlocutor, o Dr. C…, estaria condenada ao fracasso, visando dar a aparência de não estar preocupado com o resultado final de tal acção.
a.19. Nessa sequência, o arguido transmitiu ao Dr. B… que, de forma a evitar mais perdas de tempo no desenvolvimento de projectos para os terrenos da antiga Z…, estaria disposto a realizar o pagamento de um montante pecuniário em benefício do Dr. C… se o mesmo viesse a desistir da acção pendente perante o Tribunal Administrativo e Fiscal e a proferir declarações públicas no sentido mencionado em a.14..
a.20. Tendo-se apercebido do alcance da proposta que lhe estava a ser dirigida, o Dr. B… respondeu ao arguido que precisava de falar com o irmão, não podendo dar qualquer resposta naquele momento, mas comprometendo-se a contactar o mesmo C… e a vir a dar uma resposta num próximo encontro, tendo o arguido concordado com tal procedimento.
a.21. Logo ficou acordado entre os dois vir a ocorrer um novo encontro, no mesmo local, que seria marcado por mensagens escritas trocadas entre os telemóveis dos dois, tendo o arguido A… dado como seu contacto o número 000000000.
a.22. Ainda no mesmo dia, o Dr. B… contactou com o seu irmão C…, a quem deu a conhecer o encontro mantido e o teor da proposta recebida, tendo os dois, de imediato, acordado em recusar a mesma e dar conhecimento dos factos à autoridade judiciária.
a.23. Foi assim, instaurado o inquérito que abriu o presente processo, na pendência do qual o Dr. B… foi autorizado à prática de actos de colaboração, na invocação da acção encoberta, em coordenação com a Policia Judiciária, através de despacho que foi proferido e presente ao Juiz de Instrução na data de 24 de Janeiro de 2006, não tendo recebido deste qualquer oposição – procedimento de acção encoberta que consta do actual Apenso B (despacho de fls. 15 do respectivo apenso).
a.24. Assim, o Dr. B…, no âmbito dos referidos actos de colaboração, aceitou participar em novo encontro com o arguido A…, tal como já havia sido acordado entre os dois, através da troca de mensagens escritas, tendo sido marcado para o próprio dia 24 de Janeiro, pelas 18:00H, de forma a permitir descobrir qual o pagamento concreto que seria proposto e a concretizar melhor qual a actuação que o arguido pretendia obter do seu irmão, o vereador C….
a.25. Ainda no dia 24 de Janeiro de 2006, pelas 18h00, tal como previamente acordado, o Dr. B… encontrou-se com o arguido A…, no bar do Hotel Mundial, inquirindo-o sobre como é que iriam proceder para ser realizado o pagamento e praticados os actos pretendidos, colocando o arguido na perspectiva de o seu irmão vir a aceitar o proposto.
a.26. O arguido explicou então que não poderia haver contactos seus directos com o Dr. C… e que, mesmo os contactos telefónicos a manter consigo deveriam passar a ser feitos através de recados ou mensagens deixadas no telemóvel do seu filho I…, com o n.º 000000000.
a.27. Mais disse o arguido A… que pretendia que o Dr. C…, na qualidade de Vereador, viesse dizer publicamente que, após ter tomado posse, tinha consultado e analisado os processos existentes na Câmara Municipal de Lisboa e que tinha concluído não haver qualquer ilegalidade por parte da actuação das sociedades representadas pelo arguido em sede dos acordos relativos aos terrenos do X… e da Z….
a.28. Relativamente ao pagamento que se tinha proposto realizar, o arguido afirmou que apenas poderia ser feito ao Dr. B…, de preferência no …, local da sede da D…, e que seria mais fácil se lhe pudessem arranjar documentos de suporte de despesa, pois de outra forma teria que ir desviando alguns montantes das receitas das empresas, mas admitiu ainda que poderia ser feito a coberto de um contrato promessa de um andar num edifício que uma empresa do grupo projectava construir em Lisboa, na zona da Estefânia.
a.29. Quanto ao montante que estaria disposto a pagar, o arguido referiu a quantia de 200.000,00 € (duzentos mil euros), que teria que entregar ao Dr. B… em várias tranches, dadas as dificuldades em obter um tal montante.
a.30. O arguido expressou que uma das hipóteses poderia passar por uma declaração, por parte do Dr. C…, na reunião da Câmara Municipal, e com a remessa para o Tribunal de um requerimento de desistência da acção pendente, pedindo ao Dr. B… que marcasse novo encontro logo que tivesse uma resposta de aceitação ou não da mesma proposta.
a.31. Ainda em coordenação com a Policia Judiciária, nos moldes atrás descritos, e de forma a confirmar o interesse na proposta apresentada pelo arguido, o Dr. B… sugeriu a realização de novo encontro, enviando para tal, na data de 26-1-2006, pelas 10:00H, uma mensagem escrita para o telemóvel do I… dizendo “amanhã às 12H00 no mesmo local? Peço confirmação”.
a.32. O mesmo I…, logo após receber a mensagem, contactou com o seu pai, arguido A…, que manifestou interesse em falarem os dois antes de confirmarem a reunião.
a.33. O arguido A… apenas confirmou a reunião na parte da tarde do mesmo dia, tendo instruído o seu filho I… para mandar, via telemóvel, uma mensagem escrita ao Dr. B… com os dizeres “É só para confirmar a presença amanhã às 12 Horas, no local marcado”.
a.34. Assim, o arguido A… e o Dr. B… voltaram a encontrar-se no Bar do Hotel Mundial, em Lisboa, no dia 27 de Janeiro, pelas 12H00.
a.35. Nesse novo encontro o mesmo A… começou por procurar fazer crer que a acção instaurada pelo Dr. C… teria poucas possibilidades de êxito, até porque teria recebido da sua advogada a indicação de que existiam pareceres jurídicos no sentido da existência de incompatibilidade entre o estatuto de vereador e o de patrocinador de uma acção popular, visando o arguido diminuir a relevância da actuação que pretendia que o Dr. C… levasse a cabo.
a.36. Porém, tendo recebido do Dr. A…, conforme instrução da Policia Judiciária, a indicação de que o C… estaria disposto a considerar a sua proposta, o arguido A… frisou a necessidade daquele vereador fazer um esclarecimento público, no qual deveria afirmar que as pessoas e as entidades que haviam negociado com a CML o contrato da Z…/X…, isto é, o arguido e os demais accionistas da “D…” e da “E… - Investimentos Imobiliários”, haviam estado de boa fé, tendo cumprido as exigências legais, pelo que não deveriam ser prejudicados, tanto mais que apenas haviam actuado na defesa dos interesses das suas empresas.
a.37. O arguido A… afirmou ainda que tal declaração poderia ser feita em sede de Assembleia Municipal, mas o que lhe interessava é que fosse feita na presença de elementos da comunicação social.
a.38. Com efeito, visava o arguido, para além da desistência da acção, de uma justificação pública que, por essa via, demonstrasse a legalidade do negócio e, por essa via, melhorar a imagem pública das sociedades “D…” e associadas, nas quais tinha participação.
a.39. Confrontado então, pelo Dr. B…, com a possibilidade de o vereador C… vir a ser criticado por terceiros por ter mudado de posição, o arguido realçou que, na declaração, o vereador deveria remeter para documentos e consulta de processos que antes não lhe estavam acessíveis, ao mesmo tempo que garantiu que, da parte das suas empresas, seria feita também uma declaração de apoio à nova posição tomada pelo vereador.
a.40. O arguido A… explicou então ao Dr. B… que a única oposição credível ao contrato de permuta e que poderia prejudicar o desenvolvimento dos projectos da Z… era a que provinha do Dr. C…, pelo que este deveria ficar em silêncio, em particular no que se pudesse referir ao direito de preferência reconhecido pela Câmara Municipal de Lisboa, realçando ainda o arguido que o C… não ficaria comprometido consigo aos olhos do público, até porque o arguido não conhecia sequer pessoalmente o vereador e, no futuro, se se cruzassem em qualquer ocasião, não precisavam sequer de se cumprimentar.
a.41. O arguido A… insistiu, de novo, que a declaração pública a realizar pelo vereador poderia esclarecer que os responsáveis da sociedade do grupo D… não tinham qualquer responsabilidade pelos termos do negócio de permuta e sugeriu mesmo que a declaração abrangesse uma censura ao Dr. U… por este se ter oposto à instalação de um casino no espaço do X…, o que, na versão do arguido, teria permitido resolver o problema sem custos para o Município e sem permutas.
a.42. O Dr. B… colocou então, de novo, ao arguido a questão do montante e da forma do pagamento, tendo A… renovado a proposta de entrega de 200.000,00 € (duzentos mil euros) e propondo-se fazer a mesma por cheque e na totalidade caso lhe fosse entregue um documento de suporte de despesa, mesmo que relativo a serviços.
a.43. No entanto, dada a dificuldade em produzir um tal documento, tanto mais que o arguido reforçou não poder haver qualquer ligação com o escritório de advogados do Dr. B…, o arguido A… propôs realizar o pagamento em numerário, podendo de imediato entregar 100.000,00 € (cem mil euros) e depois, no espaço de mês e meio, realizar duas outras entregas de 50.000,00 € (cinquenta mil euros) cada.
a.44. O arguido explicou que tal pagamento faseado se ficava a dever ao facto de o dinheiro provir de montantes parciais não manifestados, recebidos nas escrituras de compra e venda que fosse realizando, declarando ser um modo de proceder em que não era “virgem”.
a.45. Quanto ao momento oportuno para fazer a declaração, o arguido sugeriu que o identificado C… a fizesse logo a partir do dia 31 de Janeiro, terça-feira seguinte, uma vez que o A… estaria então ausente do país, em Angola, não podendo ser associado à mesma, propondo para o efeito realizar o pagamento da quantia prometida na Segunda Feira, dia 30 de Janeiro, ou na própria terça feira de manhã.
a.46. O arguido defendeu que a declaração do mesmo C… viesse a ser realizada durante a sua ausência do país, mas o Dr. B…, visando ganhar tempo, pretextou que na segunda e na terça feira seguintes estaria ocupado em julgamento, não podendo deslocar-se a encontros para receber o dinheiro.
a.47. O arguido voltou ainda a insistir em realizar uma entrega de dinheiro antes de se deslocar a Angola, propondo mesmo que o Dr. B… fosse a sua casa, em …, no dia seguinte, dia 28 de Janeiro, Sábado, proposta que este último recusou, pretextando ter que falar com o irmão C… sobre os termos e as consequências da declaração pública a realizar.
a.48. O arguido A… propôs então fazer a entrega do numerário em qualquer outro ponto, sugerindo um escritório no …, um restaurante em … ou mesmo no parque de estacionamento subterrâneo do Martim Moniz, em Lisboa, mas o Dr. B…, ainda visando ganhar tempo, terminou o encontro dizendo que voltaria a contactar o arguido a partir do dia 6 de Fevereiro, segunda feira seguinte, sendo então marcada uma data e um local para ser feita a entrega do dinheiro.
a.49. Após este encontro, face ao protelar da aceitação da entrega do dinheiro, o arguido A… desconfiou que terceiros tivessem tido conhecimento dos contactos mantidos com o Dr. B… e decidiu procurar ocultar e disfarçar os seus verdadeiros propósitos, visando criar a aparência de que, nos encontros mantidos, tinha estado em causa dar uma contribuição para uma campanha política.
a.50. Assim, para o efeito, o arguido deu instruções ao seu filho I… para mandar uma mensagem escrita, via telemóvel, ao Dr. B…, com os dizeres “o meu pai pede para avisar que o valor por vós pedido para a campanha política não nos é possível. Devido à nossa filosofia não patrocinamos campanhas”, mensagem que veio a ser enviada do telemóvel n.º 000000000, pelas 15H39, do dia 30 de Janeiro de 2006.
a.51. O arguido não voltou a contactar com o Dr. B… em vista do exposto em a.49., para o que inscreveu num cartão de visita os seguintes dizeres: “Dr. B… que um apoio para campanha politica 250.000 Zero” (documento constante de folhas 146 dos autos).
a.52. Ao abordar e manter três encontros com o Dr. B…, o arguido A… visava conseguir, a troco de uma prestação pecuniária, tal como exposto em a.14., que o identificado C… procedesse à desistência da acção popular referida em a.6., sabendo que para isso este teria de se justificar publicamente mediante uma explicação da sua mudança de opinião quanto à valia e à legalidade do acordo de permuta, afirmando a correcção dos procedimentos desenvolvidos pelas sociedades participadas pela D… e pelos respectivos sócios (em particular as empresas “D…” e “E… – Investimentos Imobiliários”).
a.53. O arguido A… sabia que o Dr. C… exercia um mandato electivo como vereador na Câmara Municipal de Lisboa, mas actuou no sentido exposto, sabendo que, dessa forma, condicionava o exercício das suas funções e a sua autonomia política, propondo-se realizar a favor do mesmo atribuições financeiras e patrimoniais para tal fim.
a.54. O arguido A… sabia ainda que, com a sua conduta, estaria a colocar em causa a confiança que os eleitores haviam depositado no Dr. C…, ao proporcionarem a sua eleição como vereador, bem como a soberania e a autonomia das decisões que o mesmo viesse a tomar na qualidade de eleito municipal.
a.55. O arguido A… actuou livre e conscientemente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
b) Da contestação do arguido e do julgamento.
b.1. O arguido desloca-se há anos ao escritório da sua advogada Dr.ª F…, local onde o identificado Dr. B… também exerce a advocacia.
b.2. Sendo a sua voz perfeita e imediatamente reconhecida pela telefonista do escritório sempre que estabelece com ele ligação telefónica.
b.2. O Dr. B… é sócio da Sociedade de Advogados “K…& Associados”, da qual é também sócio a Dra. F….
b.4. Trabalhando ambos, tal como descrito em b.1., no escritório sito na Rua …, n.º .., em Lisboa.
b.5. Desde há vários anos a esta parte, a Dra. F… patrocina, como advogada, os interesses das várias sociedades de que o arguido é represen­tan­te, incluindo aquela “E… Investimentos Imobiliários”, SA..
b.6. Facto que é do conhecimento do Dr. B….
b.7. O Arguido, para tratar dos interesses das suas representadas, desloca-se, desde há anos, todas as semanas aos escritórios da identificada “K… & Asso­cia­dos”, onde se cruza e, por vezes, trocava algumas palavras com o Dr. B….
b.8. Em Junho de 2004 e Agosto de 2005 o advogado em regime de estágio, Dr. L…, a pedido da identificada Dr.ª F… que para isso falou com o Dr. B…, patrono daquele primeiro, veio a produzir para o grupo de empresas representado por A…, dois pareceres (um primeiro parecer e uma nova versão actualizada) e uma consulta jurídica a propósito do enquadramento jurídico-tributário dos Fundos de Investimento, isto a título particular e sem qualquer intervenção técnico ou de opinião do seu patrono, o advogado B….
b.9. O mesmo Dr. L… utilizou, para o envio de um dos pareceres à Dr.ª F…, o e-mail do Dr. B…, nos moldes documentados a fls. 1533 dos autos, por saber que este era gerido pela secretária deste último e em combinação prévia com esta.
b.10. No dia 8 de Novembro de 2005, a Dr.ª F…, em representação da Ré E… - Investimentos Imobiliários, SA., contestou a acção descrita em a.6. e a.7., tendo dado entrada nessa data ao respectivo articulado.
b.11. No dia 30 de Novembro de 2005, foi junta a esse processo uma procuração, datada de 31/7/2005, através da qual o Autor da acção constituía seus mandatários forenses o Prof. Dr. M… (também sócio daquela Sociedade de Advogados), o Dr. B… e outros dois colegas de escritório.
b.12. Quando, no dia 17 de Janeiro de 2006, foi notificada da junção aos autos da procuração outorgada a favor dos seus colegas e, por essa via, tomou conhecimento desse patrocínio a Dr. F… interpelou de seguida o Dr. B…, exigindo-lhe explicações para o facto.
b.13. E porque entendeu que as mesmas não seria satisfatórias, no dia 24 de Janeiro seguinte enviou a cada um dos Advogados constituídos pelo Autor Dr. C… uma carta com o objectivo de obter, segundo o que se encontrava escrito, a sanação do conflito de interesses.
b.14. Carta essa que obteve resposta escrita no dia 26 de Janeiro seguinte, nos moldes que se documentam a fls. 1804 dos autos, onde se refere que em Julho de 2005 foi solicitado pelo identificado C… aos mencionados M… e B…, que o patrocinassem nas acções populares que movera contra o município de Lisboa, o que foi aceite.
b.15. Em 16/2/2006 veio a ser junto aos referidos autos de acção administrativa um substabelecimento, datado de 25/1/2006, a favor do advogado Dr. N…, dos poderes anteriormente conferidos ao Prof. M…, Dr. B… e outros.
b.16. Da informação de serviço exarada a fls. 2 do dossier de acompanhamento de acção encoberta (Apenso B), datada de 24/1/2006, consta que o Dr. B…, no dia 24 de Janeiro de 2006, informou a Polícia Judiciária de que o Arguido "o contactou, no intuito de saber da disponibilidade do Vereador C… para, mediante o pagamento de valores em numerário em montante o combinar oportunamente, desistir dos acções populares que intentou contra a CML, mormente a acção conexa com o negócio/Permuta do X… e a Z…, oferecendo os seus serviços para a prática de actos de colaboração (…)”.
b.17. E, ainda, nessa mesma informação, que “mais informou o denunciante que já decorreu no Hotel Mundial, em Lisboa, um encontro no dia 22 do corrente mês, do qual realizou uma gravação de parte das conversas mantidas, cuja cópia se anexa (um mini CD)”.
b.18. Nesse mesmo apenso B. consta um despacho exarado pelo procurador da República responsável pelo inquérito, datado de 24/1/2006, autorizando a actuação do identificado Dr. B… ao abrigo da acção encoberta.
b.19. No mesmo dia 24/1/2006, foi lavrado a fls. 15 dos autos principais, após remessa dos autos (principais e apenso de acção encoberta / dossier de acompanhamento), um despacho judicial a autorizar a intercepção e gravação de comunicações de telefones móveis, a intercepção e gravação de conversas e a captação de som e imagens, sendo que em 3/2/2006, veio a ser proferido novo despacho judicial, datado de 3/2/2006, com homologação das transcrições, validação da intercepção e gravação de conversa, determinação de transcrições e autorização da realização de exame ao telemóvel, isto a fls. 71 dos autos principais.
b.20. Em 8/2/2006, o identificado Dr. B…, veio a prestar no desenrolar do apenso de acção encoberta um novo depoimento, no qual esclareceu “que, em Julho de 2005, o seu irmão pediu ao Professor M… e ao próprio depoente que o passassem a patrocinar nas acções populares que ele tinha movido contra a CML, o que consta de declarações públicas então por ele feitas. Assim tem acontecido, tendo o Professor M… e o depoente chegado a juntar procuração aos Autos da acção movida pelo seu irmão relativamente ao X…. No entanto, quando souberam que essa acção havia sido contestada pela sua colega de escritório Dr.ª F…, o Professor M… e o depoente entenderam (após contactos recíprocos com a Dr.ª F…) que, para evitar embaraços no escritório, seria preferível, nessa acção do X…, substabelecer os poderes noutro colega, Dr. N…, o que aconteceu em momentos contemporâneos dos factos que ora se relatam, já em Janeiro do corrente ano. O Professor M… e o depoente não chegaram a ter qualquer intervenção nessa acção judicial e nas conversas com o Sr. A… nunca houve qualquer referência a essa situação, tendo o depoente feito questão de sublinhar que não estava a falar com ele como Advogado, mas como irmão do Vereador C…, logo que percebeu que a conversa tinha a ver com os negócios do “X…”, isto nos moldes de fls. 14-15 dos autos de apenso B – Anexo de Acção Encoberta.
c) Do julgamento e do relatório social.
c.1. O arguido A… é natural do concelho de …, distrito de …, sendo o 5.º filho de um conjunto de seis elementos descendentes de uma família de condição social humilde.
c.2. O mesmo arguido viveu integrado na família natural até aproximadamente os 17 anos de idade. Concluiu então o 4.º ano de escolaridade e colaborou desde muito novo na actividade agrícola que os pais desenvolviam.
c.3. Aos 14 anos o arguido A… frequentou um curso de formação Agrícola com a duração de um ano, na …, e trabalhou à noite, por vezes, na descarga de navios bacalhoeiros para auferir algum rendimento.
c.4. Com 17 anos de idade ofereceu-se como voluntário para o serviço militar, onde permaneceu cerca de 3 anos, decidindo retirar-se na sequência do 25 de Abril.
c.5. Durante o referido período frequentou em simultâneo o 1.º e o 2.º ano da Escola Prática de Engenharia.
c.6. De seguida emigrou para o Canadá, mas ao fim de 6 meses foi obrigado a regressar a Portugal por não dispor de autorização legal de permanência naquele país.
c.7. Emigrou então para França onde se encontravam três irmãos. Um mês após a permanência em França começou a trabalhar por conta própria no sector da construção civil juntamente com um cunhado.
c.8. Com os dividendos obtidos na referida actividade, que manteve até 1978, iniciou-se nos negócios em Portugal fundando com o seu próprio capital uma linha de supermercados familiares "O… Supermercados". Mais tarde esta cadeia de cobertura nacional com 160 estabelecimentos, incluindo alguns de "Cash and Carry" veio a ser vendida em 1992/1993 ao grupo "P…".
c.9. Em simultâneo dedicou-se ao sector da construção civil, realizando as primeiras obras em ….. Em 1980 é fundada a empresa "Q…", que conta com um sócio que o acompanha até à actualidade, em quotas iguais em todos os negócios desenvolvidos desde então.
c.10. Em termos familiares contraiu casamento em 1980, relacionamento que considera gratificante, resultando desta relação o nascimento dos seus três filhos.
c.11. O arguido continua a manter como enquadramento familiar o agregado constituído pela mulher e pelos seus 3 filhos, com idades compreendidas entre os 17 e os 25 anos, todos ainda a estudar.
c.12. O relacionamento familiar é apontado como equilibrado, havendo coesão entre os seus elementos bem como com a respectiva família alargada, privilegiando A… o convívio com a mesma nos seus tempos livres.
c.13. O agregado apresenta uma situação económica e habitacional compatível com padrões considerados elevados.
c.14. O arguido mantém a actividade empresarial, sendo sócio de cerca de 20 empresas que cobrem uma parte significativa dos vários sectores de mercado. Assim, possui uma empresa de "Capitais de Risco", outras em regime de parcerias público-privadas, uma outra empresa em parceria com a “R…" vocacionada para a construção, dinamização e exploração de Centros Comerciais, outra em parcerias internacionais na "Associação …", ainda no ramo automóvel a firma "S…" que detém a concessionária da … para o …, a "D…" fundada em 1994 e direccionada para a construção de Parques de Estacionamento e Gestão de Rua (colocação de parquímetros), entre outras empresas.
c.15. A actividade profissional do arguido absorve-lhe praticamente todo o seu tempo, incluindo os sábados em que geralmente está nos escritórios da empresa em ….
c.16. Durante a semana desloca-se frequentemente para fora da sua área de residência, nomeadamente para Lisboa ou outras localidades consoante as necessidades que decorrem das obras em curso por todo o país.
c.17. O arguido A… é conhecido na actividade profissional pelo seu carácter de exigência na competência dos profissionais, bem como no rigor do desempenho e cumprimento dos horários de trabalho dos seus funcionários, sendo-lhe reconhecida pelos seus colaboradores a capacidade de liderança e a simplicidade no relacionamento interpessoal.
c.18. O arguido continua a manter um relacionamento de proximidade com as pessoas do seu meio de origem em … , proporcionando colocação laboral a várias pessoas da localidade, assim como disponibilizando, designadamente em …, apoio económico para obras de cariz religioso e humanitário, apesar de não estar directamente ligado a nenhuma instituição de voluntariado.
c.19. Em 21/10/2008, veio a ser proferido um acórdão pelo tribunal da Relação de Lisboa, transitado em julgado, tal como consta dos autos apensos de recurso, no qual vieram a ser conhecidas das questões suscitadas pelo arguido A… em sede de requerimento de abertura de instrução, entre outras relativas às decisões instrutórias, - da inadmissibilidade da acção encoberta por a acusação não preencher os requisitos do tipo legal de crime de corrupção para acto ilícito ou lícito; e - da ilegalidade da acção encoberta porque derivada de gravação ilegal, porque violadora do segredo profissional de advogado, por utilização de meios enganosos, por inconstitucionalidade do Art.º 2.º, alínea m), da Lei 101/2001, de 25/8, e por ausência de fundamentação do despacho judicial que autorizou as escutas telefónicas e a recolha de imagem e som.
IV. Não se provaram quaisquer outros factos, designadamente que[3]:
a) o mesmo arguido A… pretendesse que o Vereador C… viesse a afirmar a sua mudança de opinião em sede de reuniões dos órgãos do Município de Lisboa;
b) o mesmo arguido fizesse depender o pagamento do montante pecuniário, tal como referido em a.19., do proferimento, por parte do Dr.C…, de declarações públicas na qualidade expressa de vereador da Câmara Municipal de Lisboa;
c) no encontro descrito de a.18. a a.21. o arguido tenha invocado urgência no assunto;
d) o arguido expressou perante o Dr. B… que apenas haveria acordo se o Dr. C… estivesse disposto a fazer a declaração na reunião da Câmara Municipal;
e) o arguido pretendesse com a declaração pública do Dr. C… aludida em a.36. e a.37, comprometer o vereador C… com uma versão de apoio aos interesses do mesmo grupo de empresas, de forma a vinculá-lo em votações futuras de temas e de projectos em que as sociedades por si participadas estivessem envolvidas;
f) o arguido, para além do exposto em a.52., pretendesse uma alteração das tomadas de posição do Dr. C… em sede de artigos de imprensa e enquanto vereador na Câmara Municipal de Lisboa, com o fim de este passar a reconhecer idoneidade e viabilizar projectos e negócios mantidos pelas empresas de que o arguido era accionista, em particular as empresas “D…” e “E… – Investimentos Imobiliários”;
g) o arguido actuou com vista a levar o referido vereador a violar as obrigações que havia assumido com a aceitação do seu mandato;
h) foi o referido advogado Dr. B… quem, no decurso de contactos a partir de Se­tem­bro de 2005, tomou a iniciativa de pedir ao arguido A… um financiamento para pagar as despesas da campa­nha política do irmão para as eleições autárquicas de 2005 e para a liquidação de despesas pesso­ais do candidato e, mais tarde, Vereador;
i) o advogado Dr. B… começou por pedir-lhe uma "contribuição" de 100.000 contos (ou seja, cerca de 500.000 euros), vindo, em contactos subsequentes, a reduzir esse pedido para 250.000 euros e, por último, para 200.000 euros;
j) partiu dele, B…, a iniciativa de propor a desistên­cia da acção popular, a troco da contrapartida monetária que lhe solicitou;
l) foi o advogado Dr. B… quem sugeriu que o seu irmão, o vereador Dr. C…, proferisse uma declaração pública que lhe permitisse, por razões pessoais de natureza política, desistir da acção sem perder a face;
m) o arguido anuiu aos contactos com o Dr. B… porque este era sócio do escritório da sua advogada, Dr.ª F…, nos moldes acima descritos, o que tornava difícil e muito melindroso cortar cerce o pedido que lhe era feito;
n) o mesmo arguido optou por ir entretendo o seu interlocutor até que ele desistisse da sua pretensão, nunca tendo sido sua intenção ou propósito entregar-lhe qualquer quantia;
o) foi ele, arguido, quem pôs termo aos contactos, pela única razão de que, a partir do último encontro entre ambos, que teve lugar no dia 27 de Janeiro de 2006, se convenceu de que era impossível continuar a manter a aparência das negociações;
p) o advogado Dr. B… só decidiu efectuar a gravação ilegal duma conversa que manteve com o arguido e oferecer-se à Polícia Judiciária para agir como suposto agente encoberto após ter-se convencido, num primeiro encontro, no início de 2006, no Hotel Mundial, de que o arguido não lhe iria entregar o contributo que pretendia e que os contactos que estabeleceu com ele, implicando violação do segredo profissional, poderiam vir a chegar ao conhecimento da sua sócia e colega de escritório, a advogada Dr.ª F…; e que
q) o mesmo advogado Dr. B… tenha prestado serviços jurídicos ao arguido ou às empresas por si representadas, através dum seu estagiário.”
(…)
É pacífica a jurisprudência do STJ[4] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Da leitura dessas conclusões, afigura-se-nos que as questões fundamentais suscitadas pelos Recorrentes nos seus recursos são as seguintes:
I) Ilegalidade e nulidade da acção encoberta, das escutas telefónicas e das gravações de conversas entre presentes e de imagem; (recurso do Arg.)
II) Nulidade das provas obtidas com violação do segredo profissional de advogado; (recurso do Arg.)
III) O tribunal recorrido não devia ter dado como provados os factos a.13 a a.20, a.27, a.30, a.36 a a.38, a.41, a.49 a a.51 e a.53, por não ter havido prova suficiente dos mesmos, e devia ter dado como provados os factos referidos nas alíneas h) a p) da matéria não provada, por isso resultar da prova produzida; (recurso do Arg.)
IV) Mesmo que se mantenha inalterada a matéria de facto constante do acórdão recorrido, ela não preenche a factualidade típica da incriminação da corrupção; (recurso do Arg.)
V) O tribunal recorrido devia ter dado como provados os factos referidos nas alíneas a) a g) da matéria não provada, por ser isso o que resulta da prova produzida; (recurso do MP)
VI) O tribunal recorrido devia ter dado como provados os factos referidos nas alíneas a) e g) da matéria não provada, por isso resultar da prova produzida; (recurso do Assistente)
VII) Por isso, o Arg. devia ter sido condenado, pela prática de um crime de corrupção activa para acto ilícito, p. e p. pelos art.º 18º/1 da Lei 34/87, de 16/07, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensos na sua execução; (recursos do MP e do Assistente)
VIII) Mesmo que se mantenha inalterada a matéria de facto constante do acórdão recorrido, ela preenche a factualidade típica da incriminação da corrupção activa para acto ilícito; (recurso do Assistente).
*
Antes do mais, vejamos se a decisão recorrida padece de algum dos vícios de apreciação da prova, previstos no art.º 410º/2 do CPP e de conhecimento oficioso[5].
Para que exista o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, que não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto, é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão sobre o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos legais de crime verificáveis e dos demais requisitos necessários à decisão de direito e seja de concluir que o tribunal a quo podia ter alargado a sua investigação a outro circunstancialismo fáctico suporte bastante dessa decisão[6].
“Está-se na presença da insuficiência da matéria de facto para a decisão de direito quando os factos colhidos, após o julgamento, não consentem, quer na sua objectividade quer na sua subjectividade, o ilícito dado como provado.”[7].
Não ocorre esse vício quando o tribunal investigou tudo o que podia e devia investigar, como neste caso aconteceu. E o princípio da investigação oficiosa no processo penal, conferido ao tribunal pelos art.ºs 323°/a) e 340°/1, ambos do CPP, tem os seus limites na lei e está condicionado pelo princípio da necessidade, dado que só os meios de prova cujo conhecimento se afigure necessário para habilitarem o julgador a uma decisão justa, devem ser produzidos por determinação do tribunal na fase de julgamento, ou a requerimento dos sujeitos processuais.
Não existe, pois, tal insuficiência na decisão recorrida.
“… há contradição insanável da fundamentação quando, fazendo um raciocínio lógico, for de concluir que a fundamentação leva precisamente a uma decisão contrária àquela que foi tomada ou, quando, de harmonia com o mesmo raciocínio, se concluir que a decisão não é esclarecedora, face à colisão entre os fundamentos invocados; há contradição entre os fundamentos e a decisão quando haja oposição entre o que ficou provado e o que é referido como fundamento da decisão tomada; e há contradição entre os factos quando os provados e os não provados se contradigam entre si ou por forma a excluírem-se mutuamente.”[8].
Não vislumbramos na decisão recorrida qualquer destas contradições.
Erro notório na apreciação da prova é a “… falha grosseira e ostensiva da análise da prova, perceptível pelo cidadão comum, denunciadora de que se como provados factos inconciliáveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou ou não provou, seja, que foram provados factos incompatíveis entre si ou as conclusões são ilógicas ou inaceitáveis ou que se retirou de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável.
Ou, dito de outro modo, há um tal erro quando um homem médio, perante o que consta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta de que o tribunal violou as regras da experiência ou se baseou em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios ou se desrespeitaram regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis.”[9].
Tal erro, como os restantes vícios previstos no art. 410º/2 do CPP, tem que resultar do próprio texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum[10].
Ora, analisando a decisão recorrida, logo se vê que não resulta do seu teor a existência desse tipo de erro, uma vez que da fundamentação não se evidencia que a consideração de qualquer facto como provado tenha violado as regras da experiência ou se tenha baseado em juízos ilógicos, arbitrários ou contraditórios.
Pelo contrário. Como veremos, as ilações fácticas tiradas pelo tribunal recorrido são perfeitamente lógicas e razoáveis.
Também não vislumbramos a existência de outros erros.
*
Analisemos agora as restantes questões suscitadas pelos Recorrentes.
I) e II) – Entende o Arg. que são nulas e ilegais todas as provas neste caso obtidas por recurso a uma acção encoberta, através de escutas telefónicas, de gravações de conversas entre presentes e de captação de imagens, bem como as obtidas com violação do segredo profissional de advogado.
Acontece que tais questões foram já objecto de um recurso, no qual o Tribunal da Relação de Lisboa proferiu o acórdão de fls. 267 a 318 do Apenso P, de 21/10/2008, que as julgou improcedentes[11].
Apesar disso, entende o Arg. que tais questões devem ser novamente apreciadas neste acórdão. Em abono da sua tese, cita o acórdão 387/2008 do Tribunal Constitucional[12].
Parecendo que este acórdão dá razão ao Arg., veremos que não.
Na verdade, ele refere-se à irrecorribilidade do despacho de pronúncia, que pronuncia o Arg. pelos factos constantes da acusação do MP, mas não se refere ao caso de ter sido admitido e julgado recurso de despacho de pronúncia, ou outro, que tenha apreciado nulidades, nos termos do disposto no art.º 310º/1 do CPP, na versão anterior à que resultou da reforma operada pela Lei 48/2007, de 29/08 (que entrou em vigor em 15/09/2007). E só tem sentido para afirmar que, quando o despacho de pronúncia não é passível de recurso, as decisões nele tomadas não formam caso julgado, pelo que devem ser novamente apreciadas em sede de sentença final.
Ora, no nosso caso, a decisão que julgou válidas as referidas provas foi proferida em 15/06/2007 e o recurso da mesma foi interposto pelo Arg. em 11/07/2007. Por isso, o regime processual, quanto à admissibilidade do recurso, que lhe é aplicável é o do CPP na versão anterior do à que resultou da reforma operada pela Lei 48/2007, de 29/08[13].
Por essa razão, não tendo o Juiz a quo admitido o recurso interposto pelo Arg., veio a Ex.m.ª Senhora Vice-Presidente do Tribunal da Relação de Lisboa a julgar procedente a reclamação, oportunamente deduzida pelo Arg., e a determinar o recebimento do recurso[14].
Na versão do art.º 310º/1 então em vigor, o STJ havia fixado jurisprudência no sentido da recorribilidade do despacho de pronúncia, na parte respeitante à decisão relativa a nulidades arguidas no decurso do inquérito e da instrução e às demais questões prévias ou incidentais, e de que esse recurso era de subida imediata[15].
Tendo havido recurso sobre determinada questão processual e tendo havido decisão sobre a mesma, nunca podia deixar tal decisão de produzir o efeito de caso julgado formal, porque, das duas uma, ou o recurso e a respectiva decisão eram completamente inúteis e então não podiam ser admissíveis, ou a lei admitia que num mesmo processo e sobre uma mesma questão houvesse mais do que uma decisão, contraditórias entre si.
Ora, é precisamente a este último efeito que pretende obviar o instituto do caso julgado[16].
Como se afirma no Ac. do STJ de 24/05/2006, relatado pelo Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, in CJSTJ[17], II: “…O caso julgado formal constitui noção separada do caso julgado que, como categoria geral (caso julgado material) está construída para a decisão definitiva do direito do caso, nas condições da sua existência, conteúdo e modalidades de exercício; no processo penal respeita à declaração sobre a culpabilidade e determinação da sanção, bem como da não culpabilidade (seja por não pronúncia ou por absolvição).
O caso julgado que fixa, no processo e fora dele, a vinculação de efeitos materiais quanto à definição e concretização judicial da relação controvertida ou objecto material do processo, é o caso julgado material - fixado e estável com fundamento na vinculação às decisões e na realização dos valores da justiça, certeza e segurança, também no âmbito do exercício do direito de punir do Estado em relação ao cidadão arguido da prática de uma infracção penal.
Em processo penal, pode dizer-se que existe caso julgado material quando a decisão se torna firme, impedindo a renovação da instância em qualquer processo que tenha por objecto a apreciação do mesmo ou dos mesmos factos ilícitos.
O caso julgado formal não assume semelhante função, nem contém, no essencial, dimensão substancial.
O caso julgado formal traduz-se em mera irrevogabilidade de acto ou decisão judicial que serve de continente a uma afirmação jurídica ou conteúdo e pensamento, isto é, em inalterabilidade da sentença por acto posterior no mesmo processo (cfr. Castro Mendes, "Limites Objectivos do Caso Julgado em Processo Civil", pág. 16).
No caso julgado formal (art. 672° do Cód. Proc. Civil), a decisão recai unicamente sobre a relação jurídica processual, sendo, por isso, a ideia de inalterabilidade relativa, devendo falar-se antes em estabilidade, coincidindo com o fenómeno de simples preclusão (cfr. Alberto dos Reis, "Código de Processo Civil, Anotado", vol. V, pág. 156).
Há, pois, caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicatï) - cfr. Acs. do Supremo Tribunal de 23 de Janeiro de 2002, Proc. 3924/01, e de 3 de Março de 2004, Proc. 215/04.
O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito.
Em processo penal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade - a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão.
No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui apenas um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.”[18].
A esta concepção do caso julgado formal não se tem oposto o Tribunal Constitucional[19].
Temos, pois, que concluir que, quando uma decisão intercalar possa ser, ou tenha sido, objecto de recurso, com subida imediata, há-de poder formar caso julgado formal.
E isto mesmo para quem considere que a alteração do art.º 310º/1 do CPP operada pela Lei 48/2007, de 29/08, tem carácter interpretativo da versão anterior[20], porque então teria que se dizer que, tendo sido admitido recurso, quando o não devia ter sido, ainda assim, a decisão tomada que conhecesse do objecto desse recurso, precludia a possibilidade de a mesma matéria vir a ser apreciada em sede de decisão final, por efeito do caso julgado.
Harmonizando esta conclusão com a doutrina do acórdão do TC citado pelo Arg., diremos que se o recurso não tivesse sido admitido, a decisão constante do despacho aqui em causa não teria formado caso julgado.
É certo que o acórdão recorrido teve entendimento diferente, ignorando o caso julgado e conhecendo novamente destas questões. Tal conhecimento, no entanto, não tem a virtualidade de pôr em causa o caso julgado formado sobre a questão. Por isso, nos termos já referidos no citado acórdão da RL de 29/05/2002 (relatado pelo Senhor Desembargador Clemente Lima, in www.gde.mj.pt, processo 0210428), recorrendo ao disposto no art.º 675º do CPC (aplicável ex vi art.º 4º do CPP), há que cumprir a decisão que passou em julgado em primeiro lugar, ou seja, o acórdão da RL que nestes autos julgou inexistirem as referidas nulidades e transitou em julgado.
Assim, nos presentes autos existe caso julgado formal, quanto às questões apreciadas no referido acórdão da Relação de Lisboa, pelo que está prejudicado o conhecimento das questões suscitadas enumeradas em I) e II).
*
Todos os Recorrentes entendem que o tribunal recorrido devia ter fixado a matéria de facto de maneira diferente do que fez.
O que invocam, pois, é a existência de erros na avaliação dos depoimentos e declarações dos intervenientes, bem como da restante prova produzida em audiência ou constante dos autos.
A garantia do duplo grau de jurisdição não subverte o princípio da livre apreciação da prova pelo juiz.
Este princípio da livre apreciação da prova está consagrado no art. 127º do CPP nos seguintes termos «... a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente».
E embora este Tribunal da Relação tenha poderes de intromissão em aspectos fácticos, e que são os referidos no art. 410º/2/3 do CPP, não pode sindicar a valoração das provas feitas pelo tribunal em termos de o criticar por ter dado prevalência a uma em detrimento de outra, salvo se houver erros de julgamento e as provas produzidas impuserem outras conclusões de facto[21],[22],[23].
A garantia do duplo grau de jurisdição em sede de matéria de facto nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto[24].
Na formação da convicção do juiz não intervêm apenas factores racionalmente demonstráveis, referindo-se a relevância que têm para a formação da convicção do julgador «elementos intraduzíveis e subtis», tais como «a mímica e todo o aspecto exterior do depoente» e «as próprias reacções, por vezes quase imperceptíveis, do auditório» que vão agitando o espírito de quem julga (no mesmo sentido Castro Mendes, Direito Processual Civil, 1980, vol. III, pág. 211, para acrescentar depois, a págs. 271, que «existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percebidos, apreendidos, interiorizados ou valorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção dos julgadores»).
O que é necessário e imprescindível é que, no seu livre exercício de convicção, o tribunal indique «os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado».
E convém referir que tendo o tribunal recorrido formado a sua convicção com provas não proibidas por lei (tanto quanto resulta do caso julgado sobre essa matéria formado nestes autos e supra referido), prevalece a convicção do tribunal sobre aquelas que formularam os Recorrentes.
III) Posto este enquadramento da reapreciação da matéria de facto em sede de recurso, passemos a analisar as questões de facto suscitadas pelo Arg..
No fundo, do seu ponto de vista, o tribunal recorrido deu como provada, no essencial, a versão dos factos apresentada pela testemunha Dr. B… em detrimento da sua e devia ter feito o contrário.
Baseia-se na consideração de que as declarações do Arg. em audiência, conjugadas com o cartão que lhe foi apreendido e com a mensagem (“SMS”) que o seu filho, por si, enviou ao Dr. B…, e com a falta de credibilidade desta testemunha.
Acontece que, perante o tribunal recorrido, foram expostas duas versões absolutamente incompatíveis entre si, tendo o tribunal optado, no essencial por uma delas.
Como dissemos, só se houver entre as provas produzidas e apreciadas alguma, ou algumas, que imponham uma opção diferente, pode este tribunal de recurso proceder à alteração da matéria de facto.
O tribunal recorrido explicou profusa e cabalmente os raciocínios que fez para chegar àquelas conclusões fácticas.
Sendo aceitável que a prova produzida também permitia que se desse como provada a versão do Arg., a verdade é que não impõe essa versão.
Senão vejamos, o que o tribunal fez foi valorar o depoimento da testemunha Dr. B… em conjugação com as gravações efectuadas e com os depoimentos das outras testemunhas da acusação. Convenhamos que este conjunto de provas dá uma imagem coerente e credível dos factos.
Quanto à credibilidade da testemunha, que decorre dos elementos referidos e, certamente, da forma como depôs, cremos que o seu evidente interesse na incriminação do Arg., por si só, não a põe em causa. Caso contrário, teriam os tribunais que desvalorizar sempre os depoimentos das vítimas, tantas vezes decisivos, nomeadamente nos crimes sexuais, e dos polícias: uns e outros têm, na esmagadora maioria dos casos, uma enorme vontade de ver os Arg. condenados.
Perante aquela imagem coerente e credível dos factos, o tribunal não podia deixar de no confronto com as provas da versão do Arg., fazer um raciocínio lógico sobre o seu significado fáctico. E foi o que fez.
Por isso considerou que os referidos cartão e “SMS” só podiam resultar de uma reacção defensiva do Arg. e convenhamos que este raciocínio é completamente lógico e razoável, sendo que não vemos como possa constituir uma petição de princípio.
Quanto à violação do princípio in dubio pro reo[25], dir-se-á, em síntese que o que resulta do princípio citado é que quando o tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido. Mas para que a dúvida seja relevante para este efeito, há-de ser uma dúvida razoável, uma dúvida fundada em razões adequadas e não qualquer dúvida (Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, p. 205)[26].
Ora, não vislumbramos no acórdão recorrido, quer na matéria de facto dada como provada, quer na sua fundamentação, que, ao fazer esta opção fáctica, o tribunal recorrido tenha tido qualquer hesitação quanto à valoração da prova, tal como não fixou qualquer facto que pudesse colocar em questão a autoria dos factos, ou seja, não teve qualquer dúvida. O tribunal retirou directamente tais conclusões da prova produzida em audiência. Não deveria/poderia, em consequência, fazer uso de tal princípio.
É, pois, improcedente o recurso do Arg. quanto à matéria de facto.
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V) No entendimento do MP, o tribunal recorrido devia ter dado como provados os factos referidos nas alíneas a) a g) da matéria não provada.
Para tanto, considera que o tribunal recorrido devia ter tirado outras conclusões fácticas das transcrições das gravações das conversas, tidas em 24 e 27/01/2006, entre o Arg. e a testemunha Dr. B….
Lidas atentamente as partes das transcrições que o MP considera relevantes para este efeito, somos, de novo, levados a afirmar que, admitindo, embora, tais transcrições as conclusões fácticas pretendidas, elas não as impõem.
Assim, sendo, nos termos já supra expostos, há que concluir que é improcedente, nesta parte o recurso do MP.
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VI) Também o Assistente entende que o tribunal recorrido devia ter dado como provados os factos referidos nas alíneas a) e g) da matéria não provada.
Baseia-se nas transcrições das gravações das conversas entre o Arg. e a testemunha Dr. B…, conjugadas com o depoimento desta em audiência.
De novo, lidas as transcrições do depoimento desta testemunha, feitas pelo Assistente, e conjugando-as com as transcrições das conversas gravadas, somos levados à mesma conclusão do ponto anterior: admitindo, embora, tais transcrições as conclusões fácticas pretendidas, elas não as impõem.
Por isso é também improcedente, nesta parte o recurso do Assistente.
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Chegados à conclusão de que é de manter inalterada a matéria de facto fixada pelo tribunal recorrido, há que decidir as questões de direito.
Por uma razão de precedência lógica, começaremos por decidir a questão suscitada pelo Arg..
IV) Entende este que a matéria de facto dada como provada não preenche a factualidade típica da incriminação da corrupção.
“…De um modo sintético, pode reconduzir-se o fenómeno da corrupção às situações em que um funcionário (na acepção do art. 386°) solicita ou aceita uma vantagem patrimonial ou não patrimonial (ou a sua promessa) como contrapartida de um acto (lícito ou ilícito, passado ou futuro) que traduz o exercício efectivo do cargo em que se encontra investido.

Conforme resulta do n°1 do art. 374°, verifica-se uma corrupção activa quando alguém oferece ou promete (ou satisfaz a solicitação de) uma vantagem patrimonial ou não patrimonial indevida como contrapartida de um acto (lícito ou ilícito, passado ou futuro) de um "funcionário" (art. 386°) no exercício do seu cargo ou dos "poderes de facto" dele decorrentes. …”[27].
A Lei 34/87, de 16/07, o que, nesta matéria, no fundo, veio fazer, foi estender aos titulares de cargos políticos o regime penal da corrupção consagrado no CP.
Atenta esta extensão, não há dúvidas de que este regime penal da corrupção se aplica ao caso dos autos, em que a pessoa que foi objecto da oferta de vantagem patrimonial, o Assistente, é vereador da Câmara Municipal de Lisboa e, portanto, titular de cargo político (art.º 3º/1-i) da Lei 34/87, de 16/07).
Também não há dúvidas de que o Arg. ofereceu uma vantagem patrimonial ao Assistente, para que este praticasse um determinado acto.
O bem jurídico em causa neste tipo de crime é a autonomia intencional do Estado[28],[29],[30].
Por outro lado, não sendo a corrupção activa um crime específico, para se estar perante um tal crime, mostra-se necessário que a conduta do funcionário visada pelo suborno preencha os mesmos requisitos exigidos para a corrupção passiva.
Mas, nem todos os actos praticados pelos funcionários se mostram, susceptíveis de preencher os requisitos da corrupção passiva.
Para que tal aconteça, é necessário que os actos a praticar, ou que se pretende sejam praticados, pelo funcionário estejam dentro da esfera dos poderes do cargo que ocupa.
“… A demarcação precisa das situações relevantes analisa-se, no presente domínio, por duas vertentes: uma que amplia e outra que restringe o âmbito da responsabilidade do funcionário:
a) A primeira não levanta grandes dificuldades, uma vez que, por definição, a corrupção se limita aos casos em que a gratificação representa a contrapartida de um acto realizado no exercício do cargo, i. e., do munus estadual em que o seu titular se encontra investido. Na correspondente fattispecie não cabem, assim, as hipóteses em que a dádiva respeita a uma actividade ou prestação não efectuada no desempenho das suas competências públicas, ainda que a conduta a que, em concreto, se dirige a remuneração se apresente material e tecnicamente idêntica às que o agente executa nessa veste. O que se afirma afigura-se válido mesmo para as situações em que a referida actividade "privada" do funcionário se encontra proibida por motivos relacionados com o próprio cargo. O recebimento de tais gratificações pode integrar um qualquer ilícito, mas não o que subjaz à corrupção passiva. O seu objecto não é constituído por"actos de serviço" e, portanto, não ocorre nenhuma transacção com a autoridade do Estado - circunstância indispensável para a verificação de um delito daquela espécie.
b) Mais complexa se revela a segunda vertente em que se delimitam as condutas que podem integrar o crime de corrupção passiva. Sem dúvida que elas têm de consubstanciar o exercício do cargo. Mas deverão corresponder às específicas competências legais ou, pelo contrário, poderão importar a simples actuação de meros "poderes de facto" decorrentes da posição "funcional" do agente? A pesar da falta de clareza resultante das contradições em que muitas vezes caem os autores, detectam-se, a este nível, duas orientações opostas.
De uma parte, surgem os que exigem, para se falar de corrupção passiva, que a actividade visada pelo suborno se encontre abrangida nas atribuições ou competências do concreto funcionário. Fora do campo da infracção estaria, pois, além do particular que se fizesse passar por empregado público e, assim, beneficiasse de um suborno, o próprio funcionário que se arrogasse a competência para praticar um acto que não cabe nas suas específicas atribuições e, em troca, aceitasse uma gratificação. Qualquer dos casos apresentar-se-ia, porventura, subsumível noutro tipo legal (v.g., usurpação de funções ou burla), mas não no da corrupção passiva. Ao seu conceito estaria subjacente a violação de um dever de "fidelidade ao cargo", pelo que apenas poderia figurar como respectivo autor a pessoa sobre quem recaísse esse mesmo dever - i.e.,o indivíduo formalmente investido para o desempenho das funções. Numa palavra, a perspectiva descrita parece, à primeira vista, afirmar-se como a única conforme à natureza de crime especifico assumida pela corrupção passiva.
Embora concordando na parte em que se retiram do campo da corrupção passiva todos os não-funcionários, contra a posição exposta prescindem outros autores do facto de a conduta prometida ou efectuada pelo empregado público pertencer à esfera das suas específicas atribuições ou competência, bastando-se com a simples circunstância de a actividade em causa se encontrar numa relação funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo. Assim acontecerá sempre que a realização do acto subornado caiba no âmbito "fáctico" das suas possibilidades de intervenção, i.e., dos "poderes de facto"inerentes ao exercício das correspondentes funções. Quer dizer, não de quaisquer possibilidades fácticas - que também um particular pode possuir -, mas apenas das que, apesar de o exorbitarem, são propiciadas pelo cumprimento"normal" das suas atribuições legais.
Posto isto, excluem-se da corrupção passiva as hipóteses em que o agente, não obstante revista a qualidade de funcionário e, em virtude dela, goze da capacidade "fáctica" para efectuar a conduta a que se destina a peita, não pertença ao serviço ou departamento a que está adstrito aquele sector de actividade social, nem com ele mantenha conexões institucionais directas. Na medida em que não participa da aludida "relação funcional imediata", aquele empregado público apresenta-se como "estranho" ao serviço e, portanto, numa posição equiparável à de um particular, não se enquadrando na órbita do ilícito acima referenciado. Ao invés, integra uma situação de corrupção passiva, por exemplo, o pagamento de um suborno ao contínuo de certo departamento administrativo, como contrapartida de ele haver subtraído determinado processo que estava para ser decidido pelo seu director. A circunstância de a análise ou a custódia daquele processo não estarem abrangidas nas suas atribuições não afecta a "relação funcional imediata" do agente com o acto, circunstância que o coloca na órbita do tipo legal da corrupção passiva.
De resto, a favor da tese da "relação funcional imediata" e dos "poderes de facto", assinale-se que, ao menos na corrupção própria, só com base naquele critério se pode punir o funcionário dito "competente" para a prática da actividade pretendida com o suborno. Na verdade, a lei nunca confere competência para a realização de actos injustos ou ilícitos, pelo que, também aí, a sua efectivação se fica a dever, única e exclusivamente, aos "poderes Tácticos" decorrentes da "relação funcional imediata" do agente com o cargo. Esta a doutrina aceita pela jurisprudência no âmbito do CP de 1886 (cf.,a título exemplificativo, os Acs. do STJ de 4 de Março de 1953,BMJ 36°89ss., e de 15 de Julho de 1970,BMJ199° 139ss., e MA1A GONÇALVES 1982 515) e que parece de seguir na esfera do direito vigente. No plano material, a "autonomia intencional do Estado" resulta ofendida com igual intensidade, quer o acto subornado tenha sido realizado pelo próprio funcionário "competente", quer provenha de outro que, possuindo uma relação funcional directa com o serviço, apenas o levou a cabo na actuação de meros "poderes de facto". Na medida em que estes decorrem de uma relação funcional do agente, i.e.,do posto que ocupa, o recebimento da peita pelo (ou para o) seu exercício constitui, ainda, uma transacção com o seu cargo e, por isso, uma situação de corrupção passiva.
O texto do art. 372° ss. favorece, aliás, uma interpretação concordante coma presente perspectiva. Neles, sanciona-se o simples mercadejar com o cargo - com independência de a actividade a que se destina a gratificação assumir carácter lícito (art. 372°) ou ilícito (art. 373°). Dado que, conforme se referiu, a actuação de "poderes fácticos" a troco de suborno integra, ainda, uma verdadeira transacção com as suas funções, nenhuma dúvida suscita a afirmação de que tais casos cabem na esfera de previsão do art. 372°ss.Aliás, em consonância com o acima exposto, só aceitando-se o ponto de vista adoptado se explica a punição de todas as hipóteses de corrupção própria.” [31].
Portanto, na síntese do Prof. Costa Andrade[32], “Só podem colher esta qualificação, …, as acções que o funcionário não poderia levar a cabo se não estivesse investido no seu cargo público. Dito pela positiva, só merecerão a qualificação as acções que o funcionário só pode praticar precisamente porque é funcionário. Para além disso, fica toda a pletora das acções privadas do funcionário, irrelevantes e indiferentes no contexto e para efeito de preenchimento da incriminação de qualquer forma de corrupção.”[33].
Em conclusão, os actos dos funcionários, para serem relevantes para o preenchimento dos tipos da corrupção, hão-de caber dentro das suas específicas competências legais ou dos poderes de facto decorrentes do cargo que desempenham.
A este entendimento não se opõem as alterações dos art.ºs 373º/2 do CP e do art.º 17º/2 da Lei 34/87, de 16/07, operadas pela Lei 108/2001, de 28/11, que vieram consagrar, respectivamente, as seguintes normas: “Na mesma pena incorre o funcionário que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial de pessoa que perante ele tenha tido, tenha ou venha a ter qualquer pretensão dependente do exercício das suas funções públicas.” e “Na mesma pena incorre o titular de cargo político que por si, ou por interposta pessoa, com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial de pessoa que perante ele tenha tido, tenha ou venha a ter qualquer pretensão dependente do exercício das suas funções.”.
Na verdade, estas normas não consagram verdadeiros tipos incriminadores, apresentando-se antes como normas de conteúdo essencialmente clarificador de normas anteriores[34].
Vejamos então se os actos que o Arg. queria que o Assistente praticasse estão dentro da esfera dos poderes do cargo que este ocupava.
Relembrando, de acordo com a matéria de facto fixada, o que apurou foi que o Arg. pretendia que o Assistente desistisse da acção popular que havia interposto e que fizesse uma declaração justificando a alteração da sua posição, sabendo que essa declaração condicionaria publicamente as suas futuras tomadas de posição, quer como cidadão quer como vereador.
Para nos ajudar no raciocino e na exposição, analisemos alguns exemplos:
1º) Um juiz recebe uma quantia em dinheiro para decidir em determinado sentido, num processo que lhe foi distribuído.
2º) Um juiz recebe uma quantia em dinheiro para esconder por 30 dias um processo, que se encontra distribuído a um colega, com quem partilha o mesmo gabinete, uma vez que, se não houvesse decisão no prazo de uma semana, o procedimento criminal respectivo prescreveria.
3º) Um juiz recebe uma quantia em dinheiro para ajudar um advogado a fazer uma motivação de recurso, num processo em que não tem qualquer intervenção, como juiz, e para defender publicamente, na televisão, uma determinada solução jurídica para o caso.
4º) Um juiz recebe uma quantia em dinheiro para ir prestar falso testemunho no julgamento de um processo em que não tem qualquer intervenção como juiz.
Atenta a exposição feita sobre o que deve considerar-se a esfera dos poderes do cargo do funcionário, sem dúvida que, no 1º exemplo estamos perante um caso de corrupção: o acto pretendido insere-se na competência funcional do juiz.
Também no 2º exemplo, não temos dúvidas de que o acto pretendido se insere nos poderes fácticos que o juiz tem, porque partilha o gabinete com o titular do processo e porque partilha esse gabinete, precisamente, por ser juiz.
Já no 3º exemplo, o juiz comete uma série de ilícitos disciplinares e, por exprimir publicamente determinada opinião jurídica, fica condicionado quando no futuro tiver que decidir questão similar, mas não existe corrupção, porque os actos pretendidos não cabem dentro da esfera dos poderes do seu cargo: ele não tem qualquer poder de decisão no referido processo.
Por último, também no 4º exemplo teremos forçosamente que concluir que, cometendo, embora, o juiz, pelo menos, um ilícito disciplinar e um ilícito criminal (o falso testemunho), não existe corrupção, porque os actos pretendidos não cabem dentro da esfera dos poderes do seu cargo: ele não tem qualquer poder de decisão no referido processo.
Não se apurou o concreto conteúdo funcional do cargo de vereador que o Assistente desempenhava, mas, uma vez que o que estava em causa era um negócio que havia sido feito pela Câmara Municipal de Lisboa em momento anterior, podemos concluir que tais concretos negócios não estavam dentro da esfera dos poderes do seu cargo.
A declaração que o Arg. pretendia que o Assistente fizesse, também não estava dentro dessa esfera, pela mesma razão.
Quanto ao condicionamento que provocaria nas futuras tomadas de posição do Assistente, diremos que, como para o 3º exemplo supra referido, que também esse acto não faz parte da esfera dos seus poderes.
Certamente que os actos pretendidos são susceptíveis de forte crítica moral e, provavelmente, de punição disciplinar, e, portanto ilícitos[35], mas isso, por si só, não faz com que os mesmos passem a caber nas específicas competências legais ou poderes fácticos do cargo do funcionário ou titular do cargo político.
Não se pode fazer corresponder a ilicitude do acto pretendido com a sua pertinência a essa esfera: o acto pode ser ilícito e não caber nesses competência ou poderes fácticos. É, justamente, o que se passa no 4º exemplo supra referido.
Temos, pois, que concluir que os actos que o Arg. queria que o Assistente praticasse, para o que lhe fez uma oferta de 200 000,00€, não integravam a esfera das competências legais nem das poderes de facto do cargo do Assistente, pelo que não preenchem a factualidade típica do crime de corrupção activa de titular de cargo político.
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A conclusão a que acabamos de chegar, prejudica o conhecimento das restantes questões suscitadas porque leva, necessariamente à absolvição do Arg..
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Nestes termos e nos mais de direito aplicáveis, julgamos parcialmente procedente o recurso do Arg. e improcedentes os restantes, pelo que absolvemos o Arg. do crime pelo qual vinha condenado.
Vai o Assistente condenado nas custas do recurso respectivo, com taxa de justiça que se fixa no mínimo legal.
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Notifique.
D.N..
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Elaborado em computador e integralmente revisto pelo relator (art.º 94º/2 do CPP).
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Lisboa, 22 de Abril de 2010

Abrunhosa de Carvalho
Maria do Carmo Ferreira
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[1] Arguido/a/s.
[2] Ministério Público.
[3] Tendo a matéria de facto sido impugnada por todos os Recorrentes, para que infra este acórdão seja mais inteligível, passamos a atribuir alíneas aos factos que o acórdão recorrido deu como não provados.
[4] Supremo Tribunal de Justiça.
[5] Cf. Ac. do STJ de 19/10/1995, in DR 1ª Série A, de 12/28/1995, que fixou jurisprudência no sentido de que é oficioso o conhecimento, pelo tribunal de recurso, dos vícios indicados no citado art.º 410.º/2 CPP.
[6] Cf. Ac. do STJ de 20/10/1999, tirado no Proc. n.º 1452/98-3ª Secção, que traduz jurisprudência pacífica.
[7] Cf. Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que se trata de jurisprudência abundante e pacífica.
[8] Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 2008, p. 75.
[9] De novo Simas Santos e Leal-Henriques, in “Recursos em Processo Penal, 7ª edição, 2008, p. 77.
[10] Assim o Ac. do STJ de 19/12/1990, proc. 413271/3.ª Secção: " I - Como resulta expressis verbis do art. 410.° do C.P.Penal, os vícios nele referidos têm que resultar da própria decisão recorrida, na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos que lhe sejam externos, designadamente declarações ou depoimentos exarados no processo durante o inquérito ou a instrução ou até mesmo no julgamento (...). IV É portanto inoperante alegar o que os declarantes afirmaram no inquérito, na instrução ou no julgamento em motivação de recursos interpostos".
[11] Conforme resulta das partes fundamentais do referido acórdão, que passamos a transcrever: “…
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente, da respectiva motivação (Ac. STJ de 19/6/1996, BMJ 458, 98) que, no caso sub judice, se circunscreve às seguintes questões que são propostas para decisão:
I. Nulidade do art. 120, n° 2, alínea d), do Código de Processo Penal por as questões decididas no despacho recorrido não terem sido precedidas de debate instrutório.
II. Inadmissibilidade da acção encoberta por a acusação não preencher os requisitos do tipo legal de crime de corrupção activa para acto ilícito e nem mesmo para acto lícito, e não tem conexão com as funções de vereador da CML do Dr. C….
III. Ilegalidade da acção encoberta
i. Por derivada de gravação ilegal
ii. Por violação do Segredo profissional do advogado doart.87 da Lei n° 15/2005, de 26 de Janeiro de 2005.com referencia ao art. 208 da Constituição da Republica Portuguesa
iii. Por utilização de meios enganosos em violação doart.126, n° 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Penal. Responsabilização do agente encoberto nos termos do art. 6, a contrario, da lei n° 101/2001, de 25de Agosto
iv. Por inconstitucionalidade do art. 2 alínea m da Lei101/2001, de 25 de Agosto por ofensa dos princípios de adequação c proporcionalidade do art. 18, n° 2, da Constituição da Republica Portuguesa, quando em confronto com o art. 1. n° 1 alínea d) da lei 5/2002, de11 de Janeiro
v. Por Falta de fundamentação do despacho judicial autorizando as escutas telefónicas e recolha de imagem e som.

Assim, ainda que, nos termos deste n° 3, se deva apreciar na decisão instrutória em primeiro lugar as nulidades e outras questões prévias ou incidentais, nada invalida a decisão, proferida anteriormente ao debate e a essa decisão instrutória, que se pronunciou sobre tais questões e da qual apenas o arguido A… discordou recorrendo.
Na verdade, sendo o debate instrutório de realização obrigatória (art. 289, n°1.do Código de Processo Penal), não se verifica a alegada nulidade da insuficiência da instrução (art. 120, n° 2, alínea d), só porque esse debate não ocorreu antes, mas depois da prolação da decisão recorrida, pois que, respeitando esta o contraditório, não comprometeu finalidade daquele, qual seja a"discussão perante o juiz, por forma oral e contraditória sobre se no decurso do inquérito e da instrução resultam indícios de facto e elementos de direito suficientes para justificar a submissão do arguido a julgamento" (art. 298 do Código de Processo Penal).
II. Inadmissibilidade da acção encoberta
Como refere, e bem, o despacho recorrido, os vícios formais têm de ser apreciados à luz dos factos que constam da acusação e só desses, independentemente de posterior apreciação sobre a valoração das provas produzidas.
Ora, consta do libelo acusatório do Ministério Publico que (…)
Ora a acusação do Ministério Publico contra o referido arguido A… contem nos §§ 52 a 55 acima transcritos a explicitação dos factos indiciadores do crime de corrupção activa imputado na acusação pp no art. 18/1. por referência aos arts. 16/1 e 3/1 alínea i da Lei 34/87, de 16 de Julho, na redacção da Lei 108/2001, de 28 de Novembro, pois que o comportamento ilícito por atentatório do dever de imparcialidade da actuação de um eleito local (art. 4, n°1 al c) da Lei 19/87), que se descreve no libelo (…)
E, no tocante ao imputado crime de corrupção, é admitido recurso à acção encoberta nas seguintes disposições legais:
Art. 2 da Lei n° 101/2001 (Agente Infiltrado), de 25 de Agosto, (…)
Por seu turno, a Lei n.° 36/94 (Medidas de combate à corrupção e criminalidade económica e financeira), de 29 de Setembro, estabelece o seguinte, com sublinhado nosso a negrito:
(…)
Paralelamente, no Capitulo I da Lei n.º 5/2002 (Medidas de combate à criminalidade organizada e económica financeira), de 11 de Janeiro, sublinhamos a negrito o seguinte (…)
O n° 3 deste artigo entende a aplicação dos capítulos II e III do respectivo diploma ao crime de corrupção, tout court, referido no art. 1 al. m) da Lei 36/94quanto à obtenção de meios de prova.
E no capitulo II da mesma Lei n.° 5/2002, prescreve o art. 6 que (…)
Dai que o recurso à acção encoberta esteja legitimada nos termos das disposições legais acima transcritas.
III. Ilegalidade da acção encoberta.
i) Conforme resulta dos autos a acção encoberta foi suportada na denúncia apresentada perante a PJ e confirmada por B…, em declarações a fls. 8 e 9, segundo a qual aquele tinha sido abordado por A… para saber da disponibilidade do Vereador C…, mediante o pagamento de valores em numerário, em desistir das acções populares que intentou contra a C.M.L. e não em qualquer gravação ilegal em cujo visionamento a acção encoberta se apoiasse, que comprometesse a validade desse meio de obtenção de prova.
ii) Não colhe também a alegada violação do segredo profissional de advogado na conduta do Dr. B…, por o seu conhecimento dos factos da acusação não advir obviamente do exercício da sua actividade profissional nos termos do art. 87 do EOA, pois, como bem salienta o despacho recorrido atendendo aos factos vertidos no despacho acusatório, o Dr. B… não foi procurado pelo arguido A… cm virtude de ser o mandatário do Autor da mencionada acção popular, antes sim por ser irmão do Vereador C…, também Autor dessa acção, e em face dessa proximidade familiar poder ser um intermediário privilegiado na proposta de entrega da quantia de 200.000,00€ao mencionado Vereador, em troca da desistência na mencionada acção popular, bem como na prolação de declarações públicas, enquanto Vereador, no sentido de ter supostamente concluído, após estudo dos dossiers, que o negócio de permuta dos terrenos do X… estava conforme à legalidade.
A este propósito, refere acertadamente o despacho recorrido que
(…)
Na verdade, consta no Novo Regime Jurídico do Agente Infiltrado de Fernando Gonçalves, Manuel João Alves e Manuel Monteiro Guedes Valente, 2001,Almedina, a pág. 37, que:
"Agente infiltrado é pois o funcionário criminal ou terceiro, por exemplo, o cidadão particular, que actue sob o controlo da PJ que, com ocultação da sua qualidade e identidade, e com o fim de obter provas para a incriminação do suspeito, ou suspeitos, ganha a sua confiança pessoal, para melhor o observar, em ordem a obter informações relativas às actividades criminosas de que é suspeito e provas contra ele(s), com as finalidades exclusivas de prevenção ou repressão criminal, sem contudo, os determinar à pratica de novos crimes.
A figura do agente infiltrado é, pois, substancialmente diferente do agente provocador. O agente provocador cria o próprio crime e o próprio criminoso, porque induz o suspeito à prática de actos ilícitos, instigando-o e alimentando o crime, agindo, nomeadamente, como comprador ou fornecedor de bens ou serviços ilícitos. O agente infiltrado, por sua vez, através da sua actuação limita-se, apenas, a obter a confiança do suspeito (s), tornando-se aparentemente num deles para, como refere Manuel Augusto Alves Meireis, "desta forma, ter acesso a informações, planos, processos, confidencias....que, de acordo com o seu plano constituirão as provas necessárias à condenação»"
Termos em que não se verifica na acção encoberta a violação do segredo profissional de advogado nem a provocação para a pratica de crime.
iii. Não colhe pelo acima exposto a alegada violação do art. 126, n°s 1 e 2 al a)do Código de Processo Penal por não se descortinar qualquer utilização de meios enganosos como método de obtenção de prova proibido, ou de responsabilização do agente encoberto nos termos do art. 6 da Lei 101/2001 de 25 de Agosto, a contrario, onde se dispõe que
Não é punível a conduta do agente encoberto que, no âmbito de uma acção encoberta, consubstancie a pratica de actos preparatórios ou de execução de uma infracção em qualquer forma de comparticipação diversa da instigação ou autoria mediata, sempre que guarde a devida proporcionalidade com a finalidade da mesma. Na verdade, atenta a natureza do crime de corrupção em causa em que são postas todas as cautelas para a sua não descoberta, o recurso àquele meio de obtenção de prova mostra-se proporcional a finalidade que se pretende conseguir qual seja a transparência e legalidade da actuação das entidades publicas e o prestigio do Estado.
iv. Também, para alem do que acima se expôs, não colhe a alegada inconstitucionalidade do art. 2, alínea m), da Lei 101/2001, de 25 de Agosto, por alegada ofensa dos princípios de adequação e proporcionalidade do art. 18, n° 2, da Constituição da Republica Portuguesa
Dispõe o art. 18, n°2 da Constituição da Republica Portuguesa que
(…)
Consequentemente, são no caso as disposições dos arts. 187 e segs do Código de Processo Penal que decidirão da abusiva ou não intromissão na vida privada, no domicilio, na correspondência ou nas telecomunicações e o art. 6 da citada Lei n.°5/2002 quanto ao registo de voz e de imagem por qualquer meio.
O art. 187 do Código de Processo Penal na redacção da Lei n° 59/98 de 25 de Agosto, vigente a quando da prática dos factos dispunha, como ainda dispõe, que
(…)
Aquela data, o artigo 188 do mesmo diploma, na redacção do DL n° 320C/2000, de 15 de Dezembro, dispunha que
(…)
E o artigo 189 seguinte que
(…)
E ainda o artigo 190 que
(…)
Consequentemente não se antolha qualquer violação dos art.s 87 da Lei n°15/2005, de 26 de Janeiro de 2005, com referencia ao art. 208 da Constituição da Republica Portuguesa (Segredo profissional do advogado), 126, n° 1 e 2, alínea a), do Código de Processo Penal, art. 2, alínea m), da Lei 101/2001, de 25 de Agosto por violação dos princípios de adequação e proporcionalidade consagrados no art. 18, n°2, da Constituição da Republica Portuguesa,
Sufragamos, assim, por inteiro, a posição assumida no despacho recorrido e sustentada pelo Ministério Publico que acima se deixou transcrita.
No entanto, alega ainda o recorrente A… que o despacho judicial autorizador das escutas telefónicas e da recolha de imagens e som não se encontra fundamentado, o que não corresponde à verdade pois que como refere o despacho recorrido à parte as disposições legais adrede invocadas
Relativamente à fundamentação de facto, constata-se que o mesmo fundamenta-se naquilo que lhe é legítimo fundamentar-se, visto que a ponderação para a prolação desse despacho resultou do conhecimento do que constava numa acção encoberta, a qual, por natureza, é sigilosa.
De qualquer modo, para além de ter sido feita expressa referência à existência dessa acção encoberta, nesse despacho judicial refere-se que as intercepções e gravações são um meio indispensável para a investigação; assim como se concretiza sobre quem se autoriza a intercepção e gravação das conversas entre presentes, bem como a captação de som e de imagem, o que pressupõe conhecimento cabal dos factos em investigação e ponderação sobre os mesmos.
Afigura-se-nos, assim, que o despacho judicial de fls. 15 se mostra profusamente fundamentado quanto ao direito e suficientemente fundamentado quanto às razões de facto, tendo em conta que, aquando da prolação de tal despacho, estava em curso uma acção encoberta, relativamente à qual, se impunham cautelas redobradas, designadamente para protecção do agente infiltrado (Lein.101/2001, de 25/08).
Em conclusão, o despacho impugnado, douta e profusamente elaborado, não nos merece qualquer censura pelo que inteiramente o subscrevemos.
Termos em que se nega provimento ao recurso se condena o recorrente A… em 6 UC de taxa de justiça. …”.
[12] Na parte que nos interessa, é o seguinte o teor deste acórdão n.º 387/2008, de 22/07/2008, relatado pelo Senhor Conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira: “…Na verdade, há que reiterar que a intervenção do Tribunal Constitucional, quanto ao recurso previsto na aludida alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da LTC, é reservada àqueles casos em que a decisão neles proferida é a decisão final. Fica, por isso, excluído esse recurso nos casos em que a norma é aplicada a título precário ou provisório, sujeito a confirmação posterior, como acontece no caso em presença. Com efeito, afigura-se manifesto que pela forma como o legislador disciplinou as regras do processo penal, a "decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público", não produz, ipso facto, alteração na esfera jurídica do acusado, pois tem uma dupla função de natureza marcadamente garantística: a de comprovar a acusação do Ministério Público e a de limitar o campo de conhecimento do tribunal de julgamento. Os juízos operados quanto à selecção dos factos adquiridos e sua qualificação jurídica, quanto à escolha do direito aplicável e quanto à regularidade das provas – e é basicamente nisto que consiste a pronúncia do arguido – só são verdadeiramente efectivos quando são adoptados pelo tribunal do julgamento, na sua sentença, o que, aliás, permite explicar a opção do legislador quanto à proibição de recurso ordinário da referida decisão.
O sistema adoptado no nosso Código de Processo Penal radica exactamente em tese oposta à que é defendida pelo recorrente: a lei "desvaloriza" a força jurídica do despacho de pronúncia formulado nas referidas condições, ao impor a sua irrecorribilidade, e transfere para uma fase posterior – a fase de julgamento – a obrigação de o tribunal proceder à apreciação, com força de determinação jurídica, de toda a matéria de que a pronuncia conhece. Tal tarefa abrange a selecção dos factos incriminadores e da norma penal aplicável, e obriga a conhecer das nulidades opostas à prova produzida, conforme resulta, sem margem para dúvida, do n.ºs 2 e 3 do artigo 310º do Código de Processo Penal e do disposto nos preceitos que regulam os requisitos da sentença (artigos 374º e seguintes). Esta solução respeita a imposição constitucional quanto ao estabelecimento de um sistema de garantias que protejam o arguido contra acusações infundadas e ilegais; e deve reconhecer-se que a Constituição – tal como o Tribunal por diversas vezes tem afirmado – não pretende garantir o direito a não ser submetido a julgamento. …”.
[13] Nesse sentido, e por todos, cf. Simas Santos e Leal-Henriques, in Recursos em Processo Penal, Ed. Rei dos Livros, 7ª edição, 2008, p. 636 e ss., onde se conclui que aos recursos se aplicam as normas processuais que se encontravam em vigor à data da decisão recorrida ou, ao menos, à data da interposição do recurso.
[14] Nos seguintes termos: “… Nos termos do art° 310° CPP é irrecorrível a decisão que pronunciar os arguidos pelos factos constantes da acusação.
Porém, no Acórdão de 7 de Abril de 1994 [Colectânea de Jurisprudência -Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, Ano II, Tomo II,187],o Supremo Tribunal de Justiça concluiu que o regime de irrecorribilidade da decisão instrutória aludida no artigo 310.°, n.° 1, não se estende às questões prévias ou incidentais a que se refere o artigo 308.°, n.° 3, do Código de Processo Penal. São estas as nulidades e as questões prévias ou incidentais de que o juiz possa conhecer no início do despacho de pronúncia ou de não pronúncia.
Esta orientação veio a ser acolhida no Acórdão do mesmo Supremo Tribunal de 19 de Janeiro de 2000 [Publicado sob a designação de"Assento n.° 6/2000", no Diário da República. 1 Série-A, n. " 56, de 7 de Março de 2000], que fixou jurisprudência nos seguintes termos:
"A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é recorrível na parte respeitante à matéria relativa às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais."
Posteriormente, foi, pelo Supremo Tribunal de Justiça [Acórdão n.° 7/2004, de 21 de Outubro de 2004, Diário da República, I Série-A, n. ° 282, de 2 de Dezembro de2004],fixada a seguinte jurisprudência:
"Sobe imediatamente o recurso da parte da decisão instrutória respeitante às nulidades arguidas no decurso do inquérito ou da instrução e às demais questões prévias ou incidentais, mesmo que o arguido seja pronunciado pelos factos constantes da acusação do Ministério Público."
No caso, no seguimento do requerimento de abertura de instrução foram apreciadas as questões prévias e nulidades arguidas no mesmo, em dois momentos decisórios distintos, o despacho de fls. 1306 e ss., em 15.6.2007, (questões B, C, D, E e F) e o despacho proferido em sede de decisão instrutória, em 11.07.2207 (questão A) .
No primeiro conheceu-se das alegações de não preenchimento do ilícito típico, da nulidade da acção encoberta, da nulidade dos actos praticados pelo agente encoberto, da nulidade das escutas telefónicas e de registo de voz e imagem e da nulidade das declarações do agente encoberto e a nulidade da acusação particular.
No segundo conheceu-se da questão relativa à alegada inexistência de indícios da prática do crime por que estava acusado, previamente à decisão de pronúncia.
Na decisão instrutória foi ainda apreciada a nulidade do despacho de fls. 1306 arguida em sede do debate instrutório, nos termos do art.° 120°, n.°s 1, 2d) e 3 c) CPP.
O facto de se haver cindido a decisão relativa a nulidades arguidas no requerimento de instrução em dois momentos decisórios terá resultado da ponderação da vantagem de averiguação prévia do efeito de eventual procedência de tais questões, de conhecimento prévio e preclusivo relativamente à realização da própria instrução.
Porém, as razões que estiveram na posição assumida pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência n.°7/2004 atrás mencionado, valem para ambos os momentos da decisão por ela se reportar a nulidades suscitadas no decurso do inquérito ou na instrução.
Assim, não se vê razão nem vantagem na apreciação separada dos dois recursos cuja interposição decorre do facto de a decisão ter apreciado as questões em dois momentos distintos em lugar de o ter feito numa só decisão, sem que essa opção afecte o regime de subida de recurso interposto.
Pelo exposto, procede a reclamação. …”.
[15] Acórdão n.º 6/2000, do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/01/2000, (publicado em 07/03/2000, no n.º 56 do Diário da República, I SÉRIE-A), que fixou jurisprudência no sentido da respectiva recorribilidade, e que veio a ser complementado pelo Acórdão n.º 7/2004, do Pleno das Secções Criminais do mesmo STJ, de 21/10/2004, (publicado em 02/12/2004, no n.º 282 do Diário da República, I SÉRIE-A), que fixou jurisprudência no sentido da subida imediata do concernente recurso.
[16] “O efeito negativo do caso julgado consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão.” – Ac. do STJ de 02/03/2006, relatado pelo Senhor Conselheiro Costa Mortágua, in CJSTJ, I.
[17] Colectânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça.
[18] Como se afirma no Ac. da RP de 29/05/2002, relatado pelo Senhor Desembargador Clemente Lima, in www.gde.mj.pt, processo 0210428: “…Importa (…) relembrar as linhas gerais do instituto do caso julgado em processo penal [No que se avoca a impressiva síntese do acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 18-12-1997, na Colectânea de Jurisprudência do STJ, ano V, tomo III, pp. 259 e segs. (261) e se remete para os ensinamentos de Cavaleiro de Ferreira, no «Curso de Processo Penal», UC, III, 57 e em O Direito, anos 65.º, pp. 194 e segs. e 67.º, pp. 200 e segs.; Castanheira Neves, nos »Sumários de Processo Penal», pp. 113 e segs.; Luís Osório, no «Comentário ao Código de Processo Penal Português», II, pp. 482 e segs.; Figueiredo Dias, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 107.º, pp. 126 e segs.; Beleza dos Santos, na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 63.º, pp. 9 e segs.; Eduardo Correia, na Revista de Direito e Estudos Sociais, XIV, ½, em «Caso julgado em processo penal», na Revista dos Tribunais, ano 58.º, pp. 178 e segs. e no «Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz»; Germano Marques da Silva, no «Curso de Processo Penal», III, 2000, pp. 36 e segs.].
O fundamento central desta figura, escrevia Beling, radica numa concessão prática às necessidades de garantir a certeza e a segurança do Direito.
Ainda mesmo com possível sacrifício da justiça material, quer-se assegurar através deste instituto aos cidadãos a sua paz jurídica, quer-se afastar definitivamente o perigo de decisões contraditórias.
Uma adesão à segurança com um eventual detrimento da verdade, eis assim o que está na base do instituto [Eduardo Correia, «A Teoria do Concurso em Direito Criminal», Coimbra, 1983, 302].
Isto vale quer para o caso julgado material, como para o caso julgado formal, sendo certo que aqui nos interessa considerar apenas este último, dado que a nossa análise apenas incidirá sobre o efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, ao passo que o caso julgado material consubstancia a eficácia da decisão proferida relativamente a qualquer processo ulterior com o mesmo objecto [Cfr. Cavaleiro de Ferreira, «Curso de Processo Penal», vol. 3.º, Lisboa, 1958, pág. 35].
O CPP/29, no capítulo das excepções, aludia expressamente ao caso julgado (art. 138.º, 3.º) e, a partir do art. 148.º e segs., regulamentava com algum pormenor a referida excepção, com especial relevo para o caso julgado material e efeitos do caso julgado cível no processo penal.
No actual CPP, não acontece o mesmo e tal ausência de regulamentação constante e sistemática de matéria tão importante só pode significar, a nosso ver, ou que o legislador entendeu como suficiente para resolver o problema, a aplicação genérica e indiferenciada ao processo penal dos vários normativos que no processo civil tratam a questão, ao abrigo do regime estabelecido no art. 4.º do CPP, ou então que não quis, pura e simplesmente, firmar regras rígidas no processo penal em matéria de caso julgado, dada a natureza deste ramo do Direito.
Inclinamo-nos decisivamente para esta última posição que se encontra verdadeiramente em harmonia com a especial natureza do processo penal.
Cremos que é por isso mesmo que não temos assistido, ao contrário do que se passava na vigência do Código anterior, à elaboração dogmática de uma teoria sobre o caso julgado em processo penal, preferindo os autores resolver casuisticamente os problemas relacionados com este instituto.
Na verdade, a pura e simples aplicação dos princípios e normas que regem o caso julgado no processo civil ao processo penal não se nos afigura legítima, designadamente porque se iria, no fundo, coarctar, limitar e condicionar o princípio da verdade material que constitui o escopo fundamental a atingir no processo penal. Refira-se, em abono disto, o ensinamento de Cavaleiro de Ferreira: «Porque o caso julgado, cortando cerce a possibilidade de busca da verdade material, restringe o ideal de justiça em função da necessidade de segurança, faz-se sentir a sua imodificabilidade com mais rigor no processo civil do que em processo penal, por sua natureza vertido para a justiça real e dificilmente acomodatício às ficções de segurança, obtidas à custa do sacrifício de valores essenciais» [«Curso de Processo Penal», III, 1958, 88].
No entanto, não pode, de uma forma absoluta, coarctar-se o recurso ao processo civil nesta matéria, mas o que será indispensável é encontrar um critério que, entrando em linha de conta com as especialidades do processo penal, imponha alguns limites à aplicação em processo penal das normas do processo civil neste domínio e tal critério só poderá encontrar-se no art. 4.º do CPP, o qual aponta, fundamentalmente, para dois pressupostos de tal aplicação, a saber: - a existência de lacunas que não podem ser integradas por aplicação analógica de outras normas do processo penal; e – a harmonização das normas do processo civil a aplicar, com o processo penal.”.
[19] A orientação do TC quanto à matéria do caso julgado penal vem exposta no acórdão 86/2004, de 04/02/2004, relatado pela Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza, nos seguintes termos: “…Também o Tribunal Constitucional se pronunciou já sobre o alcance da protecção constitucional do caso julgado, mantendo a orientação desenhada pelo acórdão n.º 87 da Comissão Constitucional.
Assim, e em primeiro lugar, o Tribunal observou por diversas vezes que decorre da Constituição a exigência de que as decisões judiciais sejam, em princípio, aptas a constituir caso julgado.
Com efeito, no Acórdão n.º 352/86 (Diário da República, II série, de 4 de Julho de 1987), considerou “inerente às decisões judiciais insusceptíveis de recurso ordinário” a força de caso julgado, força essa que “se dev[e] arvorar em princípio constitucional implícito, como decorre, ainda, do art. 282º, n.º 3, da CRP". No mesmo sentido, disse-se no Acórdão n.º 250/96 (in Diário da República, II Série, de 8 de Maio de 1996), que, “para que um Tribunal, qualquer que seja, possa dirimir os conflitos de interesses públicos e privados que lhe são submetidos no exercício da função jurisdicional, é indispensável que as suas decisões, reunidos que estejam certos requisitos, sejam dotadas da estabilidade e da força características do caso julgado”; (cfr., ainda, o Acórdão n.º 506/96, publicado no Diário da República, II Série, de 5 de Julho de 1996).
Em segundo lugar, o Tribunal Constitucional continuou a afirmar que o caso julgado é um valor constitucionalmente tutelado, nomeadamente no seu Acórdão n.º 677/98 (Diário da República, II série, de 4 de Março de 1999): “É sabido que o caso julgado serve, fundamentalmente, o valor da segurança jurídica (cf. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, t. II, 3º ed., reimp., Coimbra, 1996, p.494); e que, fundando-se a protecção da segurança jurídica relativamente a actos jurisdicionais, em último caso, no princípio do Estado de Direito (Gomes Canotilho, “Direito Constitucional e Garantia da Constituição, Coimbra, 1998, p. 257), se trata, sem dúvida, de um valor constitucionalmente protegido”.
Em terceiro lugar, reafirmou a ausência da consagração na Constituição de um princípio de intangibilidade absoluta do caso julgado:
«2.1.2. Entende este Tribunal que o caso julgado deve ser perspectivado como algo que tem consagração implícita na Constituição, constituindo, desta sorte, um valor protegido pela mesma, esteado nos valores de certeza e segurança dos cidadãos postulados pelo Estado de direito democrático - consagrado, quer no preâmbulo do Diploma Básico, quer no seu artigo 2º - e, também, num princípio de separação de poderes - consagrado igualmente naquele artigo e no nº 1 do artigo 111º - e no nº 2 do artigo 205º (a que aquelas outras normas não são alheias), um e outro do actual texto constitucional.
E entende, identicamente, que o aludido valor, constitucionalmente consagrado, do caso julgado, não se posta como um valor que a Lei Fundamental considere inultrapassável.
Prova disso, na óptica deste Tribunal, constitui a estatuição constante do nº 3 do artigo 282º da Constituição.
Na verdade, o legislador constituinte derivado, na revisão operada pela Lei Constitucional nº 1/82, de 8 de Julho, veio a prescrever que da declaração de inconstitucionalidade ou ilegalidade com força obrigatória geral ficavam "ressalvados os casos julgados, salvo decisão em contrário do Tribunal Constitucional quando a norma respeitar a matéria penal, disciplinar ou ilícito de mera ordenação social e for de conteúdo mais favorável ao arguido".
Dessa prescrição extrai o Tribunal, conjugando-a com os artigos 2º, 111º, nº 1, e 205º, nº 2, que, efectivamente, a Constituição aceita como um valor próprio o respeito pelo caso julgado. Porém, é ela própria, naquele nº 3 do artigo 282º, que vem estabelecer situações de excepcionalidade ao respeito pelo caso julgado; e daí o dever-se concluir que um tal valor se não perfila como algo de imutável ou inultrapassável» (Acórdão n.º 644/98, Diário da República, II Série, de 21 de Julho de 1999).
Por último, e em quarto lugar, o Tribunal Constitucional tem reconhecido que, apesar de não ter valor absoluto a tutela constitucional do caso julgado, uma lei retroactiva não pode “atingir o caso julgado nos casos em que, segundo a Constituição, é proibida qualquer retroactividade, por intermédio de uma lei individual” (Luís Nunes de Almeida, Portugal, in Constitution et Sécurité Juridique, Annuaire International de Justice Constitutionnelle, XV, 1999, p. 249 e segs.). É o que sucede, como se sabe, com as leis restritivas de direitos, liberdades e garantias (n.º3 do artigo 18º da Constituição), as leis penais incriminadoras (artigo 29º, n.º 1) ou (após a revisão constitucional de 1997) as leis que criam impostos (cfr., por exemplo, o Acórdão n.º 304/01, Diário da República, II série, de 9 de Novembro de 2009).”.
[20] Nesse sentido, ver o voto de vencido do Senhor Desembargador Abílio Fialho Ramalho ao Ac. da RP de 16/01/2008, in www.gde.mj.pt, processo 0743305: “Não obstante vote a decisão, afigura-se-me que não seria de conhecer do objecto do recurso, em razão da respectiva inadmissibilidade legal.
Assim:
Consabidamente, o âmbito da irrecorribilidade do despacho de pronúncia de arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público, determinada pelo art.º 2.º, n.º 2, al. 53, da Lei n.º 43/86, de 26 de Setembro (Lei de Autorização Legislativa), e consagrada no art.º 310.º, n.º 1[1], do Código de Processo Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 78/87, de 17 de Fevereiro, sempre gerou viva controvérsia – doutrinal e jurisprudencial –, mormente quanto à abrangência do segmento decisório atinente à arguição de nulidades processuais, cuja recorribilidade motivou, maxime, múltiplos e divergentes arestos dos tribunais superiores – quer no sentido negativo, quer no positivo –, diversão jurisprudencial que acabou por ser harmonizada pelo Acórdão n.º 6/2000, do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, de 19/01/2000, (publicado em 07/03/2000, no n.º 56 do Diário da República, I SÉRIE-A) – ainda assim sem unanimidade –, que fixou jurisprudência (embora não obrigatória, conforme então já se estabelecia no n.º 3 do art.º 445.º do CPP - segmento normativo introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25/08) no sentido da respectiva recorribilidade, e que veio a ser complementado pelo Acórdão n.º 7/2004, do Pleno das Secções Criminais do mesmo STJ, de 21/10/2004, (publicado em 02/12/2004, no n.º 282 do Diário da República, I SÉRIE-A) – também tomado por maioria –, que fixou jurisprudência no sentido da subida imediata do concernente recurso.
O entendimento que acabou por vingar quanto à referida recorribilidade nunca se eximiu, porém, de ponderosas e esclarecidas críticas, mesmo no seio do próprio Supremo Tribunal de Justiça, em essencial razão da unicidade do acto processual de pronúncia e da respectiva incindibilidade, bem como do propósito legislativo de incutimento de celeridade processual à fase instrutória – juízo que sempre se nos apresentou inultrapassável –, de que se deu nota nas várias declarações de voto de vencido dos dois enunciados acórdãos uniformizadores, particularmente no último, pela voz dos Ex.mos Conselheiros José Vaz dos Santos Carvalho, António Luís Gil Antunes Grancho, Políbio Rosa da Silva Flor, António Pereira Madeira, Armindo dos Santos Monteiro e João Manuel de Sousa Fonte.
Ciente de tal discussão jurídica, o legislador, renovando e vincando o intento de promoção da simplificação e celeridade processual, já expressamente estabelecido no art.º 2.º, n.º 2, als. 1, 2 e 53, da Lei de Autorização Legislativa n.º 43/86, de 26 de Setembro, (vide, maxime, pag. 11 da Exposição de Motivos da proposta de lei n.º 109/X), veio-lhe a pôr definitivo cobro no acto de revisão do Código de Processo Penal, operada pela Lei n.º 48/9007, de 29 de Agosto – vigente desde 15/09/2007, (vide respectivo art.º 7.º) –, pelo esclarecimento inserido no n.º 1 do citado art.º 310.º, de que a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível, mesmo na parte em que apreciar nulidades e outras questões prévias e incidentais, e determina a imediata remessa dos autos ao tribunal competente para o julgamento.
Tal esclarecimento configura manifestamente uma interpretação legal e autêntica do enunciado postulado normativo, havendo-se, pois, claramente como lei interpretativa.
Destarte, dado que, em conformidade com o disposto no art.º 13.º, n.º 1, do Código Civil, a lei interpretativa se integra na lei interpretada, impor-se-á o entendimento desta – art.º 310.º, n.º 1, do CPP –, desde o início da respectiva vigência, e, portanto, retroactivamente, com o significado ora esclarecido pelo órgão legiferante [2], nenhuma razão subsistindo, consequentemente, à observância da orientação jurisprudencial enunciada no Acórdão n.º 6/2000, do Plenário das Secções Criminais do Supremo Tribunal de Justiça, cuja disciplina se encontra ultrapassada.
Por conseguinte, sendo agora indiscutível a total irrecorribilidade da decisão instrutória que determinar a sujeição do arguido a julgamento pelos actos comportamentais imputados na acusação do M.º P.º, demandar-se-ia a rejeição do recurso em questão, por inadmissibilidade legal, [cfr. art.º 420.º, n.º 1, por referência ao 414.º, n.º 2, do C. P. Penal, versão introduzida pela Lei n.º 59/98, de 15/08, e 420.º, n.º 1, al. b), do mesmo compêndio legal, na versão decorrente da Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto].”.
[21] Importa considerar que, como se afirma no Ac. do STJ de 17/02/2005, relatado pelo Sr. Conselheiro Simas Santos, in www.dgsi.pt, processo 04P4324, “1 - O recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1.ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada. 2 - Se o recorrente aceita que o teor expresso dos depoimentos prestados permite que a 1.ª Instância tenha estabelecido a factualidade apurada da forma como o fez e questiona tão só a credibilidade que, no seu entender, (não) deveria ter-lhes sido concedida, sem indicar elementos objectivos que imponham a sua posição, a sua pretensão fracassa pois a credibilidade dos depoimentos, quando estribadas elementos subjectivos e não objectivos é um sector especialmente dependente da imediação do Tribunal, dado que só o contacto directo com os depoentes situados na audiência de julgamento, perante os outros intervenientes é que permite formar uma convicção que não pode ser reproduzidas na documentação da prova e logo reexaminada em recurso. 3 - Se apesar de se esforçar, a 1.ª Instância não consegue estabelecer o motivo que levou o arguido a agir, mas estão presentes todos os elementos do respectivo tipo legal de crime, nenhuma dúvida se pode levantar sobre a culpabilidade do agente. …”.
E no Ac. do STJ de 12/06/2008, relatado pelo Sr. Conselheiro Raul Borges, in www.dgsi.pt, processo 07P4375, de cujo sumário citamos: “I - A partir da reforma de 1998 passou a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do art. 410.º, n.º 2, do CPP, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente – porque não confinada ao texto da decisão –, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades. II - No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas als. a), b) e c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo. Nesta forma de impugnação os vícios da decisão têm de emergir, resultar do próprio texto, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão como peça autónoma. III - No segundo caso, a apreciação já não se restringe ao texto da decisão, mas à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.ºs 3 e 4 do art. 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do art. 431.º, al. b), do mesmo diploma. IV - A alteração do art. 412.º do CPP operada em 1998 visou tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo colectivo, dando seguimento à consagração do direito ao recurso resultante do aditamento da parte final do art. 32.º, n.º 1, da CRP na revisão da Lei Constitucional n.º 1/97, vindo a ser “confirmada” pelo acórdão de uniformização de jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005 (in DR, I Série-A, de 07-12-2005), que estabeleceu: «Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo». V - Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios – que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação –, por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações: - desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância, por parte do recorrente, de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação das provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso; - já ao nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações e/ou, ainda, das transcrições; - por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento, pois o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em 2.ª instância; a actividade da Relação cingir-se-á a uma intervenção cirúrgica, no sentido de restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação; - a jusante impor-se-á um último limite, que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto se se concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão. …”.
[22] Neste sentido, cf. ainda o Ac. do STJ de 25/03/1998, in BMJ 475/502, com anotação de que neste sentido se vinham orientando a doutrina e a jurisprudência.
[23] Neste sentido, ver também o Ac. RL, de 10/10/2007, relatado pelo Sr. Desembargador Carlos Almeida, in www.dgsi.pt, processo 8428/2007-3, de cujo sumário citamos: “…XVII – No caso, embora a prova produzida e examinada na audiência permitisse, eventualmente, uma decisão em sentido diferente, ela não impunha decisão diversa da proferida, razão pela qual o recurso não pode ter provimento.”.
[24] No mesmo sentido, cf. o Ac. do STJ de 20/11/2008, relatado pelo Sr. Conselheiro Santos Carvalho, in www.dgsi.pt, processo 08P3269, de cujo sumário citamos: “I - O STJ tem reafirmado que o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento ali realizado não existisse; antes é um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros. II - Conhecendo-se pela fundamentação da sentença o caminho lógico que, segundo a 1ª instância, levou à condenação do recorrente, deveria este ter-se limitado a sindicar os pontos de facto que nesse percurso foram erradamente avaliados, com a indicação das provas que impunham uma decisão diversa e com referência aos respectivos suportes técnicos. …”.
[25] “A presunção de inocência é identificada por muitos autores como princípio in dubio pro reo, no sentido de que um non liquet na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido. A dúvida sobre a responsabilidade é a razão de ser do processo. O processo nasce porque uma dúvida está na sua base e uma certeza deveria ser o seu fim. Dados, porém, os limites do conhecimento humano, sucede frequentemente que a dúvida inicial permanece dúvida a final, malgrado todo o esforço para a superar. Em tal situação, o princípio político-jurídico da presunção de inocência imporá a absolvição do acusado já que a condenação significaria a consagração de um ónus de prova a seu cargo, baseado na prévia admissão da sua responsabilidade, ou seja, o princípio contrário ao da presunção de inocência.” (Prof. Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, I, 5ª ed., 2008, p. 83 e 84).
[26] Sobre as possibilidades de aplicação do princípio in dubio pro reo, ver o importante Ac. do STJ de 27/05/2009, relatado pelo Senhor Conselheiro Raul Borges, in www.gde.mj.pt, Proc. 09P0484, do qual citamos: “…O princípio in dubio pro reo funda-se constitucionalmente no princípio da presunção da inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória – artigo 32º, nº 2, da CRP - , impondo este que qualquer non liquet na questão da prova seja valorado a favor do arguido, apresentando-se aquele, na fase de decisão, como corolário daquela presunção – acórdão do Tribunal Constitucional nº 533/98, DR, II Série, de 25-02-1999.
O princípio in dubio pro reo - fórmula condensada por Stubel - que estabelece que, na decisão de factos incertos a dúvida favorece o arguido, é um princípio de prova que vigora em geral, isto é, quando a lei, através de uma presunção, não estabelece o contrário.
A violação do princípio in dubio pro reo tem sido entendida sob diversas perspectivas, como a de respeitar a matéria de prova e, pois, tratar-se de matéria de facto e como tal insindicável pelo STJ (por todos, acórdão de 18-12-1997, processo n.º 930/97, BMJ 472, 185), ou enquanto princípio estruturante do processo penal, podendo ser suscitada perante o Tribunal de revista, mas o Supremo vem afirmando que isso só é possível se a violação resultar do próprio texto da decisão recorrida, designadamente da fundamentação da decisão de facto – acórdão de 29-11-2006, processo n.º 2796/06-3ª, in CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 235 (239).
Contrariamente à posição de Figueiredo Dias, expressa in Direito Processual Penal, volume I, pág. 217, que defende que o princípio se assume como um princípio geral de processo penal, não forçosamente circunscrito a facetas factuais, podendo a sua violação conformar também uma autêntica questão de direito plenamente cabível dentro dos poderes de cognição do STJ, a jurisprudência maioritária tem repudiado a invocação do princípio em sede de interpretação ou de subsunção de um facto à lei, não valendo para dúvidas nessas matérias.
Para o acórdão de 06-04-1994, processo n.º 46092, BMJ 436, 248, o princípio não tem aplicação apenas quanto à matéria de facto, começando, logo, por poder ser aplicado na própria interpretação da matéria de direito, esclarecendo que “nada impede que, em via de recurso penal interposto para este Supremo Tribunal, os julgadores se socorram do princípio in dubio pro reo, quando, esgotados todos os meios de interpretação dos factos ou das disposições legais, surgirem dúvidas justificadas quanto ao sentido dos factos ou relativamente à norma aplicável”.
E de acordo com o acórdão de 11-02-1999, CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 210, o princípio in dubio pro reo é multifacetado e a sua força omnímoda e dinamismo podem e devem aplicar-se mesmo dentro dos processos lógicos que interessam à interpretação e integração da lei.
Este acórdão foi objecto de comentário na RPCC, 2003, ano 13, n.º 3, págs. 433 e ss., onde se diz que o STJ adoptou uma tese errónea em relação à aplicabilidade do princípio, defendendo-se que o alcance do in dubio pro reo restringe-se a dúvidas sobre a prova da matéria de facto e não tem aplicação na resolução de dúvidas quanto à interpretação de normas penais, cuja única solução correcta reside em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que se revele juridicamente mais exacto.
Em sentido oposto pronunciaram-se, i. a., os acórdãos de 06-12-2006, processo n.º 3520/06-3ª; de 20-12-2006, processo n.º 3105/06-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08, supra citado, onde se refere que «O princípio vale apenas em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito; aqui, a única solução correcta residirá em escolher não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto» e no acórdão de 30-04-2008, processo n.º 3331/07-3ª, diz-se que «O princípio in dubio pro reo não tem quaisquer reflexos ao nível da interpretação das normas penais. Em caso de dúvida sobre o conteúdo e o alcance destas, o problema deve ser solucionado com recurso às regras de interpretação, entre as quais o princípio do in dubio pro reo não se inclui, uma vez que este tem implicações exclusivamente quanto à apreciação da matéria de facto – sejam os pressupostos do preenchimento do tipo de crime, sejam os factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa».
A eventual violação do princípio in dubio pro reo só pode ser aferida pelo STJ quando da decisão impugnada resulta, de forma evidente, que tribunal recorrido ficou na dúvida em relação a qualquer facto, que tenha chegado a um estado de dúvida “patentemente insuperável” e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido, optando por um entendimento decisório desfavorável ao arguido, posto que saber se o tribunal recorrido deveria ter ficado em estado de dúvida, é uma questão de facto que exorbita os poderes de cognição do STJ enquanto tribunal de revista.
Não se verificando esta hipótese, resta a aplicação do mesmo princípio enquanto regra de apreciação da prova no âmbito do dispositivo do artigo 127º do CPP, que escapa ao poder de censura do STJ enquanto tribunal de revista – neste sentido acórdãos de 20-06-1990, BMJ 398, 431; de 04-07-1991, BMJ 409, 522; de 14-04-1994, processo n.º 46318, CJSTJ 1994, tomo 1, pág. 265; de 12-01-1995, CJSTJ 1995, tomo 1, pág. 181; de 06-03-1996, CJSTJ 1996, tomo 2 (sic), pág. 165;de 02-05-1996, CJSTJ 1996, tomo 2, pág. 177; de 25-02-1999, BMJ 484, 288; de 15-06-2000, processo n.º 92/00-3ª, CJSTJ 2000, tomo 2, pág. 226 e BMJ 498, 148; de 02-05-2002, processo n.º 599/02-5ª; de 23-01-2003, processo n.º 4627/02-5ª; de 15-10-2003, processo n.º 1882/03-3ª; de 27-05-2004, processo n.º 766/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 2, pág. 209 (a alegada violação do princípio só poderá ser sindicada se ela resultar claramente dos textos das decisões recorridas); de 21-10-2004, processo n.º 3247/04-5ª, CJSTJ 2004, tomo 3, pág. 198 (com recensão de jurisprudência sobre o tema e em concreto sobre a temática das conclusões que as instâncias retiram da matéria de facto e o recurso às presunções naturais); de 12-07-2005, processo n.º 2315/05-5ª; de 07-12-2005, processo n.º 2963/05-3ª; de16-05-2007, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 182; de 20-02-2008, processo n.º 4553/07-3ª; de 05-03-2008, processo n.º 210/08-3ª, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 243; de 09-04-2008 processo n.º 429/08-3ª; de 23-04-2008, processo n.º 899/08-3ª; de 15-07-2008, processo n.º 1787/08-5ª.
Noutra perspectiva, o STJ poderá sindicar a aplicação do princípio, quando a dúvida resultar evidente do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do artigo 410º, n.º 2, do CPP, ou seja, quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal tendo ficado em estado de dúvida, decidiu contra o arguido – cfr. acórdãos de 30-10-2001, processo n.º 2630/01-3ª; de 06-12-2002, processo n.º 2707/02-5ª; de 08-07-2004, processo n.º 1121/04-5ª, SASTJ, n.º 83; de 24-11-2005, processo n.º 2831/05-5ª; de 07-12-2006, processo n.º 3137/06-5ª; de 18-01-2007, processo n.º 4465/06-5ª; de 21-06-2007, processo n.º 1581707-5ª; de 13-02-2008, processo n.º 4200/07-5ª; de 17-04-2008, processo n.º 823/08-3ª; de 07-05-2008, processo n.º 294/08-3ª; de 28-05-2008, processo n.º 1218/08-3ª; de 29-05-2008, processo n.º 827/08-5ª; de 15-10-2008, processo n.º 2864/08-3ª; de 16-10-2008, processo n.º 4725/07-5ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª;de 04-12-2008, processo n.º 2486/08-5ª; de 05-02-2009, processo n.º 2381/08-5ª (A apreciação pelo Supremo da eventual violação do princípio in dubio pro reo encontra-se dependente de critério idêntico ao que se aplica ao conhecimento dos vícios da matéria de facto: há-de ser pela mera análise da decisão que se deve concluir pela violação deste princípio).
Na perspectiva, mais concreta - e que data de finais da década de 90 do século passado - de análise do princípio in dubio pro reo, como figura próxima do vício decisório - erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410º, n.º 2, alínea c), do CPP - , e, pois, da sua sindicabilidade pelo Supremo Tribunal, podem ver-se os acórdãos de 15-04-1998, processo n.º 285/98-3ª, in BMJ 476, 82; de 22-04-1998, processo n.º 120/98-3ª, BMJ 476, 272; de 04-11-1998, processo n.º 1415/97-3ª, in CJSTJ 1998, tomo 3, pág. 201 e BMJ 481, 265, com extensa informação acerca do princípio em causa e da livre apreciação da prova; de 27-01-1999, no processo nº 1369/98-3ª, in BMJ 483º, 140; de 24-03-1999, processo n.º 176/99-3ª, in CJSTJ 1999, tomo 1, pág. 247, todos do mesmo relator, Exmo. Conselheiro Leonardo Dias, em que a tónica do entendimento sufragado nos citados arestos é o seguinte: “o erro na apreciação da prova só existe quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum, resulta por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. Nesta perspectiva, a violação do princípio in dubio pro reo pode e deve ser tratada como erro notório na apreciação da prova, o que significa que a sua existência também só pode ser afirmada quando, do texto da decisão recorrida, se extrair, por forma mais do que evidente, que o colectivo, na dúvida, optou por decidir contra o arguido”; e ainda os acórdãos de 20-10-1999, processo n.º 1475/98 -3ª, in BMJ 490º, 64 (em que aquele relator intervém como adjunto); de 04-10-2006, processo n.º 812/2006-3ª; de 11-04-2007, processo n.º 3193/06-3ª.
Como referimos no acórdão de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, parece-nos que esta possibilidade de abordagem de eventual violação do princípio será balizada pelos parâmetros de cognoscibilidade presentes numa indagação dos vícios decisórios, por um lado, com o consequente alargamento de possibilidade de incursão de exame no domínio fáctico, mas simultaneamente, como ali ocorre, operando de uma forma mitigada, restrita, que se cinge ao texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum.
O que significa que, tal como ocorre na análise e exame de verificação dos vícios, quando se perspectiva indagação de eventual violação do princípio in dubio pro reo (em ambos os casos diversamente do que ocorre com a avaliação de nulidades da sentença), há que não esquecer que se está sempre perante um poder de sindicância de matéria fáctica, que é limitado, restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta, dentro do condicionalismo estabelecido pelo artigo 410º do CPP, em suma, que o horizonte cognitivo do STJ se circunscreve ao texto e aos vícios da decisão, não incidindo sobre o julgamento, isto é, que o objecto da apreciação será sempre a decisão e não o julgamento. …”.
[27] Prof. A. M. Almeida e Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, vol. III, Coimbra Editora, 2001, pp. 655 e 681.
[28] Neste sentido e por todos, cf. A. M. Almeida e Costa, idem ibidem, p. 660 e 661, donde citamos: “…Ao direito penal cumpre a preservação dos chamados bens jurídico-criminais, entendidos como o conjunto dos valores considerados necessários à convivência comunitária e à livre realização da Pessoa. Aí se incluem, por exemplo, a vida, a integridade física, a saúde, a liberdade, o património. Segundo certa opinião, tal concepção logrou, inclusivamente, consagração expressa no art. 18°, n° 2, da CRP (cf., por todos, FIGUEIREDO DIAS, ROA 1983 passim).
Ora, a par dos assinalados valores essenciais, tidos por imprescindíveis para a realização humana, surgem outros que assumem um papel secundário, como "valores-meios" ou sustentáculos da sua efectivação. Trata-se de bens jurídicos que, consubstanciando, em si mesmos, objectivos organizatórios e funcionais, via de regra encontram o seu campo privilegiado no direito de mera-ordenação-social. A respeito de alguns deles verifica-se, todavia, uma fusão íntima com os bens jurídicos fundamentais a que servem de suportes, como consequência de se mostrarem indispensáveis à respectiva conservação. Nesse caso, a sua protecção acaba por confundir-se com a salvaguarda dos últimos, circunstância que justifica uma absorção pelo direito penal e a correspondente qualificação como bens jurídico-criminais. Em tais considerações se baseia, por exemplo, a tutela penal da soberania do Estado, da manutenção do modelo do Estado de direito e, de um modo geral, da preservação da esfera da Autoridade Pública. Os delitos que os ofendem não representam simples crimes de perigo, uma vez que, embora revistam a natureza de "valores-meios", aquelas entidades, porque imprescindíveis à organização social, têm uma "densidade" penal própria e integram bens jurídico-criminais independentes, cuja violação constitui um crime de dano (a este propósito, cf. A. M. ALMEIDA COSTA, Cit. 142 ss.).
Partindo do exposto, e não obstante o carácter instrumental que reveste, também a própria Administração, atenta a relevância dos objectivos que serve, pode, em si mesma, assumir a natureza de bem jurídico-criminal. Neste sentido aponta a sua imprescindibilidade para a realização ou satisfação de finalidades fundamentais, indispensáveis em qualquer sociedade organizada.
Posto isto, ao transaccionar como cargo, o empregado público corrupto coloca os poderes funcionais ao serviço dos seus interesses privados, o que equivale a dizer que, abusando da posição que ocupa, se"sub-roga" ou "substitui" ao Estado, invadindo a respectiva esfera de actividade. A corrupção - (própria e imprópria) traduz-se, por isso, numa manipulação do aparelho de Estado pelo funcionário que, assim, viola a autonomia intencional do último, ou seja, em sentido material, infringe as exigências de legalidade, objectividade e independência que, num Estado de direito, sempre têm de presidir ao desempenho das funções públicas.
Sintetizando: o bem jurídico da corrupção consiste na autonomia intencional do Estado, entendida nos termos descritos. Evitando os artificialismos em que incorrem as teses maioritárias italiana e alemã (supra § 8), tal concepção harmoniza-se com o direito positivo português. Acresce que apresenta pontos de contacto, não só com a teoria germânica que via na Reinlialtung der Amtsausübung (supra §7)o objecto de protecção da corrupção, mas sobretudo com nossa tradição jurídica, que expressamente apontava, como finalidade dos tipos em apreço, a tutela da "legalidade no exercício das funções públicas" (cf. A. M.ALMEIDA COSTA, cit. 145 nota 250). …”.
[29] Expressando concordância com o entendimento do Prof. Almeida Costa, cf. Cláudia Santos, in “A CORRUPÇÃO - [DA LUTA CONTRA O CRIME NA INTERSECÇÃODE ALGUNS (DISTINTOS) ENTENDIMENTOSDA DOUTRINA, DA JURISPRUDÊNCIA E DO LEGISLADOR”, Liber Disciplinorum para Jorge Figueiredo Dias, pp. 970 e 971, donde citamos: “… Mas, porque uma opção quanto a esta questão condiciona decisivamente tudo o que a seguir se dirá, esclareça-se apenas a concordância com ALMEIDA COSTA na afirmação de que"a corrupção (própria e imprópria) traduz-se numa manipulação do aparelho de Estado pelo funcionário que, assim, viola a autonomia intencional do último, ou seja, em sentido material, infringe as exigências de legalidade, objectividade e independência que, num Estado de direito, sempre têm de presidir ao desempenho das funções públicas"(22). Cremos que, dito agora de uma forma simplificada, o que o legislador pretende evitar com a incriminação da corrupção é sobretudo a criação da mera possibilidade de actuação, por parte do agente público, de acordo com critérios outros que não os estritamente objectivos. Quando solicita ou aceita o recebimento de um suborno, o funcionário ou titular de cargo político fica de imediato coma sua imparcialidade prejudicada. Independentemente da prática de qualquer acto, a sua autonomia intencional está já condicionada. O resultado desvalioso para o bem jurídico ocorreu já, quer o acto que se pretendia praticar não venha a ocorrer por uma qualquer razão, quer não se consiga sequer demonstrar a intenção de praticar um acto concreto e determinado. Talvez seja mais difícil a compreensão do dano para aquele bem jurídico aquando da corrupção activa. Julgamos, todavia, que ainda aqui o mero oferecimento de uma qualquer vantagem a um agente público cria a possibilidade objectiva - por mais que este esteja intimamente decidido a actuar de acordo com a legalidade - de que os critérios decisionais sejam outros que não o mero interesse estadual(23).
Em síntese apertada: a consideração dos delitos de corrupção como crimes de resultado dano, que visam tutelar um bem jurídico definido como "a autonomia intencional do Estado", leva à consideração como típicas de várias condutas, porque lesivas daquele bem jurídico e não excluídas do âmbito de aplicação da norma pela letra da lei. Extraiamos daqui as conclusões devidas e exemplifiquemos — sempre à luz desta concepção doutrinal —, apenas com algumas das hipóteses que mais dúvidas têm suscitado aos aplicadores:(1) pode haver crime de corrupção passiva e activa ainda que o valor da peita não seja proporcional ao valor ou importância do acto a praticar; (2) pode haver crime de corrupção passiva e activa sem que o acto acordado ou almejado venha a ter lugar; (3) pode haver crime de corrupção passiva e activa sem que fique demonstrado que a solicitação, aceitação ou oferta da peita têm por objectivo a prática de uma acto concreto e determinado; (4) por maioria de razões, pode haver crime de corrupção passiva e activa quer a oferta/recebimento sejam anteriores à prática do acto, quer sejam posteriores; (5) pode, em certas circunstâncias, haver crime consumado de corrupção, quer activa, quer passiva, mesmo que o agente público não chegue efectivamente a receber a vantagem prometida ou solicitada.”.
[30] Quanto ao bem jurídico em causa na corrupção, importa reter a actualização conceitual que o Prof. Faria e Costa elaborou, tendo em conta as posteriores incriminações como corrupção de actos praticados ou a praticar por pessoas que não são funcionários, expressa no parecer junto a estes autos, a fls. 2354 e 2355, donde citamos: “… Chegados a este ponto, munidos de todo um universo de elementos relevantes para o tipo, analisamos"todos" os "crimes de corrupção" e verificamos que, afinal, o bem jurídico se revela idêntico nesse universo. Na verdade, todos os crimes de corrupção lidam com o poder e com o seu exercício. Tanto a corrupção no sector público, como a corrupção no sector privado. Acrescente-se: tanto a corrupção intra-fronteiras, como a corrupção transnacional. Em causa está sempre um desequilíbrio no exercício do poder por parte de quem o tem. Para sermos ainda mais claros: em causa está sempre a compra do poder. Não se trata, deste modo, apenas da capacidade de funcionamento do aparelho de Estado ou mesmo da autonomia intencional do Estado. O valor que transparece nas diferentes incriminações é outro e apenas um: a pretensão colectiva a urna decisão livre, in-condicionada, correcta e imparcial por parte de todos aqueles a quem o direito atribui o "poder" de intervir na definição ou realização de relações públicas juridicamente relevantes.”.
[31] Prof. A. M. Almeida e Costa, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, vol. III, Coimbra Editora, 2001, pp. 663 e 666.
[32] No parecer junto a estes autos, a fls. 2231.
[33] Importa reter a doutrina e a jurisprudência citadas pelo Prof. Costa Andrade, no referido parecer, a fls. 2229 a 2231: “…a) Comum às diferentes formas de corrupção é, desde logo, o bem jurídico típico. Que podemos, com ALMEIDA COSTA, referenciar como a"autonomia intencional do Estado",a Administração Pública incluída. Noutra direcção, o acto ilícito a praticar pelo funcionário "tem de consubstanciar o exercício do cargo" (ALMEIDA COSTA). Tem, noutros termos, de corresponder às competências do agente ou, ao menos, estar dentro dos seus "poderes de facto".Quanto a esta última exigência típica, não se exige que o acto pertença "à esfera das suas específicas atribuições ou competência, bastando-se com a simples circunstância de a actividade em causa se encontrar numa relação funcional imediata com o desempenho do cargo. Assim acontecerá sempre que a realização do acto subornado caiba no âmbito fáctico das suas possibilidades de intervenção, i. e., dos poderes de facto inerentes ao exercício das correspondentes funções"3.Numa ou noutra hipótese, o acto tem de ser um acto de serviço e do serviço e praticado nesta veste e nesta qualidade.
É por isso, recorda por exemplo HEINE, que não relevam para efeitos de corrupção "as acções privadas de um funcionário, mesmo que sejam levadas a cabo com violação dos próprios deveres do cargo"'`. Assim, exemplifica o mesmo autor, não releva para efeitos de corrupção o facto de um professor do ensino oficial, contra as normas do seu serviço, dar explicações particulares em sua casa; o mesmo valendo para o agente da polícia criminal que, contra as normas e as regras emanadas dos seus superiores, faz, fora das horas de serviço, trabalho de investigação privada'.Num caso e noutro, precisa HEINE, o funcionário pode incorrer em ilícitos(vários) de diferente índole: nunca, porém num acto de corrupção passiva para acto lícito ou ilícito. Porque não está a praticar actos pertinentes ao exercício das suas funções qua funcionário.
b) É um topos que merece uma menção mais detida e explícita. Logo porquanto, como RUDOLPHI pertinentemente assinala, ele configura "o conceito central de todos os tipos legais de corrupção, já que é com ele que se descreve o comportamento do funcionário a que se reporta a oferta de vantagens'''.Ao que acresce o seu relevo directo na perspectiva do caso que aqui directamente nos ocupa. O que faremos acolhendo-nos para tanto à lição da mais credenciada doutrina e da mais prestigiada jurisprudência.
A este propósito pode hoje contar-se com uma estabilizada compreensão das coisas, que conta com a adesão consensual e pacífica tanto de autores como de tribunais. A começar, de todos os lados se converge em torno de uma formulação do género: ao exercício do cargo só pertencem as acções "através das quais o funcionário prossegue a realização das tarefas do cargo que lhe foi cometido". Numa aproximação mais analítica, autores e tribunais convergem na exigência de uma"conexão funcional"entre a acção solicitada e o exercício do cargo. O que, por sua vez, se desdobra em duas exigências autónomas e complementares, cuja verificação cumulativa é necessária para definir as acções pertinentes ao exercício cio cargo, contrapondo-as e extremando-as face às acções privadas dos funcionários. Assim, exige-se, em primeiro lugar, que, pela sua natureza, as acções pertençam ao cumprimento e prossecução do cargo em que o funcionário foi investido; e, em segundo lugar, que aquelas mesma acções sejam levadas a cabo na veste de funcionário8.
Numa formulação do tribunal federal - recorrentemente citada na doutrina e na jurisprudência—precisa o supremo tribunal alemão que a acção terá de "pertencer aos espectro de obrigações funcionais do funcionário e seja por ele levada a cabo na qualidade de acção do serviço". Na síntese convergente de HOHMANN, "em primeiro lugar, a acção tem de pertencer à área de competências fácticas ou potenciais do funcionário ou autoridade … em segundo lugar, ela tem de ser levada a cabo na sua qualidade de funcionário. Dito noutros termos, tem de tratar-se de uma acção que, pela sua natureza, só possa ser praticada por causa da assunção do cargo (de funcionário ou autoridade) e, para além disso, que ela esteja funcionalmente integrada no espectro de obrigações/competências do titular do serviço público".
c) Por ser assim, não pertencerão ao exercício do cargo nem relevarão como momento típico para qualquer forma de corrupção - activa ou passiva, própria ou imprópria — as acções praticadas pelos funcionários que não satisfaçam cumulativamente aquelas duas ordens de exigências. Mesmo que sejam praticadas no lugar e no tempo do exercício do cargo ou só sejam possíveis a partir dos dados, informações ou meios que só o exercício do cargo permite alcançar. Tais circunstâncias não são, na verdade, decisivas para converter uma acção em acção do cargo. …”.
[34] Nesse sentido, cf. Cláudia Santos, in “A CORRUPÇÃO - [DA LUTA CONTRA O CRIME NA INTERSECÇÃODE ALGUNS (DISTINTOS) ENTENDIMENTOSDA DOUTRINA, DA JURISPRUDÊNCIA E DO LEGISLADOR”, Liber Disciplinorum para Jorge Figueiredo Dias, pp. 981 e ss., donde citamos: “…Um dos vectores condicionantes da Lei n.° 108/2001, de 28 de Novembro, terá sido, assim, o da eficácia, procurando-se combater a corrupção através da erradicação, na medida do possível, de decisões absolutórias consideradas materialmente injustas.
O outro vector considerado pelo legislador não nos merecerá aqui mais do que uma brevíssima nota. Referimo-nos a alguns"compromissos inter-nacionais"a que o Estado português se vinculara em matéria de luta contra a corrupção.

O que se pretende salientar na alteração legislativa é, porém, o primeiro daqueles vectores e a intenção, que parece manifesta, de esclarecer, sem margem para dúvidas, o âmbito de incriminação das normas relativas à corrupção, comum sentido próximo ao que já era defendido, há muito, pela doutrina referida supra.

Uma interessante novidade [ainda que só relativa (Nota 39: Na verdade, a solução agora adoptada tem raízes na tradição jurídico-penal portuguesa de regulamentação da corrupção, sendo que o Código Penal de 1886 já considerava, no seu artigo 322.° [Aceitação de oferecimento ou promessa], aplicáveis as molduras penais da corrupção"se o empregado público aceitar por si ou por outrem oferecimento ou promessa, ou receber dádiva, ou presente de pessoa que perante ele requeira desembargo ou despacho, ou que tenha negócio ou pretensão dependente do exercício das suas funções públicas".)] trazida pela Lei n.° 108/2001, de 28 de Novembro, parece ser o actual n.° 2 do artigo 373.°CP, segundo o qual "na mesma pena [a pena de prisão até 2 anos ou a pena de multa até 240 dias, previstas no n.° 1 do artigo 373.° CP para a corrupção passiva imprópria] incorre o funcionário que por si, ou por interposta pessoa com o seu consentimento ou ratificação, solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial ou não patrimonial de pessoa que perante ele tenha tido, tenha ou venha a ter qualquer pretensão dependente do exercício das suas funções públicas".
A questão para cuja clarificação terá surgido esta norma prende-se coma possibilidade de considerar como ilícito típico o mero recebimento ou solicitação de uma qualquer vantagem por parte de um agente público, independentemente da demonstração de que essa vantagem visa a compensação de uma qualquer conduta, já adoptada ou a adoptar no futuro. Mesmo à luz do direito anterior, havia já quem defendesse, ainda que a título excepcional, a relevância típica deste comportamento. Assim, ALMEIDA COSTA (…) afirmava, como regra, a exclusão da «hipótese de punir, a título de corrupção passiva, as dádivas realizadas, não com o objectivo imediato de conseguir um acto determinado, mas tão-só com a finalidade de criar um clima de "permeabilidade"ou de "simpatia" para eventuais diligências que venham a requerer-se no futuro». Todavia, a título excepcional - como de resto se referiu supra - admitia-se já a possibilidade de punição «sempre que, à luz dos critérios da experiência comum, a simples dádiva (...)não se mostre justificável de outro modo assumindo, inequivocamente, o aludido significado de criar um clima de"permeabilidade"ou"simpatia"para posteriores diligências».
Sendo assim, existindo já doutrina que, perante o direito anterior, considerava esta espécie de comportamentos abrangidos pelo âmbito de incriminação da norma do artigo 373.° CP, é legítima a interrogação sobre se o legislador de 2001 terá pretendido ir mais longe, alargando as margens de punibilidade da corrupção passiva imprópria. Concretizando esta dúvida metódica: ter-se-á pretendido, doravante, a punição de qualquer agente público que receba um qualquer "presente",ainda que se demonstre claramente a absoluta inexistência de uma qualquer conexão com a prática de um qualquer acto? Ter-se-á, através desta norma, interditado em absoluto o recebimento de qualquer oferta por um agente público, sob pena de sobre ele recaírem as particularmente gravosas sanções criminais?
Por razões várias, a resposta às questões anteriores terá de ser negativa. O que equivale a afirmar que o n.° 2 do artigo 373.0 CP não consagra um verdadeiro tipo incriminador, apresentando-se antes como uma norma sobre a norma anterior, com um conteúdo essencialmente clarificador. E com um conteúdo que julgamos, no essencial, coincidente com o que a doutrina referida já considerava, antes da alteração legislativa, passível de enquadramento na corrupção passiva para acto lícito. Poder-se-ia, todavia, considerar surpreendente uma tal afirmação, aduzindo o seguinte argumento: se já era assim, como se explica a necessidade de mudar a lei? A resposta, com base na análise jurisprudencial que antes se esboçou, parece simples: na prática, entendia-se com alguma frequência que não era assim.
A conclusão de que não se pretendeu incriminar, sem mais, a aceitação de uma oferta ou a formulação de um pedido pelo funcionário decorre, porém, ainda de outros elementos. Atendamos, primeiramente, aos literais. Ao exigir que a vantagem provenha de"pessoa que perante ele [o funcionário] tenha tido, tenha ou venha a ter qualquer pretensão dependente do exercício das suas funções públicas",o legislador exclui, como não podia deixar de ser, todas as ofertas que não têm qualquer relação com a actividade profissional do agente público (assim será, v. g., se uma magistrada recebe, no Tribunal, um ramo de flores que o seu namorado, no Dia de São Valentim, lhe enviou). Sob uma outra perspectiva, este imperativo de que a vantagem advenha de pessoa que mantém uma qualquer relação funcional como agente público demonstra que, ainda aqui, o que se pretende evitar é o mercadejar com o cargo e a negociação de um acto praticado ou a praticar, ainda que hipotético(…).
Por a punição continuar a não prescindir da demonstração de que o recebimento ou a solicitação da vantagem não têm uma qualquer outra justificação que não seja o mercadejar com o cargo, subsistirá inevitavelmente na praxis judiciária um espaço de alguma indeterminação. Esta terá de continuara ser colmatada pelo recurso a critérios(42)como o do valor da coisa, as circunstâncias em que a vantagem foi recebida e a situação e características de quem a ofereceu. A estes critérios deverão juntar-se outras ideias orientadoras, como a de temporalidade abrangendo-se no n.° 2 do artigo 373.º CP, v.g.,casos em que o agente público recebe uma vantagem de alguém que só no futuro virá a ter perante ele uma pretensão, devem considerar-se atípicas as situações em que aquela pretensão só vem a surgir decorrido um lapso de tempo de tal modo longo que era imprevisível, no momento da solicitação ou oferta, que tal sucedesse.
Por força da importância prática de que manifestamente se reveste, justifica-se uma referência adicional ao critério do valor. Razões de maior determinabilidade da norma [idênticas às que estiveram na génese do modelo da dupla indexação adoptado no artigo 202.° CP(…)]poderiam ter levado o legislador a indicar uma "fasquia"para a relevância jurídico-penal da vantagem recebida ou solicitada. Esta teria sido, porém, uma opção -a nosso ver - desadequada. E a justificação é só uma, na medida em que tal solução poderia conduzir a injustiças materiais (quer decorrentes de absolvições, quer decorrentes de condenações), porque - digamo-lo da forma mais crua - aquilo que é suficiente para corromper um funcionário que recebe pouco mais do que o salário mínimo é certamente diverso daquilo que é necessário para corromper um agente público de elevado estatuto sócio-económico(…). …”.
[35] Mas, como afirma o Prof. Figueiredo Dias, in “Temas Básicos da Doutrina Penal”, Coimbra Editora, 2001, pp. 42 e 43, a propósito da função de tutela subsidiária do direito penal: “… A controvérsia acabada de referir conduziu à introdução, na temática da função do direito penal ligada ao conceito material de crime, de uma perspectiva que, com particular razão, se pode qualificar de teleológico-funcional e racional. De teleológico-funcional, na medida em que se reconheceu definitivamente que o conceito material de crime não podia ser deduzido das ideias vigentes a se em qualquer ordem extra-jurídica e extra-penal, mas tinha de ser encontrado no horizonte de compreensão imposto ou permitido pela própria função que ao direito penal se adscrevesse no sistema jurídico-social. De racional, na medida em que o conceito material de crime vem assim a resultar da função do direito penal de tutela subsidiária (ou de "ultima ratio ") de bens jurídicos (…) dotados de dignidade penal (de "bens jurídico-penais"); ou, o que é dizer o mesmo, de bens jurídicos cuja lesão se revela digna de pena. Bens jurídicos nos quais afinal se concretiza jurídico-penalmente, em último termo, a noção sociológica fluida da danosidade ou da ofensividade sociais supra aludida. …”.

http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/042e10f011df77e480257713004c2c4b?OpenDocument&Highlight=0,CORRUP%C3%87%C3%83O,PASSIVA

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